Análise de Situação - Fim da Presença dos EUA e OTAN no Afeganistão
Sandro Teixeira Moita
Doutor em Ciências Militares
Coord da Área Conflitos Bélicos e Terrorismo - OMPV
Em 30 de agosto de 2021, o último soldado americano, o Major-General Christopher Donahue, comandante da 82ª Divisão Aerotransportada, embarcou em uma aeronave C-17 da Força Aérea dos Estados Unidos da América (EUA), encerrando a presença militar americana no Afeganistão, que já durava quase duas décadas.
As impressionantes imagens observadas entre 15 e 18 de agosto no aeroporto de Cabul, capital do país, última rota de saída para os estrangeiros e afegãos descontentes com a assunção ao poder do Talibã, invadindo pistas e impedindo a decolagem de aeronaves, advém diretamente do colapso do governo afegão apoiado e bancado pelas potências ocidentais, em especial, os EUA.
Para que se possa entender como um desfecho tão dramático ocorreu, é preciso voltar ao ponto da assinatura dos Acordos de Doha em 2020, quando os EUA e o Talibã firmaram um compromisso em 29 de fevereiro para a paz no Afeganistão, com a previsão de retirada das tropas americanas em 14 meses e trocas de prisioneiros. O governo afegão não fazia parte das negociações, o que gerou enfrentamentos com o Talibã.
A postura do Talibã na campanha mudou, evitando choques em locais com presença de tropas americanas e da OTAN, privilegiando o combate contra as forças do governo afegão. O anúncio dos acordos causou um duro golpe na moral das forças de segurança afegãs, que foram perdendo apoios prestados pelos EUA, como suporte logístico e poder aéreo.
A perda de tais capacidades abriu espaço para uma atuação do Talibã no nível das operações psicológicas. Folhetos e mensagens de áudio enviadas a soldados e policiais salientavam a retirada das forças americanas e de um tratamento clemente em caso de rendição. Com sinais cada vez mais claros de que a retirada americana se processaria em grande velocidade, soldados e policiais afegãos passaram a considerar a situação de si e de suas famílias em caso da tomada do poder por parte do Talibã.
A partir de outubro, contrário a previsões ocidentais, o governo afegão começou a demonstrar sinais de colapso de autoridade. O Talibã executou operações ofensivas contra posições do Exército afegão, que só podia ser suprido por meios aéreos, deixando muitos postos e unidades abandonadas à própria sorte. Logo, governadores de províncias e generais começaram a fazer acordos diretos com os talibãs, mudando de lado ou se rendendo.
Em dezembro, o governo afegão perdeu diversas partes do sul do país, abandonando centenas de postos de controle e pontos-fortes herdados das forças americanas e da OTAN. O inverno assistiu a novas investidas do Talibã, negociando acordos com generais, governadores e senhores da guerra do norte do país, para facilitar seus avanços quando da chegada da primavera.
Em março de 2021, o Talibã iniciou novas ações ofensivas, e o Ministério do Interior afegão informava que tinha abandonado 40 por cento de todos os pontos defensivos e unidades da polícia no país. A partir daí, soldados e policiais afegãos começaram a fugir ou se render em massa, com grandes unidades desaparecendo rapidamente.
A velocidade do colapso impressionou as potências ocidentais, que ainda acreditavam que o governo afegão poderia resistir ao Talibã. Uma análise do Conselho de Segurança da ONU de 20 de maio de 2021, indicava que o grupo controlava 50 a 70 por cento do interior do país e se aproximava de controlar as principais cidades.
A tendência de esfacelamento do governo afegão acelerou a partir de 13 de abril, quando o Presidente Joseph Biden, dos EUA, anunciou a completa retirada das forças americanas do país até 11 de setembro, prazo que foi adiantado depois para 31 de agosto. O Talibã se sentiu estimulado a lançar ataques mais ousados contra forças do governo afegão, que passaram a oferecer pouca ou nenhuma resistência.
Soldados e policiais afegãos mudaram de lado, se renderam ou fugiram em massa. Neste momento, as poucas unidades que ainda combatiam o Talibã eram de Forças Especiais, que receberam vultuosos investimentos dos EUA e da OTAN. Mesmo com sua capacidade, a falta de apoio mínimo selou o destino destes homens, que lutaram até a morte contra os talibãs, ou foram evacuados, já sem munição e com muitos feridos.
Entre maio e junho, mais distritos foram sendo conquistados pelo Talibã, que preferiu cercar as grandes cidades, para deixá-las para um enfrentamento final contra o governo afegão. Com boa parte do interior do país dominado, no início de julho o grupo começou a atacar as capitais provinciais e grandes cidades do país, que, sofrendo os efeitos dos cercos, começaram a cair rapidamente em mãos do Talibã.
No início de agosto, os prospectos eram os piores possíveis para o governo afegão. A campanha do Talibã estava cada vez mais veloz e a conquista das capitais provinciais estimulou os últimos senhores da guerra que ainda estavam apoiando o governo a mudar de lado e pactuar com o Talibã. Assim, em 14 do mês, o grupo chegou aos arredores de Cabul, após cercar a cidade, capturando todos os pontos defensivos do governo.
Com a fuga do presidente afegão, Ashraf Ghani, e de lideranças, a capital caiu e governo afegão foi dissolvido em 15 de agosto. O pânico se instalou em Cabul e, a partir do aeroporto da cidade, uma grande operação de evacuação de não-combatentes foi realizada pelos EUA, OTAN e outros países, destacando-se a Índia. Mais de 120 mil estrangeiros e afegãos que trabalharam com as forças ocidentais foram evacuadas nesta operação, concluída em 30 de agosto, com o último voo militar americano.
Com a conquista de Cabul, o Talibã agora estabelece conversas para compor um governo chamado “inclusivo”, no qual representantes das diversas regiões e etnias do país tenham parte, até mesmo para estabilizar a nação e impedir qualquer ator que se insurja contra o grupo e conteste seu domínio.
Entretanto, destaca-se a resistência no Vale de Panjshir que se ergueu contra o Talibã, liderada por Ahmad Massoud e o ex-vice-presidente do governo dissolvido, Amrullah Saleh. Combates tem ocorrido entre a resistência e o Talibã, com baixas registradas pelos dois lados, mas o embate é ainda inconclusivo, sendo caracterizado por interrupções diversas para negociações.
Os impactos da queda do governo afegão e a volta ao poder do Talibã no Afeganistão são profundos e mexem com a região. O Talibã, por sua vez, agora enfrenta o desafio de criar uma estrutura mínima capaz de prover governança sobre o país, equilibrando-se no difícil arranjo do poder com os senhores da guerra, especialmente no norte do país.
O arranjo da situação regional também produz tensões com Rússia, China e Irã, que estabeleceram mecanismos de diálogo com o Talibã, de forma a pressionar o grupo a impedir novos influxos de refugiados em suas direções, bem como demonstrar algum compromisso em impedir que o país se torne plataforma para o terrorismo global, o que pode produzir impactos nestas nações. A incerteza caracteriza o caminho do Afeganistão, que oscila entre um regime bastante repressivo e uma nova guerra civil.
Rio de Janeiro - RJ, 13 de setembro de 2021.
Como citar este documento:
MOITA, Sandro Teixeira. Análise de Situação - Fim da Presença dos EUA e OTAN no Afeganistão. Observatório Militar da Praia Vermelha. ECEME: Rio de Janeiro. 2021.
Referência:
- Adapting to a new reality in Afghanistan. International Institute of Strategic Studies. https://www.iiss.org/blogs/analysis/2021/08/afghanistan-taliban-region-response
- Afghan troops and police abandon nearly 200 checkpoints to the Taliban. Al Arabiya News. https://english.alarabiya.net/News/middle-east/2020/12/30/Afghan-troops-and-police-abandon-nearly-200-checkpoints-to-the-Taliban
- Afghanistan: Taliban to rely on Chinese funds, spokesperson says. Al Jazeera. https://www.aljazeera.com/news/2021/9/2/afghanistan-taliban-to-rely-on-chinese-money-spokesperson-says
- Malcolm Chalmers. The Next Act in the Afghan Tragedy. RUSI. https://rusi.org/explore-our-research/publications/commentary/next-act-afghan-tragedy
- United Nations Security Council. Twelfth report of the Analytical Support and Sanctions Monitoring Team submitted pursuant to resolution 2557 (2020) concerning the Taliban and other associated individuals and entities constituting a threat to the peace stability and security of Afghanistan. https://www.undocs.org/en/S/2021/486
- The regional fallout of the Taliban takeover of Afghanistan. International Institute for Strategic Studies. https://www.iiss.org/blogs/analysis/2021/08/taliban-afghanistan-regional-fallout
- Tim Willasey-Wilsey. Why Did the Afghan Army Evaporate? RUSI. https://rusi.org/explore-our-research/publications/commentary/why-did-afghan-army-evaporate
64498.011702/2021-90