Ir direto para menu de acessibilidade.
Portal do Governo Brasileiro
Início do conteúdo da página

COVID-19: um teste para o sistema internacional?

Publicado: Quarta, 06 de Mai de 2020, 08h01 | Última atualização em Quinta, 06 de Janeiro de 2022, 13h57 | Acessos: 1484

Guilherme Otávio Godinho de Carvalho
Mestre em Ciências Militares pela ECEME e Mestre em Relações Internacionais pela UnB

Ao findar a segunda década do século XXI, o mundo se depara com uma pandemia causada por um vírus. A COVID-19, não obstante se apresentar como um imenso desafio para a saúde pública internacional, perpassa (e muito) as discussões no campo da ciência, infringindo aos mais variados segmentos das relações humanas desdobramentos até agora não mensuráveis na sua plenitude. Diante de uma plêiade de incertezas e questionamentos, parece emergir a ideia do afloramento de um mundo diferente deste que vivemos. Nesse contexto, é objeto deste trabalho expor algumas reflexões acerca das implicações da crise da COVID-19 para as relações internacionais contemporâneas, apresentando ao leitor uma indagação central: seria a atual crise um teste para o sistema internacional?

Prognósticos de longo prazo, quando elaborados no calor dos acontecimentos, não costumam ser muito precisos. Ainda que a chamada “névoa da guerra” dificulte a interpretação perfeita dos fatos, destacadamente pelo imenso volume de informações disponíveis (e pela inevitável manipulação destas), faz-se necessário buscar, de forma ordenada e seletiva, a construção de futuros possíveis. Identificar e avaliar óbices e oportunidades – material bruto para a formulação das estratégias centrais para o inexorável enfrentamento do que ainda está por vir – é o dever de casa a ser feito. O verbo a ser conjugado, desde sempre, é “planejar”.

O facilitado trânsito de pessoas em boa parte do planeta, fenômeno marcante do amplo processo conhecido como globalização, se viu interrompido de forma repentina. A rapidez com a qual o vírus se espalhou (e continua se espalhando) trouxe à tona reflexões acerca do “tamanho” daquilo que já chegou a ser chamado, pelos mais entusiasmados, de aldeia global. Tendo como lícito objetivo o controle da disseminação do vírus em seus territórios, o fechamento de fronteiras e a aplicação de requisitos adicionais para a emissão de vistos para estrangeiros são algumas das medidas adotadas por um relevante conjunto de países. No que pese seus efeitos positivos imediatos, a resiliência de tais procedimentos restritivos, após sanada a crise de saúde pública, tende a enfraquecer aquele que é um dos pilares de um mundo liberal e globalizado.

Face aos prováveis efeitos atrelados à grave crise econômica mundial que ora se avizinha, visualiza-se o incremento do número de Estados com dificuldades para o atendimento às demandas básicas de suas populações. Na confirmação dessa hipótese, é crível prever, no pós-pandemia, a pressão para a emergência de novas ondas migratórias. Em um cenário imediato, tal quadro funcionaria como oxigênio para o nacionalismo radical, fortalecendo o populismo e a xenofobia e, por transbordamento, a conformação de um ambiente internacional de maior conflitividade.

No que tange ao conjunto de medidas visando à solução dos problemas que ora se apresentam, observa-se, na cena mundial, a prevalência de posturas individuais, eventualmente marcadas por narrativas nacionalistas. Esforços por concertação internacional têm se mostrado, lato sensu, pontuais. Por quanto tempo essa “volta para dentro” perdurará, não se sabe. Ainda que haja predomínio pela busca de soluções nacionais, é profundamente incerto que esta seja uma realidade duradoura. Imagina-se precoce decretar a morte de um mundo interconectado, até mesmo porque a própria pandemia é prova de nossa interdependência.

Henry Kissinger (Wall Street Journal, Abr 2020) alerta que nenhum país, nem mesmo os Estados Unidos da América poderá, por meio de esforço puramente nacional, superar o vírus. “O atendimento às atuais necessidades deve, em última análise, ser associado a uma visão e a programas colaborativos globais”. Do conjunto significativo de incertezas, uma verdade parece emergir: uma gama de países, em especial os menos desenvolvidos, não conseguirão se reerguer sem ajuda e cooperação internacional. Nesse contexto, o papel (presente e futuro) das organizações internacionais multilaterais é posto à prova, não parecendo muito certo qual será a tendência: fortalecimento ou esvaziamento.

Em qualquer cenário, o inevitável choque econômico global é um dos mais visíveis objetos de tensão, exigindo dos governos as mais variadas medidas para contornar os estragos provocados (os imediatos e os que estão por vir). A amplitude alcançada pela integração econômica mundial foi colocada à prova pela crise do novo Coronavírus, que expôs, em alto grau, as facetas negativas da interdependência econômica. Cadeias de suprimentos globais complexas – e toda a logística a elas atrelada – escancararam vulnerabilidades da economia internacional, expondo a hiperdependência do mundo em relação à China. É razoável inferir a ocorrência de uma remodelagem na arquitetura produtiva mundial, com reflexos diretos para o comércio global.

No que pese a obviedade, a linha de ação mais provável para mitigar os efeitos do quadro descrito deverá passar pelo incremento da internalização de segmentos das cadeias de suprimento, em especial daqueles afetos a setores estratégicos. Entretanto, é muito provável que tal expediente não estará acessível a todos os “condôminos”. A conhecida realidade acerca das heterogêneas capacidades de reação dos países, caracterizada pelas assimetrias econômicas, tecnológicas e sociais se imporá. Dessa feita, observaremos o aprofundamento das vulnerabilidades dos países em desenvolvimento frente àqueles que já contabilizam recursos de poder mais significativos. O “clube dos grandes”, ainda que também sofra os efeitos transversais da pandemia, terá seu poder de barganha potencializado.

Na linha de frente do enfrentamento aos desafios que ora se apresentam, é possível identificar a relevância do papel do Estado, inevitável protagonista nos momentos de grave crise. Governos de plantão têm reagido às demandas imediatas, cada qual à sua maneira. São eles os responsáveis principais pela indução do processo de recuperação pós-pandemia. Serão cobrados – interna e externamente ­– pelo que fizerem e, também, pelo que deixarem de fazer. O modelo weberiano de Estado racional e burocracia parece fortalecido, ao passo que os mecanismos não tradicionais, que disputam espaço no jogo da governança global, esboçam aprofundamento da perda de motricidade.

Às inevitáveis cobranças por parte de seus cidadãos e grupos de pressão diversos (campo interno), somam-se variáveis externas que demandam articulação política internacional (campo externo). Governantes estão, indelevelmente, expostos na vitrine. A emergência por ações pertinentes, relevantes, oportunas e eficazes demanda centralidade de comando e efetiva capacidade de coordenação por parte das lideranças políticas. Em síntese, os Estados terão que botar à prova a eficiência e a solidez de suas instituições. Em tempos perigosos, são nos governos nacionais que o ser humano busca proteção. Na crise do Novo Coronavírus não será diferente.

Internamente, no que tange às democracias, a eficácia das medidas tomadas será, grosso modo, avaliada por seus cidadãos (eleitores e pagadores de impostos) que, em períodos de crise e instabilidade econômica, tornam-se mais sensíveis (e críticos) às repercussões das ações de seus governos. No campo externo, a interação entre os Estados será balizada não só pela tradicional diplomacia, que trabalhará pela cooperação e a concertação, mas também pela capacidade de fazer prevalecer seus interesses, fazendo uso, eventualmente, dos seus recursos de poder. É a confirmação da figura do Estado como ator central das relações internacionais.

“O justo, nas discussões entre os homens, só prevalece quando os interesses de ambos os lados são compatíveis, e os fortes exercem o poder e os fracos se submetem”. O famoso trecho, referente ao Diálogo Meliano (passagem da grande obra de Tucídides, “História da Guerra do Peloponeso”), é utilizado como a mais remota referência histórica da corrente realista das Relações Internacionais. O traço mais comumente invocado ao situar Tucídides na origem desta tradição é sua inclinação por analisar as causas reais dos fenômenos que estuda. Em relação à obra de Tucídides, tendo por base o Diálogo, os realistas exploram o conceito de que há predominância do poder sobre a moral, destacando a natureza egoísta dos interesses das Cidades-Estado (Atenas e Esparta) frente a uma balança de poder injusta.

Em tempos de pandemia, é possível observar que o comportamento de diversos países tem sido pautado pela competição ou, no mínimo, pelo egoísmo nacional. Na prevenção dos danos mais visíveis e diretos aos seus cidadãos, bem como às estruturas do Estado (saúde, infraestrutura, logística, economia, etc.), governantes têm adotado resoluções que privilegiam seus nacionais, em detrimento do bem-estar de outros países. Em março deste ano, cerca de três dezenas de nações restringiram as exportações de produtos críticos, como máscaras hospitalares, roupas de proteção médica e outros equipamentos de proteção pessoal.

A Europa, por exemplo, é a principal fonte de importações americanas de máscaras respiratórias, tomógrafos, higienizadores de mãos, monitores de pacientes e equipamentos de raio-x. Diante da escassez de suprimentos médicos, os Estados Unidos e a Europa se voltaram para dentro. Países de fora do eixo atlântico, como a Índia, adotaram medidas semelhantes. Impulsos protecionistas no sentido de limitar esse comércio são autodestrutivos e ameaçam vidas em qualquer parte do mundo. Ademais, é lícito admitir a possibilidade de que aliança transatlântica – já fustigada pela mudança de rumo da política externa norte americana na era Trump – possa vir a sofrer desgastes maiores.

China e Rússia, na esteira dos acontecimentos, aproveitam para desencadear ações humanitárias em alguns países, em um esforço limitado de soft power: a diplomacia da máscara. O gigante asiático tem sido mais enfático, haja vista tentar amenizar as recorrentes críticas oriundas de diversos segmentos da comunidade internacional quanto à forma como reagiu aos primeiros indícios da COVID-19 em seu território: negação inicial quanto à ocorrência da transmissão viral e letargia no trato dos seus desdobramentos.

Em torno da mencionada discussão, estabeleceu-se uma batalha pelo domínio da narrativa, notadamente entre os governos dos EUA e da China. A troca de acusações entre os dois países acirrou a tensa rivalidade entre as duas maiores potências do planeta, agravando o ambiente de incertezas que envolve as relações internacionais na atualidade. Ainda que não esteja claramente precificada, a pandemia provocada pelo Novo Coronavírus pode oferecer ao Presidente Xi Jinping a oportunidade de fazer valer a pretensão chinesa de se tornar a maior economia do mundo e assumir, em 2050, a liderança global (síntese conclusiva do XIX Congresso do Partido Comunista da China). O endurecimento das relações entre os dois gigantes parece inexorável, com desdobramentos incertos.

A teoria das relações internacionais costuma medir a distribuição de poder por intermédio da combinação de ativos militares e econômicos, bem como o alinhamento internacional correspondente. Ainda que seja prematuro afirmar, a crise da COVID-19 reúne potencial para alterar, com restrições, a distribuição básica do poder internacional, com possível atrofia da influência dos organismos multilaterais e eventual degradação da liderança dos EUA. Outrossim, tem aptidão para acelerar, ainda que de forma relativa, o processo de transição hegemônica Ocidente-Oriente. A balança de poder mundial está se alterando, ainda que de forma paulatina. Os impactos dessa mudança serão sentidos em tempos futuros, agora mais próximos.

Voltando à pergunta inicial, parece claro que a atual crise da COVID-19 é um teste para o sistema internacional. John Allen (Foreign Policy, Mar 2020) destaca que a História será escrita pelos “vencedores” da crise. “Os países que perseverarem – tanto em razão da virtude de seus sistemas políticos e econômicos, quanto na perspectiva da saúde pública – terão sucesso sobre aqueles que experimentarem resultado diferente e mais devastador”. A tenacidade e a obstinação, quando acompanhadas de boas estratégias, tendem a produzir bons resultados. Que sejamos capazes de aprender a lição.

Rio de Janeiro - RJ, 06 de maio de 2020.


Como Citar este documento:

CARVALHO, Guilherme Otávio Godinho de. COVID-19: um teste para o sistema internacional? Observatório Militar da Praia Vermelha. Rio de Janeiro: ECEME. 2020.


Referências:

ALLEN, John et al. How the World Will Look After the Coronavirus Pandemic. Foreign Policy Magazine; Washington DC, USA. 20 MAR 2020. Disponível em https://foreignpolicy.com/2020/03/20/world-order-after-coroanvirus-pandemic/. Acesso em 28 MAR 2020.

KISSINGER, Henry A. The Coronavirus Pandemic Will Forever Alter the World Order. The Wall Street Journal, English Edition. 3 ABR 2020. Disponível em: https://www.wsj.com/articles/the-coronavirus-pandemic-will-forever-alter-the-world-order . Acesso em 07 ABR 2020.

TUCÍDIDES (c.460 – c. 400 a.C.). História da Guerra do Peloponeso; prefácio de Hélio Jaguaribe; tradução do grego de Mário da Gama Kury. 4ª edição – Brasília: editora universidade de Brasília; instituto de pesquisa de relações internacionais. São Paulo: imprensa oficial do estado de São Paulo, 2001 (clássicos IPRI).

19º CONGRESSO NACIONAL DO PCC. Íntegra do Relatório do 19º Congresso Nacional do Partido Comunista da China. Disponível em http://portuguese.xinhuanet.com/2017-11/03/c_136726423.htm. Acesso em 07 ABR 2020.



64498.004254/2020-97

Fim do conteúdo da página