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Hipóteses de Emprego da Força Terrestre e o combate às epidemias

Publicado: Terça, 31 de Março de 2020, 08h01 | Última atualização em Quinta, 06 de Janeiro de 2022, 13h56 | Acessos: 1698

Mariana Carpes1

 Em reunião da presidência de República com ministros de Estado em 18 de março de 2020, o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, disse: “quando tem guerra, os brasileiros podem contar com as Forças Armadas (...) Estamos trabalhando nas possíveis ajudas e auxílios que podemos dar. Comitê de crise do Ministério da Saúde é que coordena isso”. Na mesma reunião, o representante desta pasta, Luiz Henrique Mandetta, destacou o perfil interagências da operação de combate à COVID-19, ao mencionar tratarem-se de “ações interministeriais e de equipes extremamente técnicas”.

Dando seguimento às declarações feitas naquela reunião, no dia 20 de março, o Ministério da Defesa (MD) ativou o Centro de Operações Conjuntas (COC) e 10 Comandos Conjuntos abrangendo as cinco regiões do Brasil (Sul, Sudeste, Norte, Nordeste e Centro-Oeste). O objetivo do COC é o planejamento e a coordenação das ações das Forças Armadas no combate à COVID-19 em cada uma das regiões. Ainda, foi criado um Comando de Operações Aeroespaciais (COMAE) para dar suporte às operações, e com funcionamento permanente.

Segundo o sítio eletrônico do MD, três hipóteses de emprego foram inicialmente levantadas. São elas: o controle de passageiros e tripulantes em portos, aeroportos e território marítimo, além do controle das fronteiras; descontaminação de pessoal, materiais e ambientes por unidades especializadas em Defesa Química, Biológica, Radiológica e Nuclear (DQBRN); e, ainda sob avaliação, a construção de postos de triagem e de hospitais de campanha.

Como é de amplo conhecimento, essa não é a primeira vez que as Forças Armadas são instadas a atuar em território nacional. Talvez o caso mais recente e de maior repercussão tenha sido em 2018, quando a segurança pública do Estado do Rio de Janeiro ficou sob o Comando do General Braga Neto, no contexto da Intervenção Federal. Mas, em outros momentos, antes e depois deste episódio, as Forças Armadas atuaram nas chamadas Operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e nas chamadas Ações Subsidiárias. A exemplo de GLO, tivemos também no Estado do Rio de Janeiro o emprego das Forças Armadas para o combate ao crime organizado nas favelas da Maré e do Alemão. Como ações subsidiárias, podemos citar as campanhas de combate ao mosquito Aedes Aegypti, transmissor da dengue, zika, chikungunya e febre amarela urbana, bem como a vacinação em massa realizada no âmbito da Operação Acolhida no Norte do país. Apesar do amplo emprego das Forças Armadas em território nacional - poder-se-ia citar aqui também o patrulhamento da costa, o traslado de órgãos para transplantes, além da ação em presídios - a cada nova hipótese de emprego das FA que extrapole sua missão precípua, qual seja, a proteção do território nacional, um novo debate emerge na sociedade sobre a pertinência, legalidade, e justificativas para as GLOs e ações subsidiárias. Aqui, não me deterei aos detalhes deste debate, amplamente documentado e discutido na página do OMPV, na área de Segurança Pública e Crime Organizado. Outrossim, recuperarei o amparo legal mais geral para essas ações, para então focar na pertinência e relevância do atual emprego para o combate à corrente epidemia.

De todas as Constituições Federais (CF), apenas aquela de 1937 não considera o papel das Forças Armadas para a garantia da lei e da ordem e garantia dos Poderes Constitucionais. Especificamente, a CF de 1988, em seu Artigo 142 define que as Forças Armadas “são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. Do mesmo modo, a Lei Complementar n.97 de 9 de junho de 1999 observa que “sem comprometimento de sua destinação constitucional, cabe também às Forças Armadas o cumprimento das atribuições subsidiárias”. O entendimento basilar para o emprego das Forças Armadas em ações subsidiárias e operações de GLO é o esgotamento, insuficiência ou inexistência das capacidades dos atores da segurança pública definidos pelo Artigo 144 da CF de 1988.

Diante do exposto, porque solicita-se o emprego das Forças Armadas em resposta a atual conjuntura nacional? Ocorre que, o cenário enfrentado pelo Brasil e pelo mundo, a saber, uma emergência em saúde pública de interesse internacional, posteriormente qualificada como uma pandemia, é situação atípica e desafiadora para qualquer país, dado seu potencial de causar medo, insegurança e uma consequente elevação no número de doentes a sobrecarregar o sistema de saúde. Particularmente no caso brasileiro, a COVID-19 encontra um sistema público de saúde com problema crônico de superlotação, falta de profissionais, materiais e o enfrentamento de outros quadros epidêmicos concomitantes. Não se trata aqui de fazer juízo de valor ao Sistema Único de Saúde (SUS), apenas de constatar o quadro atual. Soma-se a este contexto, o entendimento técnico da área de saúde, qual seja, o da adoção do isolamento social ou da quarentena como medida de diminuição da taxa de disseminação do vírus. Isso implica não só a suspensão do funcionamento de escolas, indicação de trabalho remoto para os profissionais que não prestam serviços essenciais, e a suspensão de serviços de lazer, mas também um maior monitoramento das ruas e recomendação de que a população retorne o mais prontamente possível às suas casas. Todo esse quadro exige mais dos atores responsáveis pela segurança pública e sistema de saúde, contribuindo para o quadro de saturação ou esgotamento das capacidades permanentes destinadas a essas funções: corpos de bombeiro, polícias e, especificamente no caso de pandemia, dos agentes de saúde. É neste cenário que a convocação das Forças Armadas para o combate à COVID-19 se mostra não só justificável, mas necessária.

Concomitantemente, cabe ainda perguntar se, uma vez convocadas, as Forças Armadas teriam algo a acrescentar qualitativamente em termos de capacidade e conhecimento para a resposta a ameaça enfrentada. A resposta a esta pergunta nos remete às experiências adquiridas ou aprimoradas em um passado recente. Refiro-me aqui aos chamados grandes eventos - Olimpíadas, Copa do Mundo, Copa das Confederações e Jornada da Juventude entre outros - sediados pelo Brasil nos últimos anos. Nesse período, o país precisou adequar-se aos padrões internacionais quer no que se refere a sua infraestrutura, quer na capacitação de pessoal e compra de materiais. Também as Forças Armadas tiveram à época papel fundamental, em coordenação com os demais atores responsáveis por áreas como saúde e segurança. Importante para o presente debate foi o adestramento, a compra de materiais e a experiência em ambiente interagência do Batalhão de Defesa Química, Biológica, Radiológica e Nuclear do Exército Brasileiro (1. Btl DQBRN) e da Cia DQBRN do Exército Brasileiro e seus equivalente na Marinha e Forças Aérea. Especificamente, o 1. Btl DQBRN e a Cia DQBRN do Exército contam com detectores, equipamentos de proteção individual (EPI), laboratórios móveis para a identificação de agentes químicos e biológicos e para agentes radiológicos e nucleares, e equipamentos de descontaminação. Além destas capacidades, o Exército atualizou a sua doutrina de ensino e emprego QBRN e adquiriu a experiência de trabalho em ambiente interagência - precisamente o contexto que se apresenta para o combate à COVID-19. Da experiência adquirida, cumpre destacar a capacidade de reconhecimento, identificação e descontaminação de áreas, pessoas, e materiais, além da varredura de áreas (como hotéis, estádios e alojamentos realizadas durantes os Grandes Eventos). Além disso, cumpre notar o papel que estas Organizações Militares (OM) tiveram no treinamento de pessoal das áreas de saúde, defesa civil, polícias e corpo de bombeiro entre outros, sinalizando o transbordamento da expertise adquirida para outros atores da sociedade brasileira. Tal acúmulo pode e deve ser empregado para o bem da sociedade quando o desafio que se enfrenta se sobrepõem às capacidades individuais de cada órgão competente.


1 Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Militares, Escola de Comando e Estado-Maior do Exército.


Fontes:

https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/noticias/2020/03/bolsonaro-detalha-acoes-do-governo-federal-de-enfrentamento-ao-coronavirus.

https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/03/21/defesa-coloca-em-operacao-centro-que-vai-coordenar-uso-de-militares-nas-acoes-contra-o-coronavirus.ghtml

https://www.google.com/search?q=OMPV+seguran%C3%A7a+p%C3%BAblica&rlz=1C1CH

http://ompv.eceme.eb.mil.br/masterpage_area_at.php?id=3

http://www.defesanet.com.br/dqbrn/noticia/35699/A-capacidade-de-Defesa-Biologica-do-Exercito-Brasileiro/

https://www.defesa.gov.br/noticias/67179-centro-de-operacoes-conjuntas-do-ministerio-da-defesa-e-ativado-para-acoes-de-combate-ao-covid-19

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp97.htm

https://nacoesunidas.org/oms-declara-coronavirus-emergencia-de-saude-publica-internacional/

https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/03/11/oms-declara-pandemia-de-coronavirus.ghtml

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