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Covid-19 e segurança alimentar

Publicado: Sexta, 17 de Abril de 2020, 08h01 | Última atualização em Quinta, 06 de Janeiro de 2022, 13h56 | Acessos: 1234

Ivi Elias
Doutoranda em Relações Internacionais PPGRI-UERJ

 Historicamente, epidemias como o Ebola, SARS e MERS tiveram impactos negativos na segurança alimentar e nutricional, particularmente de grupos mais vulneráveis como idosos, crianças e mulheres. Da mesma forma, a pandemia da Covid-19 traz grandes desafios ao campo da segurança alimentar. Em primeiro lugar, está o potencial de disseminação do vírus ao atingir países com redes de assistência social e de saúde desestruturadas e também populações móveis como refugiados. Outro fator é o aumento da mortalidade do vírus ao infectar pessoas em situação de insegurança alimentar e desnutrição crônica. A pandemia também pode ocasionar interrupções na cadeia global de suprimentos, escassez de alimentos e alta dos preços. Por fim, há o risco de desaceleração e recessão da economia internacional com consequências diretas na exacerbação da fome e pobreza extrema.

No tocante ao cenário internacional, a Organização para a Cooperação Econômica e Desenvolvimento (OCDE) analisou que a pandemia constitui a maior ameaça ao funcionamento da economia global desde a crise financeira de 2008. Declínio econômico, pobreza e insegurança alimentar caminham juntos. Nesse mesmo ano de 2008, eclodiu uma grave crise alimentar internacional acarretando um aumento de 45% no índice global de preços da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO). Desde então, muitos Estados não se recuperaram e o relatório anual da FAO, State of Food Security and Nutrition in the World, registra progressiva ascensão dos índices de fome e insegurança alimentar, principalmente em países de renda média. Conflitos persistentes e alterações relativas às mudanças climáticas ajudam a agravar o quadro.

Do ponto de vista econômico, é importante salientar que o setor de alimentos apresenta demanda inelástica. Variações no preço provocam pouca ou nenhuma variação na quantidade vendida, já que as pessoas seguem necessitando adquirir alimentos para sobreviver. Esse aspecto torna-se bastante desafiador em tempos de crise, pois o aumento de preços acentua diretamente a pobreza e a insegurança alimentar. Essa situação configura a chamada falha de mercado pela qual o livre mercado não consegue alocar recursos da forma mais eficiente possível, ocasionando perdas no bem-estar social. É nesses casos que a atuação do Estado se torna estratégica para proteger a população e garantir a segurança alimentar.

Em março, a FAO divulgou uma queda de 4,3% no índice de preços mundiais de alimentos. Essa redução, no entanto, está atrelada a fatores de demanda que são mais momentâneos, indicando que o consumo diminuiu com as medidas de quarentena (ou de isolamento social) adotadas por muitos países, mesmo com a corrida para os mercados antes do isolamento. No médio e a longo prazo, há a preocupação de não repetir a dinâmica da crise de 2008.

Os primeiros impactos da pandemia na segurança alimentar são observados na cadeia de suprimentos e logística por conta das restrições de mobilidade como fechamento de fronteiras, quarentenas e redução do tráfego aéreo. O transporte internacional de cargas também tem sofrido atrasos, pois são obrigados a adotarem uma série de procedimentos para limitar a disseminação da Covid-19, além de uma diminuição de navios disponíveis. A FAO, inclusive, fez um apelo para evitar que a demora no desembaraço das mercadorias não cause apodrecimento e desperdícios.

A cadeia de suprimentos forma um complexo que engloba produtores, consumidores, processamento, armazenamento, transporte, marketing e venda de produtos. À medida que a pandemia avança e medidas forem sendo tomadas, as cadeias e seus vários níveis serão testados de diversas formas. Setores que produzem insumos agrícolas como fertilizantes e remédios veterinários também serão afetados. A produção de commodities de maior valor agregado que emprega trabalho intensivo, como frutas e vegetais, tende a diminuir, assim como a pesca. Sob o aspecto nutricional, espera-se, portanto, redução na oferta de alimentos frescos, com favorecimento de alimentos processados e ultraprocessados que são mais duráveis. Na pecuária, os problemas maiores são a dificuldade de acesso à ração animal, assim como a diminuição da força de trabalho. Na ponta final da cadeia, é importante assegurar proteção para os trabalhadores de estabelecimentos de varejo e garantir o acesso a alimentos por consumidores.

Não há ainda projeção de alta nos preços para as produções de capital intensivo como as commodities. Apesar disso, o clima de incerteza quanto à disponibilidade futura de alimentos, pode levar à adoção de restrições de exportações, gerando aumento e volatilidade nos preços. Paira no ar a ameaça de disseminação de um nacionalismo alimentar, pelo qual os Estados podem preferir garantir sua própria segurança alimentar via medidas unilaterais, em detrimento da cooperação internacional. Alguns exemplos apontam nessa direção. A Rússia, maior exportadora global de trigo, suspendeu temporariamente suas exportações do cereal, o que coincide com a suspensão das exportações pela Comissão Econômica da Eurásia. A medida é observada com cautela por países como Turquia e Egito que dependem do comércio com a Rússia para suprir metade da sua demanda anual por grãos. O Cazaquistão, também grande exportador de trigo, baniu exportações de farinha de trigo, trigo sarraceno, açúcar, óleo de girassol e vegetais. Em relação ao arroz, Vietnã e Índia suspenderam por hora novos contratos de exportação. A China, por sua vez, aumentou as compras domésticas de arroz tendo implicações para o mercado internacional.

Desafios maiores devem ser enfrentados por países que já se encontram em grave crise alimentar como Zimbábue, Venezuela e Mauritânia. Assim como países altamente vulneráveis que dependem de importações de alimentos como os do Golfo Pérsico. Os Emirados Árabes, por exemplo, importam 90% dos alimentos que consome.

O caso brasileiro enseja preocupação. Em 2019, a medida provisória 870 iniciou um ciclo de esvaziamento e/ou encerramento de políticas públicas atreladas ao alcance da segurança alimentar. Duas políticas merecem destaque no contexto da pandemia. A primeira é em relação à Política Nacional de Abastecimento Escolar (PNAE), que foi modificada pela lei 13977/2020 estabelecendo a distribuição de alimentos da merenda escolar às famílias dos estudantes que tiveram aulas suspensas na rede pública. O dinheiro do programa continuará a ser repassado pela União a estados e municípios para a compra da merenda, conservando o compromisso com produtores. A segunda é o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) ultimamente abandonado. Em 2019, beneficiou apenas 4792 agricultores, uma redução significativa em relação aos 95000 de 2012. A retomada do PAA é fundamental para garantir a compra para doação de alimentos em situações emergenciais e recompor os estoques de alimentos que têm sido drasticamente diminuídos desde 2016, em especial de feijão, milho e arroz.

Central para a agenda pública de segurança alimentar, a política de compras e estocagem é gerenciada pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Mediante ameaça de desabastecimento, a Conab emprega seus estoques para operacionalizar a Política de Garantia de Preços Mínimos (PGPM) vendendo a um preço baixo para tentar segurar a alta do mercado ou, em tempos de aumento da oferta, buscando garantir preços competitivos para que os pequenos produtores consigam sobreviver no mercado. Porém, essa política encontra-se comprometida pela diminuição dos estoques e pelo recente fechamento de 27 dos 92 armazéns da entidade.

Antes da pandemia, observou-se alta significativa no preço de alimentos, como feijão e carne, no mercado brasileiro. A conjuntura torna-se ainda mais desafiadora com a desvalorização do real que favorece as exportações. A prenunciada estagnação do comércio internacional pode fazer com que, mesmo quem tiver como pagar, não tenha de quem comprar no mercado internacional. Estrategicamente, portanto, faz-se necessário elaborar um plano de ação capaz de garantir a segurança alimentar do povo brasileiro.

Rio de Janeiro - RJ, 10 de abril de 2020.

 




Como Citar este documento:

ELIAS, Ivi. Covid-19 e segurança alimentar. Observatório Militar da Praia Vermelha. Rio de Janeiro: ECEME. 2020.


Referências:

FAO. Covid-19 pandemic: impact on food and agriculture. Disponível em: http://www.fao.org/2019-ncov/q-and-a/impact-on-food-and-agriculture/en/. Acesso em: 5 abr 2019.

FAO, WHO, WTO. Mitigating impacts of Covid-19 on trade and markets: FAO, WHO, WTO joint statement. Disponível em: http://www.fao.org/news/story/en/item/1268719/icode/. Acesso em: 5 abr 2019.

DW. Will coronavirus spark a wave of of food nationalism?. Disponível em: https://www.dw.com/en/will-coronavirus-spark-a-wave-of-food-nationalism/a-52952081. Acesso em: 5 abr 2019.

PERES, João. MATIOLI, Victor. Por que o fim dos estoques públicos de alimentos do Brasil é um problema. O joio e o trigo. Disponível em: https://outraspalavras.net/ojoioeotrigo/2019/11/por-que-o-fim-dos-estoques-publicos-de-alimentos-do-brasil-e-um-problema/. Acesso em: 5 abr 2019.

STRATFOR Worldview. How the coronavirus has damaged global food supply chains. The National Interest. Disponível em: https://nationalinterest.org/blog/buzz/how-coronavirus-has-damaged-global-food-supply-chains-140327. Acesso em: 5 abr 2019.

SWINNEN, Johan. Will Covid-19 cause another food crisis? International Food Policy Research Institute. Disponível em: https://www.ifpri.org/blog/will-covid-19-cause-another-food-crisis-early-review. Acesso em: 10 abr 2019.

WFP. Covid-19 and the 5 major threats it poses to global food security. Disponível em: https://insight.wfp.org/covid-19-and-the-5-major-threats-it-poses-to-global-food-security-1c4da2ff6657. Acesso em: 5 abr 2019.


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