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O Envenenamento do Espião Russo

Publicado: Domingo, 19 de Mai de 2019, 08h01 | Última atualização em Quinta, 06 de Janeiro de 2022, 13h47 | Acessos: 1469

Anderson Wallace de Paiva dos Santos1
André Luiz Bifano da Silva2

No rearranjo geopolítico mundial, iniciado a partir de meados do Século XVII, a prevalência do modelo westifaliano deu origem a Estados nacionais soberanos e independentes, originando um sistema internacional regido por complexas conexões que impactam mutuamente as decisões governamentais.

Além desses sujeitos3 primários, as relações internacionais passaram a contar também com as idiossincrasias de atores não estatais, constituindo uma sociedade dirigida por um conjunto de regras e instituições que derivam da necessidade de soberania por parte dos Estados em um ambiente onde a liberdade de ação4 para mantê-la é cada vez mais restrita.

Esse sistema multipolar induz os Estados a atuarem nas expressões política e militar para a consecução de seus interesses. É nesse background que o mundo se depara com as repercussões de um incidente de proporções internacionais envolvendo o Reino Unido e a Federação Russa. O envenenamento do ex-espião russo Sergei Skripal e de sua filha, Yulia, na cidade britânica de Salisbury, remete ao argumento maquiavélico de que a política não pode submeter-se aos valores morais quando se trata da proteção dos interesses do Estado.

O incidente de Salisbury, como ficou notório, é retratado pelo governo britânico como mais uma tentativa do Kremlin em eliminar suas discordâncias políticas por meio do emprego dissimulado de substâncias de origem química, biológica, radiológica ou nuclear (QBRN). Em 2006, o dissidente Aleksander Litvinenko foi envenenado ao ingerir chá contaminado com Polônio 210 (Po²¹º), um elemento radioativo de elevada atividade e difícil detecção. No caso Skripal, há suspeitas de que o quase desconhecido agente químico Novichok5 tenha sido utilizado.

O choque de versões entre os envolvidos reside no fato de que Moscou alega que o governo britânico não dispõe de evidências para tal suposição. As autoridades do Kremlin rejeitam a ideia de uma trama russa, rememorando a questionável postura adotada pelo Reino Unido perante à (in)existência de armas químicas no Iraque, anos atrás.

A fim de legitimar seu discurso, o Reino Unido recorreu a um terceiro sujeito presente nas relações internacionais. A solicitação de assistência técnica à Organização para Proibição de Armas Químicas (OPAQ), amparada pela convenção de mesmo nome (CPAQ), é parte da estratégia britânica para comprovar que não resta dúvida quanto à autoria russa.

O questionamento britânico ao apelar para a assistência da OPAQ tenta colocar em xeque a credibilidade da Rússia como membro da CPAQ ao contestar, à moda grociana6, o seu grau de comprometimento com as regras e os imperativos morais da Convenção.

Todavia, a assistência da OPAQ tem caráter imparcial. Ela não tem a intenção de responsabilizar ou envolver-se nas discussões de seus Estados-Parte7, não obstante a análise das amostras coletadas por seus inspetores haver acusado a presença de uma substância de alta pureza, persistência e resistência às condições meteorológicas.

Mesmo assim, como o agente Novichok poderia ter sido empregado se a Rússia é signatária da CPAQ e declara suas armas químicas ainda não destruídas? Seus elementos não estariam na lista proibida da convenção? Essas premissas isentariam a Rússia de quaisquer acusações. A menos que o agente tóxico seja considerado uma “arma binária” ...

Os compostos com características binárias possuem propriedades que permitem serem armazenados como dois componentes químicos diferentes e menos tóxicos, mais fáceis de transportar e de manusear. Quando combinados, eles reagem para produzir o agente tóxico ativo. Essa parece ser uma das raras explicações plausíveis para o emprego dissimulado do Novichok.

Se essa hipótese for factível, a mensagem de Moscou parece deixar claro que os russos ainda são capazes de atacar quando e onde quiserem, sem que seus oponentes esperem ou prevejam, reforçando o enfoque no paradigma realista8 ao demonstrar habilidade para maximizar a força no sentido de manter seus interesses nacionais.

O atentado contra Skripal teve dimensões diplomáticas e implicações de inteligência que culminaram com a expulsão mútua de representantes de ambos os governos. Sua interpretação como violação à soberania britânica abala ainda mais as já sensíveis relações exteriores com a Rússia, a ponto de representar um dos fatores que influenciaram a participação do Reino Unido na ação militar em retaliação ao hipotético emprego de armas químicas pelo governo sírio, aliado do Kremlin, contra as forças rebeldes.

Na suposição do uso indireto do agente Novichok, percebe-se que a capacidade de coerção russa tenta desequilibrar o poder por meio do emprego cirúrgico de seu hard power9, que continua a impor a razão do Estado acima das considerações éticas, sob um modelo estritamente hobbesiano10. Nesse contexto, estariam as relações entre essas duas nações degradando-se a ponto de perfazerem um interminável jogo de soma zero11? Ou ainda, convém refletir se, em meio às incertezas e opiniões dissonantes, a Federação Russa estaria, de fato, submetida a uma condição restritiva de liberdade de ação?


1 Major de Artilharia, especialista em DQBRN e mestrando do PPGCM/ECEME.
2 Major de Artilharia, especialista em DQBRN e doutorando do PPGCM/ECEME.
3 Sujeitos das Relações Internacionais são entes presentes no Sistema Internacional, representados, principalmente pelos Estados Nacionais, Organismos Intergovernamentais e Forças Transnacionais
4 Capacidade de planejar e executar as ações necessárias à consecução do objetivo estabelecido.
5 O termo Novichok significa "recém-chegado" em russo e aplica-se a um grupo de agentes neurotóxicos de 4ª geração (série A-230), desenvolvido sob um programa soviético de codinome Foliant, a partir da década de 1970. A versão atual do Novichok pertence à série A-234 e foi projetada para ser mais tóxica e sofisticada do que outros agentes, como o próprio neurotóxico britânico VX, podendo ser considerada a 5ª geração das armas químicas.
6 A Tradição Grociana, concebida pelo pensamento do holandês Hugo Grocio, é uma das teorias das Relações Internacionais que defende a limitação do poder dos Estados por um conjunto de regras e instituições internacionais.
7 Estados-Parte representam os países que assinaram e ratificaram os dispositivos constantes da Convenção para Proibição de Armas Químicas (CPAQ). Atualmente, Coreia do Norte, Egito e Sudão do Sul ainda não aderiram à Convenção; enquanto o Estado de Israel é signatário mas ainda não a ratificou.
8 O Paradigma Realista é um conceito das Relações Internacionais em que há domínio sobre o enfoque estatal na busca constante pelo Poder, fundamentado no pragmatismo pelos interesses nacionais e no desprezo pelo institucionalismo internacional.
9 Conceito utilizado pela vertente realista das relações internacionais que se refere à capacidade de um Estado em influenciar ou exercer poder sobre o comportamento alheio, mediante o emprego de recursos políticos, militares e econômicos.
10 A Tradição Hobbesiana, de concepção do filósofo inglês Thomas Hobbes, é uma das teorias das Relações Internacionais que expõe a natureza conflituosa das relações entre os Estados, baseada na necessidade de manutenção da soberania e no exercício do poder de coerção.
11 No jogo de soma-zero o benefício total para os partícipes é sempre nulo, ou seja, um jogador só lucra com base no prejuízo de outro.

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