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Metodologia de Cenários e o combate ao Coronavírus na China: experiências e lições para o Brasil

Publicado: Terça, 23 de Junho de 2020, 08h01 | Última atualização em Quinta, 06 de Janeiro de 2022, 14h05 | Acessos: 1758

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Fernanda das Graças Corrêa
Doutora em Ciência Política pela UFF e Pesquisadora Sênior
de Planejamento Estratégico & Gestão da Defesa do CEEE

A metodologia de cenários tem sido demasiadamente utilizada na área de planejamento estratégico & gestão da defesa por grandes empresas públicas e privadas e por governos. Esta metodologia cria condições favoráveis para o desenvolvimento e execução de programas e projetos de médio e longo prazos. Os cenários são insumos para a elaboração de estratégias e tem como foco dados, informações e fatos em aspectos políticos, econômicos, sociais, ambientais, científicos, tecnológicos e/ou militares, que são considerados de alta relevância estratégica e passíveis de previsão ou não no ambiente interno e externo para os tomadores de decisão.

Tradicionalmente, há duas principais escolas teóricas de cenários: a francesa e a anglo saxônica. Na escola francesa, os cenários têm ênfase qualitativa e, na anglo saxônica, os cenários têm ênfase quantitativa.

O aumento das incertezas geradas pelas novas ameaças do século XXI tem reorientado planos estratégicos e processos de tomada de decisão promovendo maiores análises sobre probabilidades futuras de realidades político-estratégicas e mercadológicas nas quais, respectivamente, ações e atividades governamentais e empresariais poderão ser empregadas. Não se trata de eliminação de incertezas nem de previsão de futuro, mas de análise científica com base em hipóteses plausíveis do que poderá acontecer que, em conjunto com posturas proativas, auxiliam no preparo e influenciam o futuro. Exercícios de previsão são diferentes de exercícios de cenários. Enquanto a previsão trabalha com modelos de extrapolação de fenômenos que evoluiriam de forma linear, a metodologia dos cenários trabalha com eventos descontínuos de exploração dos futuros possíveis. O futuro não é pré-determinado.

A tomada de decisão para a elaboração do documento Cenários de Defesa 2040 pelo Ministério da Defesa (MD) ocorreu em 2018. A Escola Superior de Guerra (ESG), no Rio de Janeiro, recebeu a incumbência de elaborar os cenários, os quais são fruto de onze reuniões regionais e que envolveu a participação de mais de 500 especialistas civis e militares de diferentes formações e áreas de atuação do País. No exercício proposto neste documento, quatro cenários são apresentados e analisados em três ambientes: ambiente global, entorno estratégico e ambiente nacional. No ambiente de análise nacional do terceiro cenário, hipoteticamente, simula-se a possibilidade de que o vírus causador da Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS, na sigla em inglês) se propague em nível epidêmico a partir de um grande evento ocorrido na cidade do Rio de Janeiro (BRASIL, 2020, p. 31). Nesta simulação, a epidemia demandou a tomada de diversas medidas e providências em defesa biológica por parte do MD com a finalidade de mitigar os efeitos danosos na tropa no Rio de Janeiro e a criação do Plano de Contingência de Agentes Seletos pelo MD após o evento epidêmico, servindo de modelo para a criação de um programa nacional voltado para resolução deste tipo de crise (BRASIL, 2020, pp. 31-32).

Historicamente, a cidade do Rio de Janeiro sedia diversos eventos políticos, econômicos, militares e culturais, que envolvem a participação de grande público, incluindo autoridades nacionais e internacionais. Haja visto os avanços mundiais significativos em biotecnologia, as hipóteses plausíveis sugestionadas na descrição dos cenários do documento exigem que o Brasil invista em capacidades de segurança e defesa biológica, fortaleçam as capacidades em Defesa Química, Biológica, Radiológica e Nuclear (DQBRN) para lidar no futuro com agentes patogênicos de caráter pandêmico e coordenem esforços em conjunto com estruturas civis de segurança biológica.

O exercício proposto no documento Cenários de Defesa 2040 e a realidade pandêmica mundial que vivenciamos com o SARS em 2020 demonstram que a possibilidade de propagação de novos patógenos virais com alto potencial de letalidade no Brasil é uma hipótese plausível de voltar a ocorrer no futuro. A grande participação de segmentos civis e militares nos exercícios de cenarização reforça o pouco conhecimento e/ou a percepção social de insegurança em relação à capacidade de organização do Estado para se preparar para combater estes tipos de patógenos virais.

Geralmente, pandemias ocorrem dentro de quatro fases epidêmicas: epidemia localizada, aceleração descontrolada, desaceleração e controle. Devido à atual pandemia do novo coronavírus, experiências e lições podem ser aprendidas de países que já passaram pela fase de aceleração descontrolada do vírus em seus territórios, como a China. Daí a relevância de trazer estas experiências e lições nesta breve análise.

Em dezembro de 2019, o SARS-CoV-2 foi descoberto e se propagou rapidamente na cidade chinesa de Wuhan. Os vírus SARS-CoV, SARS-CoV-2, MERS-CoV, HKU1, NL63, OC43 e 229E pertencem à família Coronavírus. Destes vírus citados, os que têm potencial de letalidade são o SARS-CoV, o MERS-CoV e SARS-CoV-2. Estudos publicados na revista Nature Medicine, de março de 2020, explicam a origem e transmissão do vírus: (1) seleção natural em um hospedeiro animal antes da transferência zoonótica1 e (2) seleção natural em humanos após transferência zoonótica2. Os vírus dependem de células vivas para se replicar e sobreviver e, neste processo, a fim de se adaptar melhor ao hospedeiro e se perpetuar, sofrem mutações genéticas. Por ser um processo de seleção natural, a análise genômica demonstrou que há um padrão de mutações aleatório no SARS-CoV-2 por milhões de anos que o tornou cada vez mais infeccioso e letal aos humanos. Genomas semelhantes ao SARS-CoV-2 foram encontrados em morcegos e pangolins. Com base em novas evidências como estas, a OMS e a comunidade científica endossam a tese de que haja um animal hospedeiro intermediário que transmita o vírus de morcegos e pagolins para humanos.

Desde quando surgiram os primeiros pacientes hospitalizados com SARS-CoV-2, em primeiro de dezembro de 2019, até a data do anúncio da construção de hospitais temporários em Wuhan, em março de 2020, o governo chinês subestimou o alto grau de propagação e letalidade do vírus. Nos hospitais, muitas mortes, inclusive, de profissionais de saúde, foram atribuídas à falta de kits para testes de diagnósticos, falta de leitos, UTIs e EPI e demora no diagnóstico do vírus. Houve demora na emissão de alertas e faltou maior comunicação das autoridades políticas chinesas com comunidades locais e os profissionais de saúde.

Zhong Nanshan e Guangqiao Zeng3 descrevem lições que as experiências chinesas na contenção do SARS-CoV e suas e implicações no mundo entre os anos de 2002 e 2004 podem contribuir no melhor preparo caso houvesse uma propagação de gripe aviária no mundo. Os surtos epidêmicos entre 2002 e 2004 já haviam provocado enormes perdas financeiras e desordem social, mas, graças às políticas públicas implementadas e as medidas de controle rigorosas os surtos de SARS-CoV foram controlados na China. As lições depreendidas destas experiências foram as seguintes: as autoridades políticas devem implantar medidas e ações transparentes de comunicação social com seus profissionais de saúde e a população para evitar pânico e desordem pública, maior colaboração entre trabalhadores de laboratório e epidemiologistas e clínicos para que os dados das pesquisas sejam compartilhados entre cientistas e divulgados ao público, controle rigoroso das agências de fiscalização sanitária em locais que podem se transformar em foco de epidemias e que regulamentos referentes a segurança biológica sejam rigorosamente cumpridos e políticas de monitoramento laboratorial adotadas (NANSHAN, ZENG, 2019).

A partir de março, após adotar medidas mais restritivas ao acesso de pessoas, isolamento social, plano de contingência e construir hospitais temporários de montagem rápida, a China conseguiu passar da fase de aceleração descontrolada para a de desaceleração. Embora haja uma segunda onda de infecções na China (na data de redação deste texto), elas estão mais relacionadas à cidadãos que chegam do exterior do que à transmissões locais.

Diante do exposto, a metodologia de cenários tem uma importante contribuição ao trazer reflexões e análises sobre as capacidades em segurança e defesa biológica para o enfrentamento de futuras pandemias causadas por patógenos virais.

Dentre as estruturas do Exército Brasileiro voltadas para defesa biológica se encontram: o Instituto de Defesa Química, Biológica, Radiológica e Nuclear, o Instituto de Biologia do Exército, o 1° Batalhão de Defesa Química, Biológica, Radiológica e Nuclear e a Companhia de Defesa Química, Biológica, Radiológica e Nuclear. Relevante destacar que os dois institutos são enquadrados como laboratórios de pesquisa e o batalhão e a companhia são emprego de Força. Estas unidades militares são englobadas pelo Sistema de Defesa Química, Biológica, Radiológica e Nuclear do Exército.

Na Marinha do Brasil, as estruturas são as seguintes: o Centro de Defesa Nuclear, Biológica, Química e Radiológica e a Companhia de Defesa Nuclear, Biológica, Química e Radiológica. Ambas unidades navais são englobadas pelo Sistema de Defesa Nuclear, Biológica, Química e Radiológica da Marinha.

Na Força Aérea Brasileira, o Instituto de Medicina Aeroespacial Brigadeiro Médico Roberto Teixeira é o responsável por desenvolver atividades relacionadas à defesa biológica na Força.

Na descrição do cenário citado, caberia ao MD demandar a tomada de diversas medidas e providências em defesa biológica em coordenação com as Forças Armadas e estruturas de segurança biológica civis. Constantemente, as Forças Armadas brasileiras participam de exercícios conjuntos de Defesa QBRN contando com a participação de estruturas civis envolvidas com segurança biológica como o MD, o Ministério da Saúde, o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações, a Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil, a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), a Polícia Rodoviária Federal (PRF), polícias e bombeiros militares.

Além das estruturas do Ministério da Saúde e secretarias de saúde estaduais e municipais, também compõem a área de biotecnologia no Brasil, as universidades e institutos de pesquisa federais e estaduais, empresas e os centros laboratoriais.

No Brasil, ainda não existe uma coordenação entre civis e militares na área de segurança biológica. Os órgãos governamentais existem e dialogam, porém não há uma coordenação permanente sendo sua reunião somente quando há uma demanda específica. Embora haja participação ativa das universidades e instituições de pesquisa em eventos de caráter epidêmico, dificilmente, estas instituições são convocadas para participar destes tipos de exercícios em segurança e/ou defesa biológica. Eventos de proporções epidêmicas são coordenados pelo Ministério da Saúde. As Forças Armadas somente poderiam assumir a coordenação de um evento destas proporções se um ataque biológico, como um atentado terrorista, fosse causador da epidemia.

Os planos de contingência seriam o resultado dos esforços conjuntos de autoridades civis e militares. Estes planos descrevem quais medidas devem ser tomadas pelos atores sociais para que as sociedades voltem a funcionar normalmente a fim de evitar um colapso social e econômico.

Desde dezembro de 2003, o governo brasileiro possui o Plano de Preparação Brasileiro para o Enfrentamento de uma Pandemia de Influenza. Peculiaridades a parte, tanto os objetivos quanto as estratégias deste Plano podem também ser ampliados para o combate ao SARS-CoV-2 e à futuras epidemias no País.

Atualmente, o Brasil se encontra com um aumento exponencial de contágio do vírus. Após passarmos por esta fase, as capacidades de segurança e defesa do Brasil serão testadas e análises preliminares terão mais condições de avaliar se medidas assertivas de contenção e controle de acesso à população foram adotadas e se o Estado dispõe de pessoal de saúde capacitado em segurança e defesa biológica, leitos, universidades, centros laboratoriais e institutos de pesquisa civis e militares, planos de preparação, políticas públicas e políticas de comunicação social intra e intersetoriais adequadas para combater crises epidêmicas em território nacional.

Rio de Janeiro - RJ, 19 de junho de 2020.


1 Transferência zoonótica, ou seja, transmissão do vírus do animal para o ser humano.
2 Doenças zoonóticas são aquelas manifestadas em animais.
3 Pesquisadores do Instituto de Doenças Respiratórias de Guangzhou.


Como Citar este documento:

CORRÊA, Fernanda das Graças. Metodologia de Cenários e o combate ao Coronavírus na China: experiências e lições para o Brasil. Observatório Militar da Praia Vermelha. Rio de Janeiro: ECEME. 2020.


Referências:
BRASIL. Cenários de Defesa 2040. Ministério da Defesa. 2020. Disponível em: http://www.defesanet.com.br/doutrina/noticia/35694/Cenarios-de-Defesa-2040---Descricao-Cenarios-/

ANDERSEN, Kristian G. et Al. The proximal origin of SARS-CoV-2. Nature Medicine. 2020. Disponível em: https://www.nature.com/articles/s41591-020-0820-9

As New Coronavirus Spread, China’s Old Habits Delayed Fight. The New York Times, primeiro de fevereiro de 2020. Disponível em: https://www.nytimes.com/2020/02/01/world/asia/china-coronavirus.html

Hospitais temporários e estruturas emergenciais: como o mundo está lidando com a sobrecarga no sistema de saúde. Arch Daily, 28 de março de 2020. Disponíveis em https://www.archdaily.com.br/br/936347/hospitais-temporarios-e-estruturas-emergenciais-como-o-mundo-esta-lidando-com-a-sobrecarga-no-sistema-de-saude

HUANG, Chaolin et Al. Clinical features of patients infected with 2019 novel coronavirus in Wuhan, China. The Lancet, 24 de janeiro de 2020. Disponível em https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(20)30183-5/fulltext

LESSA, Nilton de Oliveira. BELDERRAIN, Mischel Carmen Neyra. MARCHI, Mônica Maria De. Proposta de metodologia de construção de cenários prospectivos para apoio ao planejamento estratégico militar. SPOLM 2006. Rio de Janeiro, Brasil, 15 e 16 de agosto de 2006. Disponível em: https://www.marinha.mil.br/spolm/sites/www.marinha.mil.br.spolm/files/arq0069.pdf

ZHONG, Nanshan. ZENG, Guangqiao. What we have learnt from SARS epidemics in China? BMJ Publishing Group. Agosto de 2006. Disponível em https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1550436/

Wuhan seafood market may not be source of novel virus spreading globally. Science Mag, 26 de janeiro de 2020. Disponível em https://www.sciencemag.org/news/2020/01/wuhan-seafood-market-may-not-be-source-novel-virus-spreading-globally

Xi Jinping was aware of the deadly coronavirus much earlier than believed, a new speech reveals. News, 16 de fevereiro de 2020. Disponível em https://www.news.com.au/world/asia/xi-jinping-was-aware-of-the-deadly-coronavirus-much-earlier-than-believed-a-new-speech-reveals/news-story/ed27370709c906b77bb7ae00e2b38ed8

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