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A COVID-19, os EUA e os reflexos para o BRASIL

Publicado: Quarta, 13 de Mai de 2020, 08h01 | Última atualização em Quinta, 06 de Janeiro de 2022, 13h57 | Acessos: 1505

Gustavo Daniel Coutinho Nascimento
Mestrando do PPGCM da ECEME

 “Se o evento for o surgimento de uma nova doença que combine facilidade de transmissão (como a gripe comum) com a alta fatalidade (como a ebola), logo, no mínimo, o impacto na economia mundial seria enorme na medida em que as quarentenas e as proibições de viagens cessariam vastas quantidades de comércio e de turismo. Se o impacto da doença for severo o bastante, ela poderia desestabilizar a ordem social e política em muitos locais. Embora a ocorrência de cenários específicos como esses seja difícil de prever com muita precisão, a probabilidade geral de que eles ocorrerão em um futuro não muito distante é crescente. Quando/se eles ocorrerem, as cartas com as quais os Estudos de Segurança Internacional (ESI) têm sido jogados desde 1945 serão reembaralhadas.” Barry Buzan & Lene Hansen (2012). A evolução dos Estudos de Segurança Internacional. São Paulo: Ed. UNESP, p. 403. O livro foi escrito no verão boreal de 2008."

Os Estados Unidos da América (EUA) se consolidaram na Comunidade Internacional como potência nos campos econômico, militar e científico-tecnológico, desde o final da Segunda Grande Guerra. A Geopolítica e a Estratégia norte-americanas visam, sobretudo, manter o seu status quo, de sorte que diversas medidas são tomadas com vistas a neutralizar eventuais ameaças a esse propósito. Na atualidade, a pandemia da COVID-19 apresenta-se como um fenômeno capaz de abalar o American Dream.

Em 11 de abril, os EUA superaram a Itália e se tornaram o país com o maior número de mortos pela COVID-19 (cerca de 19.800 óbitos). No último dia 24, ultrapassaram a marca de 50 mil – mais que a soma dos dois países seguintes: Itália e Espanha. Fechando o mês, o país se aproxima de 60 mil mortos, número maior que o registrado nos vinte anos de Guerra do Vietnã, de 1955 a 1975 (USA, 2008). Tais números são entabulados continuamente pela Universidade John Hopkins1 e têm reflexos, também, nas projeções econômicas divulgadas pelo Escritório Independente de Orçamento do Congresso Americano (CBO, na sigla em inglês)2. Trata-se de um cenário desfavorável para a atividade comercial norte-americana.

Para o ano de 2020, durante com desdobramento da pandemia, os indicadores macroeconômicos dos EUA tendem a seguir, consoante o abaixo (EUA, 2020):

- o Produto Interno Bruto (PIB) pode cair cerca de 12% neste segundo trimestre em relação ao primeiro, maior queda desde 1946;

- a taxa de desemprego pode chegar a 20%, no mesmo período; mais alta desde os anos de 1930, período da Grande Depressão, que foi 25%;

- o déficit fiscal aumentará, podendo chegar a US$ 3,7 trilhões este ano, devido aos enormes pacotes de ajuda econômica para apoiar empresas, indivíduos e hospitais diante da crise; e

- a dívida pública poderá exceder 100% do PIB até o final deste ano (101%).

Diante do exposto, observa-se: um acirramento no nacionalismo do Governo Trump que já vinha em uma crescente valorização da produção interna; um discurso protecionista; um distanciamento concreto dos organismos internacionais; e um ceticismo quanto ao papel do multilateralismo na resolução dos problemas internacionais.

No combate imediato à pandemia, o slogan da campanha vitoriosa à Casa Branca, em 2016, nunca esteve tão atual. A forte contração no segundo trimestre de 2020, aliada aos riscos estruturais que economia está exposta, fez Trump radicalizar nas suas medidas protetivas, invocando, em 27 de março, uma lei de 1950, a Lei de Produção de Defesa – “Defense Production Act (DPA)”, para demandar às indústrias privadas o fornecimento de produtos julgados essenciais nesta crise.

Há que se resgatar, ainda, a Estratégia de Segurança Naciona3 (NSS, na sigla em inglês), expedida por Trump em 2017, que consagrou, em seu 3º Pilar: Preserve Peace Through Strengh4. Tanto a NSS 2017, como a DPA - autorizam o Executivo a interferir no sistema de produção do país em defesa dos interesses ou da segurança nacionais, em casos de esforço de guerra ou de emergências, como a pandemia em curso.

Essa “economia de guerra” dos EUA, além de favorecer o desenvolvimento de capacidades necessárias à sua plena independência, também justifica o exercício das Razões de Estado5 para negar apoio à Comunidade Internacional. São exemplos: a exigência que as automobilísticas General Motors (GM) e Ford produzissem respiradores artificiais; o anúncio, no dia 14 de abril, da interrupção de financiamento à Organização Mundial da Saúde (OMS) (FT, 2020); e da declaração, no mesmo dia, do Secretário de Estado Mike Pompeo, que condicionou a ajuda ao Brasil à superação da crise nos EUA, inclusive justiçando a apreensão de 600 respiradores comprados pelo Brasil na China, que faziam escala no Aeroporto de Miami6; além da proibição à 3M Company de exportar máscaras para Canadá e América Latina7 (EV, 2020);

Ainda neste escopo, o país tem levado a cabo medidas para incentivar sua indústria de telecomunicações, como, por exemplo, a pressão sobre a Europa para que a tecnologia 5G, da Verizon Communications, seja adotada em detrimento da concorrente chinesa Huawei, sob a acusação de: ter laços com o Partido Comunista Chinês (PCC), ser suspeita de espionagem; interferir no sistema de armas norte-americano8; e afetar a navegação marítima das belonaves dos EUA9.

Quanto ao setor da indústria de aviação, a gigante americana Boeing já vinha passando por dificuldades por conta de dois acidentes fatais com a aeronave 737 MAX. Mesmo diante disso, a união dessa companhia com a campeã de produção de aeronaves para voos domésticos, a EMBRAER, tinha potencial salvacionista em relação à primeira. Ocorre que a pandemia agravou a situação da Boeing, fazendo com que o governo dos EUA a socorresse e, por conseguinte, abalasse a fusão com a EMBRAER. Não se considerou estratégico que recursos públicos injetados na Boeing fossem usados na compra de uma companhia latinomericana, mesmo o Brasil sendo um aliado extra-OTAN.10

Esse tipo de pressão sobre a opção das empresas consideradas estratégicas, associada à DPA, é parte da cultura e do ordenamento jurídico norte-americanos. No caso brasileiro, os mecanismos correlatos ainda são muito frágeis, expondo a EMBRAER a riscos como os quais a ENGESA11, no passado, sofreu e veio ao fechamento de suas portas. Tanto no caso da Boeing, como no caso da EMBRAER, há que se ter uma preocupação com a oferta de profissionais qualificados, algo que a Estratégia de Segurança Nacional (NSS, 2017) dos EUA previu, ao vislumbrar a importância do ensino em áreas críticas como: ciência, tecnologia, engenharia e matemática, da sigla STEM.

A indústria farmacêutica americana também foi privilegiada nesta crise. Dois exemplos são bem emblemáticos: (i) a Operação “Warp Speed12, com o objetivo de acelerar o desenvolvimento de uma vacina13; e (ii) o desenvolvimento unilateral do REMDESIVIR, com foco na população americana e com alto custo. Não há previsão de cessão dos direitos de comercialização sobre a droga14.

Identifica-se que os EUA, que já vinham em um crescente de atitudes protecionistas, com a COVID-19, radicalizaram suas medidas para valorizar a produção interna. Assim, a pandemia colocou à prova a mudança de postura dos EUA com a NSS 2017. O cenário delineado pós-pandemia condicionará sistemas nacionais produtivos centrados na aquisição de autonomia estratégica (FARIAS, 2020). Nos EUA, a crise tem exercido papel catalisador no afastamento de uma política liberal e multilateral, para fazer crescer um pragmatismo e realismo políticos, agravando a disputa por poder global e fortalecimento do mercado interno norte-americano.

A Agenda de Defesa americana, nesse “esforço de guerra”, alinhou seus objetivos para vencer a crise de saúde e econômica, alocando recursos, indústrias e ajuda humanitária ao seu povo. As Razões de Estado, via DPA, demonstram, inequivocamente, que os EUA estão resolutos na superação da crise, no seu fortalecimento e na demonstração à Comunidade Internacional, incluindo os seus aliados militares, que seu slogan nunca esteve tão em voga – America First!

Rio de Janeiro - RJ, 08 de maio de 2020.


1 Sítio Eletrônico da Universidade John Hopkins. https://coronavirus.jhu.edu/us-map, acesso em 08 de maio de 2020, às 12:00 h.
2 O Congressional Budget Office (CBO) é o responsável pelas informações para discussões orçamentárias dentro do Capitólio. The Budget and Economic Outlook: 2020 to 2030. https://www.cbo.gov/publication/56073#_idTextAnchor059.
3 Documento publicado a cada quatro anos desde o governo Reagan, a NSS define, em linhas gerais, as prioridades da política de defesa nacional americana e segue como informe do executivo ao Congresso Americano para posterior orientação sobre os caminhos a serem trilhados na área de Segurança Nacional (PUTY, 2020).
4 Preservação da Paz por intermédio da Força.
5 A razão de Estado (Raison d'État) estabelece ao governante o imperativo de uso da força estatal e dos demais meios que forem necessários para a manutenção do poder. (Noam Chomsky, 2008).
6 U.S. denies hijacking Chinese medical supplies meant for Brazil. https://www.reuters.com/article/us-health-coronavirus-brazil-usa/u-s-denies-hijacking-chinese-medicalsupplies-meant-for-brazil-idUSKBN21P315.
7 Essa apreensão, paradoxalmente, surtiu efeito colateral no desenvolvimento científico-tecnológico brasileiro, como se depreende do repasse , no dia 30 de abril deste ano, de R$ 5 milhões para a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) fabricar mil respiradores, em trinta dias, para auxiliar pacientes acometidos pelo coronavírus, ao custo de 1/10 do valor atual de mercado.
8 Exército americano adverte que 5G chinês pode interferir em sistemas de armas norte-americanas. https://www.epochtimes.com.br/exercito-americano-adverte-que-5g-chines-pode-interferir-comsistemas-de-armas-norte-americanas.
9 Wyden and Cantwell to FCC: Don’t Ignore NASA, NOAA & Navy Concerns on 5G Auction. https://www.wyden.senate.gov/news/press-releases/wyden-and-cantwell-to-fcc-dont-ignore-nasa-noaaand-navy-concerns-on-5g-auction.
10 Pressões políticas e COVID-19 fazem Boeing desistir da compra da Embraer. https://veja.abril.com.br/economia/pressoes-politicas-e-covid-19-fazem-boeingdesistir-da-compra-da-embraer.
11 Um outro lado da história da Engesa. https://www.forte.jor.br/2017/12/08/um-outro-lado-da-historia-da-engesa.
12 "Warp Speed" – dobra espacial - nome escolhido pelos cientistas, fãs de Star Trek, comparando o desafio da vacina ao do universo ficcional do filme
13 Trump administration launches 'Operation Warp Speed' to accelerate vaccine development https://thehill.com/policy/healthcare/495315-trump-administration-pushing-for-accelerated-vaccinedevelopment.
14 Quem é a Gilead, fabricante do Remdesivir. https://exame.abril.com.br/negocios/quem-e-agilead-fabricante-do-remdesivir-em-teste-contra-o-coronavirus/.


Como Citar este documento:

NASCIMENTO, Gustavo D. C. A COVID-19, os EUA e reflexos para o Brasil. Observatório Militar da Praia Vermelha. Rio de Janeiro: ECEME. 2020.


Referências:

BUZAN, Barry & HANSEN, Lene (2012). A evolução dos Estudos de Segurança Internacional. São Paulo: Ed. UNESP, p. 403. O livro foi escrito no verão boreal de 2008.

CHOMSKY, Noam. Razões de Estado. Editora Record, 2008.

ENCICLOPÉDIA VIRTUAL, “US will only help Brazil with medical supplies when crisis improves, says Pompeo” https://enciclopediavirtual.com.br/noticias/news/us-willonly-help-brazil-with-medical-supplies-when-crisis-improves-says-pompeo-4-14-2020world/

FARIAS, Hélio C. Geopolítica e as Capacidades Nacionais de Defesa: um olhar crítico sobre as tendências pós-pandemia. Observatório Militar da Praia Vermelha - OMPV. Rio de Janeiro: ECEME. 2020.

FINANCIAL TIMES, “Trump suspends funding to World Health Organization” https://www.ft.com/content/693f49e8-b8a9-4ed3-9d4a-cdfb591fefce

PUTY, Cláudio Castelo Branco. A estratégia de segurança nacional do EUA e o combate à corrupção na América Latina. Revista Fórum. https://revistaforum.com.br/politica/estrategia-de-seguranca-nacional-do-eua-e-ocombate-corrupcao-na-america-latina/>. Acesso em: 30 abr 2020

. UNITED STATES OF AMERICA (USA). Congress of the United States. Congressional Budget Office (cbo). The Budget and Economic Outlook: 2020 to 2030. Janeiro de 2020

. UNITED STATES OF AMERICA (USA). National Archive. DCAS Vietnam Conflict Extract File record counts by CASUALTY CATEGORY (as of April 29, 2008). https://www.archives.gov/research/military/vietnam-war/casualty-statistics#category



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