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O mundo depois da pandemia: uma geopolítica pós-contemporânea?

Publicado: Terça, 28 de Abril de 2020, 08h01 | Última atualização em Quinta, 06 de Janeiro de 2022, 13h57 | Acessos: 1494

Túlio Endres da Silva Gomes
Doutor em Ciências Militares e Comandante do 20° Regimento de Cavalaria Blindado

 Quando o cientista político sueco Rudolf Kjéllen concebeu o termo geopolítica, em 1899, aprofundou os estudos sobre as interações entre a geografia e a política (MAFRA, 2006), esta entendida como a ciência da aplicação do poder aos territórios para a consecução dos diferentes objetivos nacionais. Desenvolvia-se, assim, um campo das ciências sociais, multidisciplinar, que havia iniciado no final do século anterior e que, na década de 1930, acabou por ser distorcida e utilizada como base teórica para o expansionismo do III Reich, com justificativas como o espaço vital, de Karl Haushofer (KAPLAN, 2013). A distorção foi devida ao erro clássico de avaliação que, ainda hoje, inunda o debate político em todo o mundo: a análise da realidade não como ela se apresenta, e sim como se postula.

Após a Segunda Guerra Mundial, em 1945, o mundo ingressou em uma realidade geopolítica bipolar: ocidente versus oriente, com a geopolítica a fundamentar os estudos da aplicação do poder das duas superpotências para a consecução de seus objetivos. Assim foi concebida a Teoria da Contenção, do poder soviético pelos Estados Unidos, pelos estudos de Nicholas Spykman e George Kennan, que traduziu suas inquietações no Longo Telegrama, de 1946, e, anonimamente, para a revista Foreign Affairs (KENNAN, 1947), orientando, em termos geopolíticos, a ação política de seu país contra o expansionismo da URSS. A contenção se refletiu em disputas pelas esferas de influência no entorno estratégico da União Soviética, na Europa e Ásia, e ainda pode ser observada, nos dias de hoje, nas disputas geopolíticas no Mar da China (TEIXEIRA JÚNIOR, 2017).

Terminada a Guerra Fria, em 1991, com o fim da ordem bipolar, as teorias clássicas da geopolítica deram lugar às teorias contemporâneas. As incertezas quanto ao que ocorreria a partir de então fizeram com que a geopolítica mudasse totalmente sua concepção: antes voltada ao estudo das interações entre os espaços geográficos e à aplicação do poder estatal, com predominância dos campos político e militar, e, assim, orientando as potências sobre como conduzir suas políticas, a geopolítica passou a tratar dos cenários que adviriam do fim da ordem mundial bipolar. Assim, surgiram teorias geopolíticas que se traduziam em cenários, como a da Incerteza, de Pierre Lellouche; do Limes, de Jean Christophe Rufin; o Fim da História, de Francis Fukuyama (MAFRA, 2006); e o Choque de Civilizações, de Samuel Huntigton. Divulgada em 1993, também pela Foreign Affairs, o cenário de Huntington ganhou força após os ataques às Torres Gêmeas e ao Pentágono, em 2001, fundamentando o conflito que ficou evidenciado entre os EUA e o Islã e nos limites entre bases civilizacionais, como os Bálcãs (entre ortodoxos, ocidentais e muçulmanos), a Ucrânia (entre ocidentais e ortodoxos) e o Sahel africano (africanos versus muçulmanos). A Teoria do Choque das Civilizações, em que pese algumas vulnerabilidades teóricas, foi precisa ao explicar o porquê dos conflitos entre as diferentes civilizações, entendidas como o mais alto nível de identificação cultural da humanidade. Os conflitos, bélicos ou de interesses, passariam a ocorrer não mais entre Estados nacionais, mas entre diferentes civilizações. É o que observamos, entre a Rússia e o Ocidente, entre a China e o Ocidente, entre o Islã e o Ocidente [sim, o conflito de várias civilizações contra o Ocidente também foi um aspecto abordado por Huntington (1993)].

Mas eis que o mundo surpreende mais uma vez, tumultuando o estudo de cenários prospectivos. Quem poderia imaginar, no final de 2019, o desafio que hoje enfrentamos? Em poucos meses, o que se confirmou, em um nível jamais imaginado, foi uma grande incerteza sobre os rumos da humanidade, da geopolítica, da ordem mundial. A nova ordem mundial, pós-coronavírus, já começou a ser estudada, em recente artigo, por Henry Kissinger (2020), um dos maiores pensadores e políticos do século, responsável pela impensável aproximação entre Estados Unidos e China, na década de 70, em plena Guerra Fria.

Possivelmente, a Geopolítica continuará a tratar de cenários, com base nas interações entre a geografia (física e humana), a política e a história, conforme as interações descritas pelo General Carlos de Meira Mattos (2002). Mas, certamente, algumas premissas passarão a ganhar destaque. Em primeiro lugar, a importância das fronteiras, manifestação inequívoca da soberania estatal sobre o território, e seu controle voltaram a ter enorme relevância (se é que haviam deixado de ter um dia). Nem a União Europeia, baseada primordialmente na livre circulação entre seus integrantes, resistiu ao poder de cada um dos seus Estados sobre suas fronteiras. Outra premissa: a COVID-19 igualou todas as diferentes civilizações, não poupando muçulmanos, ocidentais, chineses, africanos, japoneses ou ortodoxos. Aqui, não há conflito intercivilizacional, e, vencidas as dificuldades nacionais em primeiro lugar, há espaço para a cooperação internacional e intercivilizacional, por vezes esta antes daquela algo talvez inconcebível antes da ordem pós-pandemia. Ainda assim, o paradigma idealista da cooperação internacional está em xeque: o realismo e sua concepção do conflito de interesses como a base das relações internacionais se confirmam dominantes quando as nações precisam sobreviver a uma ameaça tão assustadora.

Além disso, a geopolítica pós-contemporânea se apoiará, ainda mais, no campo da ciência e tecnologia. No caso da pandemia, como em outros desafios que certamente ocorrerão, o domínio do conhecimento permitirá a solução de problemas e conflitos, ou a obtenção de vantagens decisivas. A descoberta de um medicamento ou vacina eficaz é, hoje, a corrida prioritária para que se vença a pandemia, evitando mais mortes e o colapso da economia e dos sistemas de saúde. Finalmente, dentre inúmeras outras premissas, a geopolítica doméstica, em especial a voltada à aplicação do poder político dentro dos grandes centros urbanos, necessita ser aprofundada, para que dê respostas a questões sobre as quais sobrevive a maior parte das populações do mundo. A organização dos espaços urbanos, as questões sociais, econômicas, de moradia, de saneamento e de saúde, e de como gerir esses espaços, necessitam das ferramentas da geopolítica, para que se possa responder à altura aos enormes e incertos desafios que enfrentamos e que ainda iremos enfrentar.

Rio de Janeiro - RJ, 19 de abril de 2020.


Como Citar este documento:

SILVA GOMES, Túlio Endres da. O mundo depois da pandemia: uma geopolítica pós-contemporânea? Observatório Militar da Praia Vermelha. Rio de Janeiro: ECEME. 2020.


Referências:

HUNTINGTON, Samuel P. The clash of civilizations? Foreign Affairs, Volume 72, Issue 3, Start Page 22, ISSN, 00157120. New York: 1993. Disponível em: http://www.columbia.edu/itc/sipa/S6800/courseworks/foreign_aff_huntington.pdf. Acesso em 19 ABR 2020.

KAPLAN, Robert. A Vingança da Geografia: a construção do mundo geopolítico a partir da perspectiva geográfica. Tradução Cristiana de Assis Serra. 1a Ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2013.

KENNAN, George. George Kennan’s Long Telegram, 22 FEV 1946. History and Public Policy Program Digital Archive, National Archives and Records Administration, Department of State Records (Record Group 59), Central Decimal File, 1945-1949, 861.00/2-2246. US Department of State. Foreign Relations of the United States, 1946, Volume VI, Eastern Europe; The Soviet Union (Washington, DC: United States Government Printing Office, 1969), p. 696-709. Disponível em: http://digitalarchive.wilsoncenter.org/document/116178. Acesso em 19 ABR 2020.

KISSINGER, Henry A. The Coronavirus Pandemic Will Forever Alter the World Order. The Wall Street Journal, English Edition. 3 ABR 2020. Disponível em: https://www.wsj.com/articles/the-coronavirus-pandemic-will-forever-alter-the-world-order-11585953005. Acesso em 19 ABR 2020.

MAFRA, Roberto Machado de Oliveira. Geopolítica: Introdução ao Estudo. 1a Ed. São Paulo: Sicurezza, 2006.

MATTOS, Carlos de Meira. Geopolítica e Modernidade. Rio de Janeiro: BIBLIEX, 2002.

TEIXEIRA JÚNIOR, Augusto W. M. Geopolítica: do pensamento clássico aos conflitos contemporâneos. 1a Ed. Curitiba: InterSaberes, 2017.



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