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As lições do conflito russo-ucraniano para a Base Industrial de Defesa Brasileira

Publicado: Terça, 27 de Setembro de 2022, 04h01 | Última atualização em Terça, 27 de Setembro de 2022, 10h42 | Acessos: 1078

 

Leandro Leite de Almeida

Major do Exército Brasileiro e Mestrando em Ciências Militares na ECEME

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1. Introdução

A invasão russa na Ucrânia em fevereiro de 2022 levou os países ocidentais reorientarem suas estratégias de defesa. A possibilidade de um conflito convencional entre dois exércitos regulares passou de hipótese para realidade no continente europeu. A paz tutelada pelos organismos internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) foi insuficiente como fator dissuasório à invasão. A guerra entre a Rússia e a Ucrânia demonstrou ao mundo o risco de as nações confiarem sua defesa às alianças militares ou a capacidade de intervenção das Nações Unidas. Como se não bastasse, após cinco meses de batalhas entre as tropas ucranianas e russas, o conflito não demonstra sinais de distensão.

Os países ocidentais, temendo a expansão do conflito para suas fronteiras, têm aumentado seus orçamentos militares. Países como Polônia e Alemanha, aumentaram os recursos destinados às suas Forças Armadas e ao parque industrial de defesa. Além da Europa, outras regiões estão ameaçadas pela possibilidade de uma guerra. Taiwan, Japão, Coreia do Sul e Austrália também majoraram seus gastos em defesa. A possibilidade de novos conflitos em áreas de instabilidade geopolítica ou de litígios fronteiriços latentes, após a invasão russa da Ucrânia, passaram a ser mais prováveis.

A escalada de uma corrida armamentista expôs ao mundo a relevância de uma base industrial de defesa que garanta a soberania e a independência das nações. Neste contexto, o objetivo deste artigo é demonstrar a importância do fortalecimento da Base Industrial de Defesa (BID) nacional no cenário atual.

2. Base Industrial de Defesa Brasileira

A Base Industrial de Defesa nacional passou por vários ciclos. Num determinado momento da história, o Brasil chegou a estar entre os cinco maiores exportadores de produtos de defesa do mundo (PIM, 2009). De acordo com o que está contido no Livro Branco de Defesa Nacional, a BID é: 

“um conjunto de indústrias e empresas organizadas em conformidade com a legislação brasileira, que participam de uma ou mais das etapas da pesquisa, desenvolvimento, produção, distribuição e manutenção de produtos de defesa” (BRASIL, 2016a, p. 212).

A figura abaixo representa de forma gráfica a importância da BID e a complexidade da cadeia de desenvolvimento de um produto de defesa:

Figura 1- Iceberg do Produto de Defesa

conflito russo ucraniano industrial defesa fig2

Fonte: AMARANTE, 2012.

O ciclo de crescimento atual da BID brasileira foi estimulado pelo estabelecimento do Estratégia Nacional de Defesa (END) e pela Política Nacional de Defesa (PND), a partir de 2008, marcos regulatórios que permitiram apontar os rumos a serem percorridos para a Defesa Nacional:

 [...] Em realidade, e ainda que se centre na defesa, a END se estende a aspectos como a educação, ciência e tecnologia, economia, infraestrutura e mobilização nacional, entre outros. Avança sobre a organização das FA, sua composição organizacional e suas práticas operacionais, assim como sobre as capacidades e os meios necessários para assegurar sua eficácia. Pensou-se na independência tecnológica para suprir esses meios, e na articulação com a indústria nacional reforçada com proteção e auxílio econômico para a produção de materiais de defesa de maneira autônoma. Menciona o desenvolvimento científico-tecnológico nas áreas cibernética, aeroespacial e, especialmente, nuclear (SAINT-PIERRE; WINAND, 2010, grifo nosso).

Desta forma, foi possível estabelecer o alinhamento entre as necessidades de desenvolvimento da BID brasileira e os projetos de cada uma das forças singulares. O Exército Brasileiro, como exemplo, estabeleceu sete projetos estratégicos (PEEx) para serem os indutores da Transformação do Exército Brasileiro (GOLDONI; RAMOS, 2016). Dois desses projetos, o Projeto GUARANI e o Projeto ASTROS 2020, puderam ser utilizados como exemplo do desenvolvimento da BID nacional.

A visão Top-Down para o planejamento desses projetos fica evidente, ao passo que são traçadas as estratégias de longo prazo que permitem alcançar os objetivos de defesa previstos na END (OWENS, 2016). Nesses dois projetos citados, os objetivos de defesa serão atingidos com a mecanização das tropas motorizadas do Exército Brasileiro por meio do projeto GUARANI e com o aumento do poder dissuasório nacional por meio da produção nacional de baterias de lançadores múltiplos de foguetes (LMF) por meio do projeto ASTROS 2020.

Assim, a Lei nº 12.598/2012, Lei de Fomento à BID, foi um importante impulsor do desenvolvimento de indústria de Defesa Nacional. Por meio desse marco legal, o Brasil ganhou maior competitividade para seu parque industrial de defesa e permitiu ao país exportar cerca de 1 (um) bilhão de dólares em produtos da BID nos últimos anos, devido às condições especiais de tributação (SUHETT; FERREIRA, 2022). Cabe destacar que a alocação de recursos com defesa nos últimos 10 anos, em todo mundo, se manteve em constante crescimento, atingindo no último ano o total de USD 2,1 Trilhão de dólares(SIPRI, 2022), sendo, portanto, um importante setor para a economia global.

A previsibilidade de recursos é o ponto chave para a base industrial de defesa em qualquer país. Os projetos agregam alto valor tecnológico e, por isso, exigem investimento contínuo e de longo prazo. O ciclo de desenvolvimento da BID, iniciado nos anos 1970, exauriu-se pela crise econômica brasileira dos anos 1990 e pela ausência de documentos de defesa que pudessem proteger essas empresas, aspectos que conduziram à falência dos principais fabricantes de produtos de defesa nacional.

O atual ciclo de desenvolvimento da BID tem se mostrado resiliente frente às crises econômicas locais e mundiais. A publicação da PND e da END foi fundamental para a continuidade do atual ciclo da BID, pois conferiu maior previsibilidade de investimentos no setor de Defesa Nacional, amparado pelos projetos estratégicos e por um tratamento diferenciado a essas indústrias.

3. As lições do conflito russo-ucraniano

A Rússia herdou cerca de 80% do parque industrial de defesa da ex-União Soviética (URSS), país que destinava alta prioridade para a sua indústria de defesa. Volumosos recursos estatais eram destinados à produção dos mais diversificados tipos de armamentos. Com isso, a ex-URSS acabou ganhando elevada expertise na produção independente de equipamentos militares.

Nos anos 1990, a indústria de defesa russa sofreu com as restrições orçamentárias e com a desorganização de sua estrutura que perduraram até o início dos anos 2000. Nesse período, as exportações russas de equipamentos militares eram de cerca de cinco bilhões de dólares. A partir dos anos 2000, a Rússia organizou seu parque industrial de defesa e no ano de 2014, conseguiu atingir a cifra de quatorze bilhões de dólares, triplicando seu faturamento com exportações nesta área (HARTLEY; BELIN, 2021).

As sanções sofridas pela Rússia após a invasão da Criméia em 2014, tornou imperativo o desenvolvimento local de itens importados e a mudança de parceiros comerciais que permitissem a indústria bélica russa ganhar maior independência (HARTLEY; BELIN, 2021). O conglomerado Rostec, criado em 2007, que abarca 13 holdings e controla mais de 600 empresas, foi fundamental no processo de independência russa de tecnologias estrangeiras (MARCONDES, 2019). A mão do Estado foi essencial no processo de substituição de importações e produção interna de produtos para base industrial de defesa, construção civil e até fármacos.

Desta forma, o domínio da cadeia de produção industrial bélica pela Rússia tem se mostrado fundamental para a manutenção de sua campanha militar na Ucrânia. Mesmo frente as mais diversas sanções internacionais, a Rússia tem demonstrado ao mundo que possui condições de manter uma guerra prolongada, sem riscos de escassez de produtos de defesa, que pudessem comprometer a operacionalidade de suas tropas. 

4. Considerações Finais

O conflito russo-ucraniano demonstrou a importância de uma BID diversificada e independente da cadeia logística global. Produtos de defesa devem ser tratados como questão de Estado e merecem um apoio governamental diferente das demais cadeias produtivas de um país. A solução russa, com a criação do conglomerado administrado pelo Estado, a Rostec, que atende setores sensíveis da economia do país, com especial atenção à indústria de defesa, tem se mostrado um case de sucesso, que permitiu as Forças Armadas russas a manutenção em combate no atual conflito, mesmo no contexto de sanções internacionais.

O Brasil, apesar de inciativas importantes como a Lei de Fomento da BID, deve observar o modelo russo e buscar mecanismos de intervenção estatal em seu parque industrial de defesa. A dinâmica atual de cadeias de produções globais tem se mostrado perigosa para produtos estratégicos como os de defesa. A realidade observada na crise do covid-19 e agora no conflito russo-ucraniano reforça a inexistência de amizade entre os países, comprovando o caráter realista nas relações internacionais. A negação de equipamentos ou insumos estratégicos tem sido empregada como o primeiro ato de guerra e, portanto, o domínio de toda cadeia produtiva dos produtos de defesa é condição sine qua non para a garantia da soberania nacional.  

 

 Referências Bibliográficas: 

  1. AMARANTE, José Carlos Albano do. A base industrial de defesa brasileira. Rio de Janeiro: IPEA, 2012.

  2. BRASIL. Estratégia Nacional de Defesa. Brasília: Ministério da Defesa, 20162.

  3. ______. Livro Branco de Defesa Nacional. Brasília: Ministério da Defesa, 2016a.

  4. ______. Política Nacional de Defesa. Brasília: Ministério da Defesa, 2016b.

  5. HARTLEY, Keith; BELIN, Jean. The economics of the global defence industry. Londres: Routledge, 2021.

  6. MARCONDES, Beatriz et al. O caso Rostec como instrumento para análise da Política Industrial da Rússia. Debates sobre Innovación, Vol. 3, n° 2, p. 1207-1218, 2019. Disponível em: https://www.dropbox.com/s/cn3fnfraaw320po/Vol.3%20No2.pdf? dl=0. Acesso em: 11 de agosto de 2022.

  7. MARKOWNSKI, S.; HALL, P.; WYLIE, R.. Defence Procurement and Industry Policy: A small country perspective. London: Routledge, 2010.

  8. OWENS, Mackubin Thomas. Force planning: the crossroads of strategy and the political process. Orbis, Vol. 59, nº 3, p. 411-437, 2015. Disponível em: https://www.sci encedirect.com/science/article/pii/S0030438715000319. Acesso em: 11 de julho de 2022.

  9. PIM, Joám Evans. Evolución del complejo industrial de defensa en Brasil: breves apuntes para una revisión necessária. Strategic Evaluation, Vol. 1, nº 1, p. 321-352, 2007.

  10. RAMOS, Wagner Medeiros; GOLDONI, Luiz Rogério Franco. Os Projetos do Exército Brasileiro e o alinhamento com as diretrizes da Estratégia Nacional de Defesa. Revista Política Hoje, Vol. 25, nº 1, p. 153-175, 2016. Disponível em: https://peri odicos.ufpe.br/revistas/politicahoje/article/view/3714. Acesso em: 22 de julho de 2022.

  11. SUHETT, Bruno da Silva; FERREIRA, Giovanna Bernardes. Exportações na indústria de defesa brasileira. A Defesa Nacional, nº 847, p. 53-62, 2022. Disponível em: http://w ww.ebrevistas.eb.mil.br/ADN/article/view/10062. Acesso em: 11 de agosto de 2022.

  12. WINAND, Érica; SAINT-PIERRE, Héctor Luis. A fragilidade da condução política da defesa no Brasil. História (São Paulo), Vol. 29, nº 2, p. 3-29, 2010. Disponível em: https: //repositorio.unesp.br/handle/11449/28412. Acesso em: 05 de agosto de 2022.

 

Rio de Janeiro - RJ, 27 de setembro de 2022.


Como citar este documento:
Almeida, Leandro Leite de. As lições do conflito russo-ucraniano para a Base Industrial de Defesa Brasileira. Observatório Militar da Praia Vermelha. ECEME: Rio de Janeiro. 2022.  

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