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Covid-19: Um novo desafio no conturbado ambiente das operações de peacekeeping

Publicado: Terça, 31 de Março de 2020, 08h01 | Última atualização em Quinta, 06 de Janeiro de 2022, 13h55 | Acessos: 1190

Guilherme M. Dias1

 Não há novidade na relação entre operações de paz e questões de saúde pública. Em grande medida, as áreas afetadas por conflitos que levam o Conselho de Segurança a definir pelo envio de uma força de estabilização, são desprovidas de infraestrutura básica e marcadas pela desigualdade e pobreza extrema. Muitas vezes os relatórios de comissões de experts vão apontar essas características como algumas das raízes dos conflitos. Com aparato estatal precário, muitas vezes cabe aos atores internacionais operacionalizar uma resposta efetiva quando problemas sanitários surgem e adicionam uma nova dimensão de risco às populações locais.

Na última década, as Nações Unidas se viram envolvidas em pelo menos duas crises graves: o surto de cólera no Haiti em 2010 e a epidemia de ebola no nordeste da República Democrática do Congo em 2019. Crises distintas em países diferentes e com responsabilidades específicas em cada cenário, é esta leitura possível acerca do histórico das operações de paz em relação a ameaças a saúde pública.

No caso haitiano, apesar de não reconhecidos formalmente, são diversos os indícios de que as falhas na estrutura física de instalações do contingente nepalês levaram a contaminação de um rio e a disseminação da cólera no Haiti (FREEDMAN E LEMAY-HEBERT, 2015). A pouca inclinação da ONU em assumir maiores responsabilidades pelo surto que vitimou centenas de haitianos limitou o debate público acerca da relação direta entre as condições de saúde dos peacekeepers na área de conflito e sua repercussão para as populações locais. A perspectiva de elementos externos como vetores de doenças coloca em xeque a credibilidade e os objetivos da missão (AGBEDAHIN, 2019).

Por outro lado, a presença de forças de paz em ambientes no quais epidemias surgem, auxilia na mobilização de atores internacionais conforme as crises escalam. No contexto da crise do ebola iniciada em 2019, a República Democrática do Congo teve quase 4 mil casos com um percentual de 65% de letalidade. A dimensão da epidemia poderia ser ainda pior sem a atuação internacional, dadas as restrições orçamentárias e a dificuldade do governo de Kinshasa em prover serviços de saúde no leste do país, exatamente a região na qual os confrontos com milícias e grupos paramilitares seguem colocando em risco a população congolesa. A resposta ao ebola é um exemplo do desafio de lidar com as limitações existentes na RDC.

Estabelecida desde 2010, a MONUSCO é um ator central e transcende a imagem de operação de paz tradicional. Trata-se de uma estrutura que possui ramificações que perpassam a estabilização do país em termos de segurança e defesa, mas também se estendem para questões de desenvolvimento e foram relevantes na coordenação dos esforços internacionais de suporte ao enfrentamento do ebola. A interface entre MONUSCO e OMS auxiliou o governo congolês no provimento de equipamentos médicos e treinamento de profissionais, além das campanhas de conscientização da população em relação a transmissão do ebola (GOSTIN ET AL, 2019).

Prestes a completar 10 anos e com todos os desgastes que a longa presença de uma força internacional acaba sofrendo, o suporte da MONUSCO na questão do ebola é uma dimensão crucial em sua atribuição humanitária e no reforço da percepção positiva por parte de uma população fragilizada pela conflagração. A capacidade militar também foi demandada a partir dos ataques de grupos armados contra centros de tratamento, levando a uma resposta mais incisiva que mobilizou forças internacionais e o exército congolês. Com todos os questionamentos, crises como a do ebola reforçam o papel da cooperação internacional e da interface entre diferentes temas como importantes para a resolução de questões que colocam vidas em risco.

Em relação ao momento atual, o grande desafio é a dimensão global da crise da Covid-19. Há uma busca de diversos Estados por recursos, financeiros e médicos, o que afeta diretamente nas capacidades da OMS em apoiar missões das Nações Unidas e países mais pobres na formulação e operacionalização de respostas adequadas.

Num momento em que a agência multilateral da área da saúde se vê diante de demandas de todas as regiões do planeta, coordenar o esforço de enfrentamento da crise sanitária em um contexto de conflito armado é ainda mais problemática. Um dos temores que se apresenta é em relação ao desafio de manter um grande contingente no campo, civis e militares que se deslocam de diversas partes do mundo e que podem estar expostos ao novo coronavírus, bem como expor as populações locais e atuarem como vetores da Covid-19.

A RDC registrou sua primeira morte por Covid-19 em 21 de março. Nesta data, o país confirmava 23 casos da doença e o temor de um espalhamento rápido apesar das estratégias de contenção estabelecidas até o presente momento. No âmbito da MONUSCO a rotação de contingentes foi suspensa e o discurso oficial aponta na direção de um foco definido na prevenção e proteção. Em alguma medida, as ações relativas aos integrantes da missão acabam transbordando para os congoleses. O país, recém saído da crise do ebola, planeja utilizar a estrutura para isolar os contaminados e tratá-los. Da mesma forma, espera replicar o modelo cooperativo estabelecido por meio da MONUSCO e OMS para superar esta nova epidemia.

A questão que se coloca é que as capacidades dos atores internacionais parecem cada vez mais insuficientes para as demandas crescentes em um contexto de aumento exponencial de pessoas contaminadas e mortes. Países como a RDC tendem a, mesmo com o “legado” do ebola em termos de experiência e equipamentos, sofrer as consequências de décadas de pobreza, desigualdade e violência. Fenômeno esse que tende a se repetir em diferentes áreas de atuação das operações de paz, especialmente nas áreas mais pobres e vulneráveis dos continentes africano e asiático.


1 Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Militares da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército.


Referências:

AGBEDAHIN, K. The Haiti Cholera Outbreak and Peacekeeping Paradoxes. Peace Review. Vol 31(2): 190-198, 2019.

BRETT-MAJOR, DM. Peace is a better focus than Ebola in the Democratic Republic of the Congo. Health Security. 2019 Jun 14; 17(3): 251-252. doi.10.1089/hs.2019.0044.

DAVIES, S.E. and RUSHTON, S., Healing or Harming? United Nations Peacekeeping and Health, New York: International Peace Institute, March 2015.

FREEDMAN, R. and LEMAY-HEBERT, N. ‘Jistis ak Reparasyon pou Tout Viktim Kolera MINUSTAH’: The United Nations and the Right to Health in Haiti. Leiden Journal of International Law, 28, pp 507-527, 2015 doi:10.1017/S0922156515000278

GOSTIN, L.O. et al, Ebola and war in the Democratic Republic of Congo: Avoiding failure and thinking ahead. JAMA. 2019 Jan 22; 321(3): 243-244. doi:10.1001/jama.2018.19743.

HODGE JR, J. and FLEMING, H., Saving Lives Now From Ebola in Africa. Disaster Medicine and Public Health Preparedness, 1-2. doi:10.1017/dmp.2019.135

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