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Geopolítica, respostas nacionais e a pandemia do coronavírus

Publicado: Quarta, 18 de Março de 2020, 08h01 | Última atualização em Quinta, 06 de Janeiro de 2022, 13h53 | Acessos: 11430

Hélio Caetano Farias1

 O novo coronavírus, causador da covid-19, teve a sua expansão potencializada pela própria dinâmica do sistema internacional, marcado pela interdependência econômica e pelo intenso fluxo de bens, serviços e pessoas. Com os primeiros casos registrados na China, ainda no final de 2019, a mancha geográfica do vírus logo se espalhou pela Ásia e, seguindo em contornos gerais da Rota da Seda, chegou à Europa. De lá, atingiu praticamente todos os continentes.

Com impactos elevados nos sistemas de saúde e na economia, a dispersão do coronavírus corrobora posições de movimentos críticos ao processo de globalização e às estruturas multilaterais da política internacional. Na equação: quanto mais integrado aos fluxos globais de mercadorias, serviços e pessoas, maior a vulnerabilidade dos Estados à difusão do vírus. Assim, de importante preocupação biológico-sanitária, o coronavírus tem impactos significativos na dimensão geopolítica do sistema internacional.

Além das controversas entre Estados Unidos e China quanto a origem da covid-19 (GOMES FILHO, 2020), acentua-se uma disputa geopolítica, permanente e global, no plano da projeção de influência e do gerenciamento de crises, com implicações diretas na cooperação internacional. Trata-se de duas potências com ampla capacidade de investimento, com centros sofisticados de produção de bens e equipamentos médicos, com centros de pesquisa e inovação em química avançada e fármacos, e com estruturas hospitalares modernas. As respostas, no entanto, caminham em sentidos opostos.

A China, a despeito dos percalços iniciais das autoridades de Wuhan, encontrou na estrutura centralizada do governo, em Pequim, um ativo no planejamento das ações de combate. Em poucas semanas, o país desacelerou fortemente a proliferação do vírus e reduziu as consequências drásticas da epidemia frente ao potencial ali existente com uma população de mais 1,3 bilhões de habitantes. Dos mais de 81 mil infectados, 3,8% morreram (CRC, 2020). Na dimensão econômica, as estimativas da consultoria Goldman Sachs indicam uma restrição no crescimento do PIB, da previsão inicial de 5% para 3% neste ano de 2020 (SCOTT, 2020). Com o compartilhamento de dados e conhecimentos sobre o comportamento da covid-19, o governo de Pequim optou por reforçar um discurso que ressalta a necessidade de cooperação científica internacional e de governança global frente aos desafios que as novas epidemias, regionais e globais, representarão. O envio de suprimentos hospitalares e de médicos especialistas à Itália salienta, no plano do simbolismo, a disposição da China em se apresentar com potência preparada a liderar soluções de problemas internacionais.

Os EUA, sob a liderança de Donald Trump, acentuaram a disposição por um caminho diverso ao multilateralismo e à cooperação com a Europa no trato de assuntos globais. Depois de responsabilizar os países europeus por facilitarem o alastramento do coronavírus, Trump anunciou, entre as primeiras medidas de 11 de março, a proibição dos voos oriundos da Europa (TRUMP, 2020), dos 26 países pertencentes ao Espaço Schengen, como ação urgente para minar com crescimento exponencial dos casos em solo americano. Em uma situação de “community transmission”, os EUA buscam superar os problemas decorrentes de seu próprio sistema de saúde, descentralizado e privado. Todavia, o país conta com uma capacidade de mobilização de um complexo acadêmico-industrial-militar sem paralelos no sistema internacional. O Federal Reserve (FED), na dimensão monetária, zerou a taxa de juros e injetará cerca de US$ 1 trilhão de dólares na economia para dirimir as perdas já ocorridas e estimadas para as próximas semanas. A Casa Branca, por sua vez, encaminhará ao Congresso um pacote de estímulos fiscais na ordem de US$ 850 bilhões.

No rastro da redução da demanda global de comércio e de quedas sucessivas nas bolsas de valores2, reflexos diretos do avanço do coronavírus, a Rússia decidiu não reduzir a oferta de petróleo como mecanismo compensador dos preços do barril tipo brent. Uma manobra que levou ao desgaste as negociações com a Arábia Saudita, no âmbito da OPEP+ (NUNES, 2020). Por sua vez, os sauditas, iniciais proponentes da redução da oferta para o consequente aumento dos preços, optaram por baixar os preços e, geopoliticamente, iniciaram uma guerra de posição com os russos para demarcação dos preços internacionais do petróleo.

Dadas as características da pandemia, diversos Estados nacionais incluíram no conjunto de medidas de combate: o fechamento de fronteiras; a proibição de voos internacionais; o estabelecimento de isolamentos e quarentenas; a estatização de hospitais privados para o controle da pandemia, como no caso da Espanha; a reconversão produtiva de fábricas para produção de bens essenciais. Um complicador de destaque foi o banimento ou a diminuição das exportações de bens e suprimentos médicos por países como China, Taiwan, Reino Unido, França e Índia, entre outros grandes produtores (BERMUDEZ, LEIBEWEBER, 2020).

Os Estados Unidos, assim como Alemanha, França e Inglaterra, sinalizaram para os mercados estímulos fiscais e medidas anticíclicas para injetar na economia, em especial no setor produtivo, canais reais de subsídios e de reescalonamento de dívidas para a superação do momento de baixa de demanda, representado pela redução do consumo das famílias, das exportações e dos investimentos. Na França, a agenda da reforma da previdência foi interrompida e, em seu lugar, a promessa de recursos para que empresas e cidadãos lidem com os efeitos da guerre sanitaire (MACRON, 2020). Na Inglaterra, as medidas indicam prioritariamente o fortalecimento do Sistema Nacional de Saúde (NHS) com o direcionamento de mais de 5 bilhões de libras. Para contornar a crise, mais de US$ 38 bilhões serão investidos. Trata-se, neste caso, do maior afrouxamento fiscal desde 1992 (WOLF, 2020).

Em momentos de elevada crise e incertezas conjunturais, os capitais privados – como bem ensinam os manuais de economia - sofrem os impactos e, salvo os casos excepcionais, retraem os investimentos, num movimento de aversão aos riscos. Cabe ao Estado, como mostra a esforço internacional de combate ao coronavírus, o protagonismo na coordenação das respostas na saúde pública, na segurança e na redução dos prejuízos na economia nacional. O pragmatismo na defesa da integridade dos cidadãos é a bússola, e não a ortodoxia de um liberalismo econômico atemporal.

No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS) será o principal meio de atendimento à população no combate a pandemia. Com capilaridade em praticamente todo território nacional, o SUS constitui um dos maiores e mais complexos sistema de saúde público do mundo (MS, 2020). Os desafios serão enormes, principalmente quando se considera os sucessivos cortes de gastos, mas para lembrar a fala do Ministro Luiz Mandetta “Ainda bem que temos o SUS” (MANDETTA, 2020). O recente posicionamento inglês de fortalecimento do NHS (Serviço Nacional de Saúde) com os recursos necessários para reconduzir o sistema de saúde a condição de bem público (WOLF, 2020) pode iluminar os horizontes por aqui. Afinal, a existência de um sistema universal de saúde mais do que um elemento de bem-estar social revela-se essencial para o desenvolvimento técnico-científico, visando a produção e distribuição de medicamentos restritos, e sobretudo para a soberania nacional. Em momentos de grande crise e conflitos internacionais, a autonomia na área de saúde, compreendida como setor estratégico, é fundamental para prover segurança à população (PADULA, 2017; VENTURA, 2020).

O momento aponta elevada gravidade. É na esteira de três crises – a econômica, em virtude do pífio crescimento econômico de 2019 (1,1%), que acompanha a média negativa de - 0,5% entre 2014-2019, ou de 0,6% da década 2011-2019 (BC, 2020)3; a dos preços internacionais de petróleo, ancorada na disputa geopolítica entre Arábia Saudita e Rússia; e a da política interna, com as dificuldades de coordenação de pauta entre o Executivo Federal e o Congresso – que a pandemia do coronavírus chega ao Brasil. A resposta nacional, além de urgente e coordenada, tem a oportunidade de recolocar o país, com a defesa da integridade de seu povo, da economia nacional e das instituições de Estado, no centro do processo político.


1 Prof. Dr. Programa de Pós-Graduação em Ciências Militares (PPGCM) do Instituto Meira Mattos (IMM) da Escola de Comando e Estado-Maior (ECEME). É o coordenador acadêmico do OMPV “Geopolítica e Defesa” e do Grupo de Pesquisa “Geopolítica, Defesa e Desenvolvimento” (CNPq).
2 Considerando apenas o mês de março, dentre os dias 01 e 17, o índice Dow Jones caiu mais de 6.000 pontos, enquanto a Nasdaq registrou uma queda de 2.000 pontos. No Brasil, a Ibovespa caiu mais de 36.000 pontos, tendo acionado 5 vezes o “circuit breaker”, isto é, a interrupção das negociações.
3 Banco Central do Brasil (BC), Sistema Gerenciador de Séries Temporais (SGS).


Referências Bibliográficas:

BERMUDEZ, Jorge; LEINEWEBER, Fabius. “Coronavírus e a importância da soberania na produção e distribuição de medicamentos”. CEE – Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz. Março de 2020.

CRC. CORONAVIRUS Resource Center. Johns Hopkins University & Medicine. Acesso em 17 de março de 2020. https://coronavirus.jhu.edu/map.html

GOMES FILHO, Paulo. O Vírus e a Geopolítica. 2020. Acesso em 17 de março de 2020. http://www.defesanet.com.br/dqbrn/noticia/36104/O-Virus-e-a-Geopolitica/

MACRON, Emanuel. “Nous sommes en guerre”. Discurso à nação francesa em 16 de março de 2020. https://www.lemonde.fr/politique/article/2020/03/16/nous-sommes-en-guerre-retrouvez-le-discours-de-macron-pour-lutter-contre-le-coronavirus_6033314_823448.html

MANDETTA, Luiz. Frase pronunciada em 26 de fevereiro de 2020 na coletiva de imprensa. “Ainda bem que temos SUS”. Reportagem da Revista Isto É Dinheiro, Edição n. 1162.

MS. (Ministério da Saúde). SUS: estrutura, princípios e como funciona. https://www.saude.gov.br/sistema-unico-de-saude; e “Brasil é único com 'SUS' entre países com mais de 200 milhões de habitantes” Folha de São Paulo, 10 de outubro de 2019.

NUNES, André. Arábia Saudita, OPEP + e o Petróleo como instrumento coercitivo. OMPV – Sessão Temática “Geopolítica e Defesa”. 2020. http://ompv.eceme.eb.mil.br/masterpage_assunto.php?id=165

PADULA, Rafael. “Economia Política Internacional da Saúde, autonomia estratégica e segurança nacional”. Carta Internacional, 12(2), 174 – 196, 2017.

SCOTT, Malcolm. Goldman Sees China’s Economy Slumping 9% in First Quarter. https://www.bloomberg.com/news/articles/2020-03-17/goldman-now-see-china-s-economy-slumping-9-in-first-quarter

TRUMP, Donald. Discurso à nação norte-americana em 11 de março de 2020. https://www.whitehouse.gov/briefings-statements/remarks-president-trump-address-nation

WOLF, Martin. “Onda de gastos para cumprir a missão”. Valor Econômico, 13 de março de 2020.

VENTURA, Deisy. “Coronavírus: não existe segurança sem acesso universal à saúde”. Jornal da US. 31/01/2020.

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