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Análise de Situação – Acordo Estados Unidos – Talibã

Publicado: Quarta, 04 de Março de 2020, 08h01 | Última atualização em Quinta, 06 de Janeiro de 2022, 13h52 | Acessos: 3252

Sandro Teixeira Moita
(Coordenador Adjunto do Grupo Conflitos Bélicos – Observatório Militar da Praia Vermelha)

Em 29 de fevereiro de 2020, os Estados Unidos da América (EUA) e o Talibã assinaram um tratado para a paz no Afeganistão. Tal iniciativa visa, na ótica dos EUA, encerrar a guerra mais longa de sua história e, para o Talibã, significa o fim da luta contra a grande potência.

Para a adequada compreensão da importância do tratado, é necessário fazer um recorrido da história recente do Afeganistão, que sofre com instabilidade política e guerras desde 1979.

A Invasão Soviética de 1979

O Afeganistão sempre esteve presente nas preocupações da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) para a Ásia Central, como um foco de possível desestabilização das suas repúblicas na região. Por isso, a URSS sempre exerceu influência naquele país desde a década de 1940.

Em 1979, fruto da instabilidade política pela qual passava o Afeganistão, os soviéticos interviram no país, apoiando um grupo político local, que foi colocado no poder com suporte da URSS, o que abriu espaço para a eclosão de uma guerra civil entre o governo aliado dos soviéticos e os chefes tribais do interior do país, utilizando a religião como mecanismo de recrutamento e motivação para enfrentar o poderio da URSS. Esperando concluir a campanha em semanas, os soviéticos acabaram envolvidos no Afeganistão por dez anos, até 1989.

Os mujahedeen, “guerreiros sagrados”, logo se tornaram a espinha dorsal da resistência aos soviéticos durante a guerra, dominando o interior, enquanto as cidades permaneceram sob controle soviético. Esses guerrilheiros receberam apoios dos EUA, da Arábia Saudita, Paquistão e Irã, com dinheiro, equipamentos e armamentos, destacando-se os mísseis Stinger, que causaram grandes perdas soviéticas de helicópteros e aviões.

O envolvimento soviético aumentou até 1985, quando 115 mil soldados daquele país ocupavam o Afeganistão, sem no entanto, pacificá-lo, o que levou a um recrudescimento do conflito, com soldados capturados sendo executados barbaramente pelos mujahedeen, assim como as tropas soviéticas passaram a destruir vilas inteiras, por menor que fosse a suspeição de apoio às forças guerrilheiras locais. Tal nível de brutalidade acabou por se tornar uma marca na população afegã e na forma de combate no país.

A partir de 1985, os soviéticos, com mediação internacional, passaram a reduzir seus contingentes gradualmente, até anunciar uma retirada do país em 1987, que foi concluída em 1989, ao custo de 13 mil soldados mortos e 35 mil feridos. Estima-se que a violência dos combates produziu um êxodo de 5 a 10 milhões de afegãos nos países vizinhos e mais de um milhão de afegãos mortos.

A conturbada década de 1990 e a ascensão do Talibã

Na esteira da retirada soviética, o governo afegão instalado em Cabul não possuía força suficiente para disciplinar os senhores da guerra que ganharam poder e prestígio durante os anos da guerra contra os soviéticos. Diversos grupos se destacaram, como a milícia denominada “Os Estudantes”, conhecida como Talibã, que agia muito em associação com um grupo composto por estrangeiros que havia lutado contra os soviéticos, denominado “a Base”, ou Al-Qaeda, liderada por um milionário saudita, Osama bin Laden. Tais grupos possuem uma visão fundamentalista, na qual o país deveria seguir a lei islâmica, a sharia.

Outro grupo de destaque, mas que rejeitava uma interpretação fundamentalista era a Aliança do Norte, liderada por Ahmed Shah Massoud, veterano da guerra contra os soviéticos e conhecido em todo o país por impedir que estes dominassem o Vale de Panjshir, recebendo a alcunha de “Leão de Panjshir”.

Tais grupos, tal como as milícias comandadas por Gulbuddin Hekmatyar, outro poderoso senhor da guerra, lutaram contra o governo, que se manteve forte até o colapso da União Soviética em dezembro de 1991. Sem o apoio soviético, em 1992 o governo afegão caiu, e uma tentativa de criar a paz entre os grupos e estabelecer um Estado, os Acordos de Peshawar, falhou quando Hekmatyar não aceitou os termos e atacou milícias que controlavam Cabul e tinham assumido o lugar do governo.

A guerra civil seguiu, cruenta e brutal, e uma série de grupos insurgentes do sul se unificou, denominando-se Talibã. Com experiência de combate, fervor religioso e equipamentos capturados ao antigo governo afegão e o apoio do Paquistão, o grupo iniciou um avanço irresistível que chegou às portas de Cabul em 1995, cercando a cidade e a mantendo sobre bombardeio incessante até sua queda em setembro de 1996, de onde o Talibã lançou as bases para conquistar quase todo o Afeganistão.

Entre 1996 e 2001, o Talibã avançou até o norte do país, sendo enfrentado apenas por Massoud e a Aliança do Norte, que mantinham controle de 5% do território afegão. Os outros senhores da guerra tinham se refugiado no exterior ou se aliado ao Talibã, que compôs um governo reconhecido apenas por Arábia Saudita, Paquistão e Emirados Árabes Unidos. O país passou a se chamar Emirado Islâmico do Afeganistão. O radicalismo fundamentalista, a destruição de patrimônios da humanidade como os Budas de Bamyan e a imposição estrita da sharia isolaram o Talibã na comunidade internacional, ao mesmo tempo em o grupo abrigava a Al-Qaeda, já reconhecida como organização terrorista por diversos atentados praticados nos anos 1990.

O caminho para o 11 de Setembro e a Invasão dos EUA

Em 1998, os EUA lançaram uma série de ataques de mísseis de cruzeiro a campos de treinamento da Al-Qaeda no Afeganistão após atentados a bomba que destruíram as embaixadas americanas na Tanzânia e no Quênia. O grupo usava o Afeganistão para treinar pessoal e receber equipamentos assim como preparar ataques no Oriente Médio e África, contra as potências ocidentais.

Em 1999, a Organização das Nações Unidas (ONU) sancionou o Afeganistão para pressionar o Talibã a entregar Osama bin Laden, mas o grupo se recusou a fazê-lo, ficando ainda mais isolado internacionalmente. As sanções atingiram também o Paquistão, tido como principal apoiador do Talibã.

Apesar dos embargos, o Talibã parecia se fortalecer e somente Massoud e a Aliança do Norte resistiam ao poderio do grupo, fazendo apelos a comunidade internacional que intervisse no conflito ou ao menos apoiasse a Aliança do Norte. A brutalidade do regime talibã gerava novas ondas de refugiados.

Em 9 de setembro de 2001, Massoud foi morto pelo Talibã após dois homens-bomba disfarçados como jornalistas, em um evento considerado conectado com o grande ataque de 11 de setembro de 2001 nos EUA, que vitimou milhares de pessoas e motivou a invasão do Afeganistão por parte daquele país, apoiado pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) em 7 de outubro de 2001.

Valendo de forças de operações especiais e inteligência, os EUA apoiaram a Aliança do Norte e usaram poderio aéreo para forçar o Talibã a recuar, conquistando diversas cidades no caminho para Cabul, que caiu em 12 de novembro, pouco mais de um mês da invasão americana.

O governo do Talibã caiu rapidamente, com diversas cidades sendo liberadas pela Aliança do Norte e senhores da guerra aliados aos EUA, com o grupo e a Al-Qaeda sendo perseguidos por forças afegãs e americanas até o sul do país, enquanto esforços internacionais eram feitos para se estabelecesse um Estado afegão.

Em 2002, os EUA lançaram a Operação Anaconda para tentar eliminar a presença do Talibã e os remanescentes da Al-Qaeda que tinham escapado da batalha de Tora Bora, em dezembro de 2001, incluindo Osama bin Laden. Apesar das severas baixas impostas ao Talibã, vários de seus comandantes e líderes da Al-Qaeda, como o próprio Osama, conseguiram escapar.

Com abrigo no Paquistão, que sempre negou apoiar o Talibã, a despeito dos laços e do apoio paquistanês no surgimento e na consolidação do grupo, tanto este como a Al-Qaeda obtiveram o tempo necessário para se reestabelecer e lançar uma campanha de insurgência, contra a presença dos EUA e da Força Internacional de Assistência para Segurança (ISAF em inglês), da OTAN, no Afeganistão.

A invasão do Iraque em março de 2003 também tirou muito da atenção dos EUA da guerra no Afeganistão, o que provou ser uma decisão política com alto custo estratégico, uma vez que a possibilidade de eliminar o Talibã da vida afegã foi perdida quando tropas e recursos americanos foram retirados do país e empregados no Iraque. A mídia se voltou para a cobertura das operações no Iraque, e o Afeganistão começou a desaparecer do debate nacional dos EUA, ganhando a alcunha de “a guerra esquecida”.

“Os Americanos tem todos os relógios, mas nós temos todo o tempo”

A partir de 2003, o conflito passou a aumentar de intensidade até 2011, quando os EUA começaram a enviar uma presença massiva de tropas, chegando a 100 mil soldados, assim como os países da OTAN enviaram reforços para a ISAF, chegando a um total de 140 mil soldados da Coalizão no país.

A presença das forças ocidentais em maior número gerou maior número de choques com o Talibã e negociações foram iniciadas, com o ideal de encerrar o conflito e promover a retirada das tropas estrangeiras do país. Conversações entre diversos atores, inclusive o Talibã, foram iniciadas, mas demandas impostas pelo grupo e pelo governo afegão fizeram as negociações fracassarem.

A partir de 2009, os EUA passaram a realizar ações clandestinas no Paquistão, contra redes de apoio do Talibã e membros do grupo. Isso gerou protestos do governo local, porém não deteve as ações, que passaram a ser realizadas com grande uso de sistemas aéreos remotamente pilotados (drones), gerando grande controvérsia, uma vez que muitos aldeões foram alvos dos ataques, em especial os realizados pela Agência Central de Inteligência (CIA, em inglês) dos EUA.

A partir de 2011, os países ocidentais começaram a retirar suas tropas do conflito, assim como os EUA foram reduzindo seu contingente no país. Isso se deu por uma política de passar a responsabilidade do conflito ao governo afegão, com a expansão do Exército afegão e das forças especiais afegãs, treinadas e equipadas pela ISAF e pelos EUA.

Algo que gerou grande desgaste com a opinião pública local e internacional foram uma série de episódios envolvendo as forças dos EUA, com abusos de prisioneiros, profanação de corpos de inimigos mortos, ataques de drones que vitimaram grande número de afegãos, como um casamento confundido com uma reunião de comandantes do Talibã, assim como um vídeo que mostrava soldados americanos queimando um Corão, o livro sagrado da religião islâmica.

Além disto, massacres realizados por soldados americanos como em Panjwai, onde um sargento matou dezesseis civis afegãos, criaram um ambiente de alienação das forças da ISAF com a população afegã, que passou a temer os soldados ocidentais tanto quanto o Talibã, que por sua vez, também estava envolvido em uma série de massacres de civis no país.

Isso estimulou uma pressão pela retirada das tropas e novas negociações, que fracassaram, enquanto a retirada de boa parte dos soldados se deu entre 2012 e 2014, quando foi encerrada a missão de combate da ISAF, sendo iniciada uma nova fase na guerra, com o grosso dos combates ocorrendo entre o Talibã e as forças do governo afegão.

A partir de dezembro de 2014, se iniciou a operação Resolute Support, com a diminuição dos efetivos da ISAF e dos EUA, que passaram a apoiar as forças afegãs com treinamentos, logística e poder aéreo, além de uma força-tarefa de operações especiais para contraterrorismo.

A partir de 2015, com a presença de forças internacionais contida em bases divididas com as forças afegãs, o Talibã passou a empreender uma série de ofensivas contra o governo afegão, iniciando uma lenta conquista de diversas províncias do país, além de lançar ataques mais ousados, inclusive em Cabul, onde o Parlamento afegão foi atacado.

Também em 2015, foram reiniciadas negociações para encerrar o conflito, desta vez por iniciativa da China, que tem grande preocupação com uma possível influência da ação de militantes sobre suas províncias com população muçulmana, em especial Xinjiang. Outro elemento é que o Talibã passou a experimentar uma divisão interna forte, com luta entre seus membros, que acabaram saindo do grupo e declarando afiliação ao grupo terrorista Estado Islâmico do Iraque e do Levante. Este novo grupo foi intitulado “Província Khorasan” (ISIL-KP, em inglês).

Apesar de bem-sucedido na maior parte dos combates contra o governo afegão, conseguindo tomar várias cidades, as quais o Talibã só se retirava após o uso de poderio aéreo dos EUA e o apoio de forças da operação Resolute Support, a chegada do grupo Estado Islâmico alterou todo o panorama do conflito afegão.

Entre 2015 e 2020, passou a ser comum pequenas tréguas entre o governo afegão e o Talibã enquanto um ou os dois enfrentavam o ISIL-KP em ofensivas. O Talibã também passou a realizar a “Ofensiva da Primavera”, que visava a reconquista de muitos distritos do país, causando um grande número de baixas ao governo afegão, o que causou um envio de tropas dos EUA, para impedir a queda de mais cidades e distritos.

A partir de 2017, com a assunção de Donald Trump nos EUA, aumento o uso de poder aéreo americano no Afeganistão. Grande quantidade de munições foram utilizadas contra o Talibã e outros grupos militantes como o ISIL-KP para apoiar o governo afegão em sua luta. As regras de engajamento das forças do EUA no Afeganistão também foram flexibilizadas, em especial por causa do aumento no número de casos de atentados onde soldados afegãos abriram fogo contra soldados americanos ou da ISAF.

A presença americana aumentou, com 14 mil soldados, e um maior poderio aéreo a disposição das forças americanas e afegãs, o que deteve o Talibã em sua ofensiva e abriu espaço para o reinício das negociações em 2019. EUA e Talibã passaram a negociar a paz no Catar, e chegaram a estabelecer um compromisso em fevereiro daquele ano, mas uma série de ataques congelou as negociações em setembro assim como um ataque suicida que eliminou parte da liderança do Talibã.

Em dezembro de 2019 as negociações foram retomadas no Catar, desta vez produzindo um compromisso entre o Talibã e os EUA, assinado em 29 de fevereiro de 2020. A negociação envolve a retirada das forças estrangeiras do Afeganistão em 14 meses, um mecanismo de diálogo entre o Talibã, o governo e a sociedade afegã, além da libertação de prisioneiros talibãs e soldados e policiais em poder do Talibã, o enfrentamento ao ISIL-KP e outros grupos fundamentalistas, a cessação das hostilidades, respeito aos direitos das mulheres.

O governo afegão, que não estava presente as negociações, resiste à ideia de libertar prisioneiros talibãs, assim como vê com maus olhos a partida das forças estrangeiras, cuja presença é decisiva para o treinamento, a logística, o equipamento das forças afegãs, bem como o poderio aéreo, importante para enfrentar o Talibã.

Há possibilidade de o acordo não ser mantido por uma ou mais partes, se observado o histórico do conflito. Mas deve se destacar o fato de que os dois lados estabeleceram um diálogo longo e as concessões feitas por Talibã devem ser percebidas como algo relevante. A paz, pela primeira vez, pode se tornar uma realidade no Afeganistão, que sofre com guerras desde 1979.

O acordo EUA – Talibã e um futuro incerto

O destino do acordo ainda é incerto, uma vez que o governo afegão não foi parte nas negociações e resiste as pressões para libertar prisioneiros talibãs, tendo feito uma oferta inicial de libertar 1500 prisioneiros, desde que façam um compromisso de não retornar a enfrentar o governo afegão.

O Talibã se disse pronto para negociar com o governo afegão e a sociedade civil local, mas somente o fará se os 5 mil prisioneiros fossem libertados. Com a demora do presidente afegão, Ashraf Ghani, em aceitar os termos, em 3 de março o Talibã retomou os ataques as forças do governo afegão, evitando entrar em combate com tropas americanas. Apesar disto, os EUA realizaram ataques aéreos contra forças do Talibã em 4 de março.

Um fator que também dificulta muito a que o acordo avance no referente ao diálogo entre o Talibã, o governo afegão e a sociedade civil, se nota ao que os dois candidatos a presidente nas últimas eleições de setembro de 2019, se declararam vencedores. Ghani, e Abdullah Abdullah, (um senhor da guerra desde o tempo dos soviéticos e ligado a Ahmed Shah Massoud), em um pleito conturbado, no qual observadores internacionais registraram indícios de fraude e admoestação de eleitores, fora as ameaças do Talibã para que a população não votasse e clamasse que a eleição era ilegítima.

Apesar do reconhecimento internacional da vitória do presidente Ghani, Abdullah Abdullah instalou um governo no norte do país e passou a nomear governadores para as províncias. Isto levou os EUA a manifestarem apoio ao presidente Ghani e tentarem uma trégua entre este e Abdullah Abdullah, por meio do Secretário de Estado, Mike Pompeo. A tentativa fracassou e os EUA, para pressionar por uma resolução da crise, cortou por volta de um bilhão de dólares em ajuda ao Afeganistão. Caso a crise não se resolva em pouco tempo, há uma de ameaça de corte de mais um bilhão de dólares da ajuda para o Afeganistão em 2021.

O interesse americano em encerrar a guerra é claro, mas as dificuldades no Afeganistão, têm sido fator complicador para os planos americanos. Apesar disso, os EUA já iniciaram a redução das tropas no país, de maneira a cumprir sua parte no acordo, retirando parte dos 14 mil militares para a meta de 8600 militares até o final do ano.

Fora a complexa situação interna do Afeganistão, fatores externos podem complicar ou facilitar o sucesso do acordo entre EUA e Talibã. Países da região, como Paquistão, Irã, Rússia e China tem influência sobre atores no Afeganistão, ou possuem interesse em que a situação não se espalhe para seus territórios.

A saída das tropas americanas no Afeganistão representa uma vitória para a Rússia e a China. Para a primeira, a saída dos EUA da região permite que os russos voltem a operar com mais facilidade em um local no qual sempre tiveram grande influência, mesmo com a presença americana, países vizinhos ao Afeganistão passaram a contar com tropas russas em seu território. Além disto, os russos já sediaram conversações entre senhores da guerra, o governo afegão e o Talibã.

Para a China, a saída dos EUA do Afeganistão representa um risco e também uma janela de oportunidade. Os chineses não interesse em que o Afeganistão se torne instável como foi na década de 1990, uma vez que a fronteira afegã com a China é na província de Xinjiang, com população majoritariamente muçulmana e alvo de pesadas políticas repressivas de Pequim para impedir qualquer dissonância ou insurgência terrorista. Um Afeganistão estável também representa para os chineses segurança para seu grande projeto geopolítico, Cinturão e Rota, que tem ramificações na Ásia Central.

Ao Irã, a saída dos EUA do Afeganistão diminui a pressão sobre a República Islâmica, com a retirada das tropas americanas, mas, no entanto, há um risco, uma vez que a presença de grupos terroristas sunitas no Afeganistão abre espaço para ataques ao Irã, majoritariamente xiita. Portanto, a República Islâmica não aprova o acordo, já que ele abre espaço para uma presença militar permanente dos EUA no Afeganistão.

Para o Paquistão, o acordo, se implementado como negociado entre EUA e Talibã, pode trazer grandes ganhos, pois o país foi um dos partícipes da negociação, e recuperar status junto aos EUA, resultando em maior ajuda por parte dos americanos. Porém, os paquistaneses tem receio de grupos que estão no Afeganistão como o ISIL-KP e por isso urgem que as conversações sigam adiante bem como ações para combater tais grupos, uma vez que eles podem se refugiar em regiões do Paquistão vizinhas ao Afeganistão.

A Índia observa atentamente o acordo, já que o Afeganistão sempre foi uma de suas preocupações e espaço de disputa política e diplomática com o Paquistão. O governo indiano já expressou em comunicados o apoio ao governo afegão e não deseja um Afeganistão controlado pelo Talibã, pois colocaria a perder todo o investimento indiano no país, assim como, aos olhos indianos, colocaria aquele país sobre controle paquistanês.

O status atual do acordo é de estar sendo implementado, uma vez que o Talibã está em constante comunicação com os EUA, em especial o enviado americano para a paz no Afeganistão, Zalmay Khalilzad. Em 23 de março, o Talibã e o governo afegão iniciaram negociações diretas, com observação dos EUA, Catar e da Cruz Vermelha Internacional.

O futuro do acordo é incerto. Com a complexa situação do governo afegão, dividido e o Talibã forte a mesa, com os EUA interessados em se retirar o quanto antes do país, não se sabe realmente se o grupo irá cumprir as promessas assumidas de diálogo com o governo e sociedade afegãs, bem como respeitar os direitos das mulheres.

Quanto aos EUA, há um temor de que o desejo por se livrar do conflito possa levar a uma situação desastrosa, pela falta de interesse dos políticos americanos pelo Afeganistão, e repetir-se o que aconteceu com o Vietnã do Sul após a retirada das forças americanas em 1973.

De qualquer maneira, a assinatura do acordo e as negociações que estão ocorrendo são atos inéditos em uma guerra que já dura mais de 18 anos para os EUA, e no caso afegão, tragou gerações inteiras, desde 1979. É possível que o acordo se mantenha, se os atores permaneceram comprometidos com ele. Desta maneira, a geopolítica da Ásia Central assistirá uma grande mudança, com implicações globais.


Para saber mais:

BARNO, David. Challenges in Fighting a Global Insurgency. In: Parameters, The United States Army War College. Carlisle, 2006.

CHAN, Samuel. As Sentinelas da Democracia Afegã: o Exército Nacional Afegão. In: Military Review, p. 15-32, Maio-Junho de 2009.

Taliban, Afghan government to discuss prisoner release, Al Jazeera. https://www.aljazeera.com/news/2020/03/taliban-afghan-government-discuss-prisoner-release-200325154406217.html

The US-Taliban peace deal: A road to nowhere https://www.brookings.edu/blog/order-from-chaos/2020/03/05/the-us-taliban-peace-deal-a-road-to-nowhere/

Q&A: What the US-Taliban agreement means for Afghanistan and why Iran should be involved, Responsible Statecraft https://responsiblestatecraft.org/2020/03/10/qa-what-the-us-taliban-agreement-means-for-afghanistan-and-why-iran-should-be-involved/

Getting Afghanistan to Peace Will Require Persistent U.S. Engagement, Center for Strategic and International Studies https://www.csis.org/analysis/getting-afghanistan-peace-will-require-persistent-us-engagement

U.S.-Taliban Peace Deal: What to Know, Council for Foreign Relations https://www.cfr.org/backgrounder/us-taliban-peace-deal-agreement-afghanistan-war

10 Years of Afghan War: How the Taliban Go On, Newsweek https://www.newsweek.com/10-years-afghan-war-how-taliban-go-68223

Fragility of U.S.-Taliban Deal Underscored as Attacks Increase in Afghanistan, Time https://time.com/5796592/afghanistan-peace-deal-taliban-attacks/

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