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Investir em Inteligência vale a pena?

Publicado: Terça, 02 de Agosto de 2022, 07h01 | Última atualização em Terça, 02 de Agosto de 2022, 11h13 | Acessos: 343

 

Esley Rodrigues

Militar da Marinha do Brasil e mestrando em Ciências Militares

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Introdução

A ciência militar, no decorrer dos séculos, surgiu com o intuito de mitigar as incerte-zas que se apresentam aos contendores num campo de batalha, ou mesmo numa mesa de negociação. De caráter multidisciplinar, as questões associadas à guerra e à paz já vêm sendo estudadas por diferentes áreas do conhecimento, a exemplo da ciência política, direito, ciências militares e relações internacionais (RODRIGUES; MIGON, 2017). Desde Hugo Grotius até Norberto Bobbio (MIGON, 2012), passando por Clausewitz (HOWARD, 2002), alargado rol de pensadores e perspectivas sobre o fenômeno da guerra têm sido trazidos a lume, pelo que tem gerado valiosas contribuições à sociedade.

Numa perspectiva eminentemente militar, percebe-se que a guerra, cada vez mais, vem exigindo forte carga de conhecimento sobre os fatores físicos do terreno, do inimigo e do ambiente. No contínuo esforço por dissipar a névoa da guerra, a inteligência militar tornou-se essencial para compreender as possibilidades e as forças do oponente, servindo como mé-todo confiável na empresa de prever como, quando, onde e com o quê determinado ator agiria, sob determinadas condições. Diante destas considerações, este artigo objetiva desta-car a importância da atividade de inteligência para um Estado.

 

Desenvolvimento

Numa palestra proferida na Escola de Guerra Naval em 23 de maio de 2022, o Dr. Michael Goodman, chefe do departamento de estudos da guerra do King’s College London, deixou, durante o período de debates, algumas perguntas no ar concernentes a como a estru-tura da inteligência deve buscar amalgamar diversas potencialidades nos mais variados campos do conhecimento. Com efeito, para se saber como pensa determinado país com rela-ção à sua estratégia e cultura bélica, é interessante que conheçamos bem sua história, sua cultura, seu idioma e diversos outros pontos que passam ao largo do conhecimento obtido em cursos de inteligência militar hodiernos.

Os especialistas, como muito bem apontado pelo Dr. Vinícius Mariano de Carvalho, professor de estudos brasileiros e latino-americanos do departamento de estudos de guerra do King’s College London, tornaram-se essenciais para a geração de informações mais acu-radas sobre assuntos que não mais estão diretamente ligados à atividade militar. A estrutura de inteligência deveria, portanto, compor-se de forma matricial, envolvendo especialistas em diversos campos do conhecimento (de tecnologia nuclear até biólogos, de militares a cientis-tas políticos), sendo mister que o Estado possua um banco de dados atualizado de onde en-contrar estes cidadãos, a fim de que sejam ativados quando possível e necessário.

A pergunta que talvez deva ser feita é se o investimento em uma estrutura como esta realmente conseguiria entregar os produtos adequados. Em seu best seller, John Keegan (2004) descreve diversos casos em que o acaso esteve a favor de um lado, deixando o outro em completo desatino: o encontro dos navios britânicos e alemães nas batalhas de Coronel e das Falklands na Primeira Guerra Mundial; o encontro da esquadra francesa no Nilo após a caçada de Nelson a Napoleão; a quebra do código Enigma, encontrado em um navio do Ei-xo; o ataque a Pearl Harbor; a invasão da ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas pelo Terceiro Império Alemão, dentre outros. E no Brasil não foi diferente, a história brasi-leira é recheada de casos em que o acaso esteve presente nos conflitos internos.

O que Clausewitz nos diz sobre inteligência é que ela resume “todo tipo de informa-ção sobre o inimigo e seu país”1, mas também nos alerta que é bastante influenciada pelo “julgamento, que apenas pode ser desenvolvido pelo conhecimento dos homens, relaciona-mentos e bom senso” (CLAUSEWITZ, 1984, p. 117 - tradução nossa)3.

Num mundo de informações instantâneas, o conhecimento sobre “todo tipo de infor-mação”, além de ser bastante improvável de ser compilado, torna-se tarefa hercúlea, que não obstante demandar enormes esforços de especialistas, exige larga quantidade de processa-dores eletrônicos de dados, aumentando os custos a um ponto de tal forma, que se tornaria uma linha de ação sem sentido. Corre-se o risco, inclusive, de se retirar da equação da guer-ra o processo decisório humano, recorrendo-se, tão somente, às novas tecnologias, o que não resulta em um entendimento completo das condições impostas, tornando-se prejudicial ao processo decisório (ELWARD, 2010).

A guerra, por mais inteligência que possa exigir das estruturas informacionais de um país, é um evento aleatório, que pode dar sinais de seu início, mas que, geralmente, não apresenta uma fórmula consistente do que a desencadeará, conforme ocorrido no assassina-to de Francisco Ferdinando, no manifesto do Duque de Brunswick ou na concentração de tropas portuguesas no morro do Castelo.

 

Considerações Finais

A compreensão de que o instinto de sobrevivência de um Estado (MEARSHMEIER, 2001) e a necessidade de manutenção de seu status quo (ALLISON, 2015) devem exigir, por parte do poder político a perenidade orçamentária para as Forças Armadas, que devem manter-se em constante estado de pronto emprego, com recursos humanos e materiais em condições de atuarem onde quer que seja necessário para garantir os interesses nacionais. Acima de tudo, um investimento em custoso aparato de inteligência precisa ser um trade-off3muito bem pensado.

Independentemente da evolução tecnológica e das necessidades que se impõem ao mundo da inteligência, a violência, a chance e a razão continuarão a delimitar a ignição da chama da guerra. Conhecer estes fatores, e como se amalgamam dentro de um determinado Estado, é condição essencial na manutenção de uma mínima previsibilidade quanto às futu-ras ocorrências do mundo e do ambiente que nos cerca. Contudo, não se deve confiar ce-gamente nos resultados que advém destas análises. O julgamento é fator crucial para a for-mação do conhecimento, cabendo aos decisores, mais que aos analistas, compreender pro-fundamente o ambiente em que está inserido, evitando que a névoa da guerra lhe retire as faculdades de decidir de forma saudável, garantindo a sobrevivência de seu Estado e o bem-estar de seu povo.

 

1 By ‘intelligence’ we mean every sort of information about the enemy and his country”.

2 What one can reasonably ask of an officer is that he should possess a standard of judgment, which he can gain only from knowledge of men and affairs and from common sense.”

3 É o nome que se dá a uma decisão que consiste na escolha de uma opção em detrimento de outra. Num trade off, o indivíduo deve, necessariamente, deixar de lado alguma opção em sua escolha (REIS, 2018).

 

 

Referências Bibliográficas: 

  1. ALLISON, Graham. The Thucydides Trap: Are the U.S. and China Headed for War? The Atlantic, 24 de setembro de 2015.

  2. CLAUSEWITZ, Carl von. Da Guerra. London: Oxford University Press, 1984.

  3. ELWARD, Sean Mikael. The Fog of War: A Necessary Component of Modern Warfare. Newport: Naval War College. 2010.

  4. HOWARD, Michael. Clausewitz: A Very Short Introduction. New York: Oxford University Press, 2002.

  5. KEEGAN, John. Intelligence in war: The Value--And Limitations--Of What the Mili-tary Can Learn about the Enemy. London: Vintage Books, 2004.

  6. MEARSHEIMER, John J. The Tragedy of Great Power Politics. New York: W. W. Nanon & Company, Inc, 2001.

  7. MIGON, Eduardo Xavier Ferreira Glaser. Estudos da Paz e da Guerra: síntese da contribuição de Grotius e Bobbio. Coleção Meira Mattos, Vol. 2, p. 53-62, 2012.

  8. REIS, TIAGO. Trade off: o que é? Entenda esse importante conceito econômico. SU-NO artigos, 30 de setembro de 2018. Disponível em: https://www.suno.com.br/artigos/trade -off/. Acesso em: 20 de julho de 2022.

  9. RODRIGUES, Anselmo de Oliveira; MIGON, Eduardo Xavier Ferreira Glaser. O papel do Brasil na evolução das Operações de Paz. Carta Internacional, Vol, 12, nº 3, p. 77-103, 2017.

 

Rio de Janeiro - RJ, 2 de agosto de 2022.


Como citar este documento:
Rodrigues, Esley. Investir em Inteligência vale a pena?. Observatório Militar da Praia Vermelha. ECEME: Rio de Janeiro. 2022.  

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