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Estados Unidos e Rússia: Esboços de Territorialidade no Ciberespaço?

Publicado: Terça, 12 de Fevereiro de 2019, 08h01 | Última atualização em Quinta, 06 de Janeiro de 2022, 13h47 | Acessos: 1627

Marcos Luiz da Cunha de Souza

Breno Pauli Medeiros

Luiz Rogério Franco Goldoni

Em matéria de 12 de fevereiro do corrente, o jornal The Washington Post (Acessado em: 20 fev. 2019) destaca o discurso do Secretário de Estado dos Estados Unidos, Mike Pompeo, a respeito da aproximação dos países da Europa Oriental com a empresa chinesa de telecomunicações Huawei. Pompeo ressaltou o perigo da influência chinesa e russa na região para os membros da União Europeia e aliados da OTAN.

Segundo o Secretário de Estado norte-americano, as nações teriam que optar entre manter relações com a Huawei ou os Estados Unidos. Tal retórica ganha outro vulto em vista do local da declaração: a Eslováquia. A Huawei é percebida como um grande ator cibernético e de comunicações digitais nos países do leste europeu. Por detrás desse discurso pairam apreensões relativas ao iminente advento da internet 5G, tecnologia fornecida pela empresa chinesa na região. A busca pela proeminência dos EUA relativa à tecnologias de comunicação, inclusive, é destacada no documento National Cyber Strategy of United States of America de 2018 (Acessado em: 20 jan. 2019).

O espaço cibernético é compreendido pelos EUA, em sua Estratégia Nacional de Defesa de 2018. (Acessado em 25 fev. 2019), como um domínio de combate e prioridade para o governo. Nesse sentido, fica clara a pretensão dos EUA em controlar a tecnologia 5G e a percepção da mesma como uma ferramenta desse novo campo de batalha:

The United States Government will work with the private sector to facilitate the evolution and security of 5G, examine technological and spectrum-based solutions, and lay the groundwork for innovation beyond next-generation advancements (USA, 2018).4

O Secretário de Estado também apontou que o período do pós-Guerra Fria, por ele denominado de “década do desacoplamento”, criou um vácuo permitindo ações mais incisivas e incursões na Europa Oriental tanto pela Rússia quanto pela China. Vale ressaltar, que em seu discurso, Pompeo deu garantias para o povo eslovaco e demais países, considerados por ele como vítimas do sufocante poder russo e chinês, que os EUA estarão engajados e presentes no local.

Ainda em conformidade com a reportagem do Washington Post, a resposta dada pela porta voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Hua Chunying, salientou que os esforços feitos pelos EUA fazem parte de uma campanha injusta e imoral para desestabilizar os parceiros comerciais chineses, por intermédio da criação de teorias e ameaças como forma de intimidação. Consequentemente, o CEO da empresa Huawei, William Wu, encorajou que todos os governos observassem de forma objetiva as evidências de quaisquer ameaça e mantivessem uma postura interessada e aberta para a criação das redes 5G. Além disso, afirmou que excluir um fornecedor de desenvolvimento tecnológico em segurança cibernética prejudicará o progresso técnico como um todo e irá gerar distúrbios no mercado em relação à concorrência.

Os acontecimentos mencionados se relacionam com uma temática que vem ganhando proeminência em decorrência da interação humana no ciberespaço: a questão da territorialidade no domínio cibernético. Essa temática se torna ainda mais complexa quando consideradas as lógicas de poder do domínio cibernético e das concepções tradicionais de território.

A ampla compreensão de territorialidade que fundamenta as relações internacionais atuais tende a considerá-la como a “tentativa de um indivíduo ou um grupo de atingir, influenciar ou controlar pessoas, fenômenos e relacionamentos, através de delimitação e afirmação do controle sobre uma área geográfica” (HAESBAERT, 2002, p. 119). Nesse sentido, a delimitação de um recorte espacial no qual o Estado opera internamente e externamente, mediante o controle de fluxos de entrada e saída de pessoas, mercadorias e informações, configura uma lógica zonal de poder.

Por outro lado, apreciada a definição de ciberespaço proposta pelo Dicionário de Termos Militares do Departamento de Defesa Norte-Americano como "um domínio global dentro do ambiente de informações que consiste na rede interdependente de infraestruturas de tecnologia da informação e dados residentes, incluindo a Internet, redes de telecomunicações, sistemas de computadores, processadores e controladores integrados" (Acessado em 21 jan. 2019), deve ser destacada a concepção do ciberespaço como um domínio composto por camadas físicas (a infraestrutura e hardware) e a camada imaterial (software, informações e dados de maneira geral). Nesse contexto, as camadas imateriais se interconectam por intermédio dos fluxos informacionais que compõem a internet e outras redes, correspondendo à uma lógica reticular, dessemelhante da lógica zonal tradicional do território.

No entanto, a compreensão do ciberespaço como domínio de interconectividade global não impediu os EUA e outros países de tomarem medidas de exclusão a certos produtos como uma tentativa de territorializar o espaço cibernético mediante o controle das formas de acesso ao mesmo. Isto é, ao negar a entrada e/ou a utilização de determinados produtos (seja de software ou hardware), os países de origem dos mesmos não teriam acesso ao território cibernético em questão. Dessa forma, diante da dificuldade de se controlar fluxos digitais e imateriais, Estados tentam aplicar sua territorialidade sobre aspectos mais tangíveis do ciberespaço, proibindo a utilização de determinados produtos oriundos de outros países.

Essa prática carece de certa objetividade, visto que o ciberespaço é composto por uma complexa rede de camadas físicas e imateriais; e devido ao fato de que medidas tradicionais de controle zonal dos fluxos materiais não necessariamente se aplicam à lógica reticular de fluxos digitais do ciberespaço.

Outro evento que ilustra a concepção de exclusão com vistas a origem da empresa ou software foi o reconhecimento da ameaça de se ter um software russo nos computadores dos civis e militares do governo dos EUA em 2017, (Acessado em: 20 jan. 2019). Isto se evidenciou pelo banimento dos sistemas da empresa Kaspersky Lab, que fornecia proteção cibernética por meio de programas antivírus, por um projeto de lei sancionado pelo senado norte-americano.

Ainda no que se refere à interferências governamentais no ciberespaço, também em fevereiro deste ano, Vladimir Putin reafirmou que seu país se desconectará da internet para testar a resiliência russa em caso de um ataque cibernético (Acessado em: 20 jan. 2019). A intenção é avaliar a capacidade de independência da Runet, a internet russa, das demais redes. O ambicioso projeto proposto pelo parlamento russo, em dezembro de 2018, teria como fim criar conexões próprias mediante pontos de troca de informação gerenciadas pela Roskomnadzor, a agência reguladora de telecomunicações e mídia da Rússia.

Devido à intrincada interconectividade das camadas de hardware e software que permeiam o ciberespaço, é extremamente difícil rastrear ou mapear as conexões e/ou o país de origem dos serviços utilizados. Nesse contexto, o desligamento da internet russa pode resultar em sérias implicações não somente para a Rússia como, também, para o resto das redes no mundo, como aponta Paul Barford, professor da Universidade de Wisconsin-Madison que estuda redes de computadores (MATSAKIS, 2019). A interrupção das conexões pode suscitar falhas catastróficas que poderiam extrapolar para além do território russo e até mesmo causar danos sistêmicos, se espalhando pelo ciberespaço e afetando até o funcionamento de sistemas de transportes e hospitais alhures.

Segundo Andrew Sullivan, CEO da organização sem fins lucrativos Internet Society - que promove o desenvolvimento da internet aberta, a Rússia busca construir um sistema que possua caminhos alternativos e possa ser desligada a qualquer momento. Contudo, para Sullivan, isso enfraqueceria a rede russa, visto que, a tornará menos confiável e possível de ser desligada “acidentalmente”, já que ela poderá ser desativada propositalmente, facilitando ataques como shutdowns, que buscam desligar computadores ou redes em massa (MATSAKIS, 2019).

As medidas de exclusão tomadas pelos estadunidenses provocaram reações diferentes para cada um dos países e seus produtos excluídos nos casos supracitados. A China, por intermédio de seu Ministério das Relações Exteriores, argumenta que a postura adotada no caso da Huawei pode ser interpretada como antidemocrática. Por seu turno, a Rússia e o teste do desligamento podem ser encaradas como um reflexo das práticas adotadas pelos Estados Unidos em relação a proibição dos softwares russos e discursos proferidos com intuito de construir uma narrativa de ameaça. O teste, para além de uma tentativa de tornar a Rússia independente da internet global, também pode ser interpretado como um reforço das suas capacidade de ciberguerra.


1 Graduando em Defesa e Gestão Estratégica Internacional na Universidade Federal do Rio deJaneiro (UFRJ). Estagiário do Instituto Meira Mattos (IMM) e pesquisador do Observatório Militar daPraia Vermelha (OMPV).
2 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Militares da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (PPGCM/ECEME). Mestre em Ciências Militares pela ECEME. Pesquisador adjunto da Área Temática “Defesa Cibernética” no OMPV.
3 Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor do Programa dePós-Graduação em Ciências Militares da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército(PPGCM/ECEME). Coordenador acadêmico da Área Temática “Defesa Cibernética” do OMPV.
4 "O Governo dos Estados Unidos trabalhará com o setor privado para facilitar a evolução e a segurança do 5G, examinar soluções tecnológicas baseadas em espectro e estabelecer as bases para a inovação além dos avanços da próxima geração." (USA, 2018, tradução nossa).

Referências:

  1. DOD, U. S. Dod dictionary of military and associated terms. 2019.
  2. HAESBAERT, R. Territórios Alternativos. Niterói: EdUFF; São Paulo: Contexto, 2002.
  3. LEE, Matthew. Pompeo warns eastern Europe on Chinese and Russian meddling. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/business/technology/pompeowarns-eastern-europe-on-chinese-and-russian-meddling/2019/02/12/bd7bb2a0-2ecd-11e9-8781-763619f12cb4_story.html?utm_term=.dcfad946931d Acesso em: 20 jan. 2019.
  4. MATSAKIS, Louise. WHAT HAPPENS IF RUSSIA CUTS ITSELF OFF FROM THE INTERNET. Disponível em: https: //www.wired.com/story/russia-internet-disconnect-whathappens Acesso em: 20 jan. 2019.
  5. USA. National Cyber Strategy of United States of America. Washington, DC: White House, 2018.
  6. USA. National Defense Strategy. Washington, DC: Department of Defense, 2018.
  7. VOLZ, Dustin. Trump signs into law U.S. government ban on Kaspersky Lab software. Reuters, 2017. Disponível em: https: //www.reuters.com/article/us-usa-cyber-kaspersky/trumpsigns-into-law-u-s-government-ban-on-kaspersky-lab-softwareidUSKBN1E62V4 Acesso em: 20 jan. 2019.
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