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Incertezas geopolíticas em 2022 e a teoria de Pierre Lellouche

Publicado: Sexta, 30 de Setembro de 2022, 04h01 | Última atualização em Sexta, 30 de Setembro de 2022, 09h12 | Acessos: 1597

 

Bruno Lion Gomes Heck

Major do Exército Brasileiro e aluno do Curso de Comando e Estado-Maior da ECEME

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1. Introdução

O estudo da influência dos fatores geográficos na tomada de decisões no âmbito nacional e no relacionamento entre os Estados teve grande impulso no início do século XX. Proeminentes pensadores elaboraram teorias que direcionaram o comportamento de países e forneceram guias de ação para seus líderes, exercendo grande influência para a construção da paz ou, até mesmo, para a eclosão de guerras e animosidades.

Ainda hoje, o estudo da geopolítica detém importância por fornecer uma visão acerca das ameaças e das oportunidades para o atingimento dos objetivos estratégicos. A atual realidade, entretanto, progressivamente mais volátil, incerta, complexa e ambígua, dificulta o reconhecimento dos desdobramentos dos acontecimentos e o estabelecimento das melhores linhas de ação.

Nesse contexto, a análise da obra dos principais pensadores pode auxiliar na visualização de quais serão os próximos passos. À medida que as sociedades foram evoluindo e se reorganizando política e culturalmente, algumas das teorias geopolíticas perderam relevância, enquanto outras foram confirmadas. Mafra (2006) apresentou as principais delas, das quais destacamos as de Ratzel, Mahan, Mackinder, Spykman, Rufin e Brochard.

2. Os Principais Pensadores Geopolíticos

Ratzel propôs, na virada do século XIX para o século XX, sendo suportado pelo pensamento de Kjëllen, o conceito de espaço vital, ou Lebensraum. De forma geral, ele postulou que as nações fortes tenderiam a se expandir, englobando outras mais fracas e tornando-se, nesse processo, progressivamente mais poderosas e mais aptas a se ampliar. Tal formulação fez parte da ideologia alemã da primeira metade do século XX e foi um dos fatores que levaram à postura internacional ofensiva do partido nazista, colaborando para a ocorrência da Segunda Guerra Mundial.

Contemporaneamente a Ratzel, Mahan propôs a teoria do poder marítimo. Segundo ele, a nação que dominasse a vastidão dos mares seria capaz de obter grande vantagem no relacionamento com os demais países e de explorar as riquezas do mundo. Diversos Estados, ao longo de suas histórias, empregaram esse conhecimento de maneira empírica, e, mais recentemente, Reino Unido e Estados Unidos são exemplos de sua aplicação.

Mackinder foi outro pensador da virada do século XIX para o século XX, cujas teorias geopolíticas exerceram grande impacto na elaboração das políticas públicas de alguns países. Segundo ele, o mundo é dominado pela “ilha-mundo”, composta pela grande massa de terras formada pelos continentes europeu, asiático e africano. Para controlá-la, seria necessário submeter seu “coração”, ou Heartland, localizado entre a Ásia e a Europa. Para ter a posse dessa região, seria fundamental governar o Leste Europeu. A ex-União Soviética foi o Estado que mais se aproximou desse intento, com o estabelecimento da cortina de ferro após a Segunda Guerra Mundial.

Como forma de evitar o cenário descrito por Mackinder, Spykman desenvolveu a teoria das fímbrias, ou Rimland, entendida como sendo as regiões intermediárias entre o centro do continente eurasiano e os mares quentes que o cercam. Segundo o autor, tendo o seu domínio seria possível evitar que a nação controladora do Heartland expandisse seu poder para o restante do mundo. Esse pensamento levou à geoestratégia de contenção soviética levada a efeito pelo bloco ocidental, sob a liderança dos Estados Unidos, durante a Guerra Fria.

Com a derrocada da ex-União Soviética, caracterizada pela queda do muro de Berlim em 1989, teve fim a Guerra Fria e, com ela, a bipolaridade que regia as relações internacionais. Essa nova realidade exigiu esforço adicional de pensadores geopolíticos para conceituar a nova organização do poder mundial. De forma geral, a linha de raciocínio predominante naquele momento era que, superado o conflito Leste-Oeste, ele seria substituído por outro entre o Sul e o Norte, este composto por países ricos e dominantes, aquele por nações subdesenvolvidas e dominadas.

Nesse sentido, Rufin propôs a teoria dos Limes, criando a imagem de um Império ao norte sendo ameaçado por novos bárbaros do sul. Para que estes não ameaçassem o bem-estar daquele, seria necessário criar um cordão de isolamento que receberia a quantidade de investimento suficiente para conter uma invasão migratória do sul para o norte, contendo, dentre outros locais, o México e o norte da África.

Para evitar uma desorganização da economia mundial, Brochard teorizou a composição de quatro blocos distribuídos no sentido Norte-Sul. Cada qual teria sua moeda própria e ficaria sob a liderança de uma potência. O primeiro bloco seria liderado pelos Estados Unidos, o segundo bloco seria liderados pelas nações desenvolvidas da Europa, o terceiro bloco seria liderado pela Rússia e o quarto bloco seria liderado pelo Japão. Nessa concepção, os países do Sul seriam fornecedores de matérias-primas, de mão de obra barata e de mercado abundante. A tentativa de criação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), nos anos 1990, é o exemplo mais clássico dessa forma de pensamento geopolítico.

 Entre os teóricos dessa fase, cabe destaque ao brasileiro André Martin. Sua proposta de geopolítica meridionalista (DE ALBUQUERQUE, 2016) representou a busca de uma alternativa para o Brasil se posicionar de maneira mais assertiva em um contexto progressivamente mais complexo, integrado e competitivo. Segundo ele, a cooperação Sul-Sul seria o caminho para superar a dependência tecnológica do Sul em relação ao Norte, por meio do desenvolvimento adaptado às realidades da região, bem como da dependência econômica, com a exploração das potencialidades locais e o aproveitamento das menores distâncias para comércio representado pelas rotas do Atlântico Sul. O instituto do IBAS, forma de relacionamento entre Índia, Brasil e África do Sul, teria sido uma tentativa de concretizar essa ideia.

3. O Cenário Contemporâneo

O início da terceira década do século XXI, entretanto, é marcado por dois eventos dramáticos e altamente disruptivos da ordem mundial: uma pandemia, que não ocorria há aproximadamente cem anos, e uma guerra entre Estados na Europa, a maior desde a Segunda Guerra Mundial.

 O primeiro deles foi a pandemia de covid-19, uma emergência global de saúde que afetou gravemente todos os países, independentemente de seu nível de progresso econômico ou inclinação política. Ela escancarou, conforme Kissinger (2020), as vulnerabilidades de um mundo altamente interconectado, com cadeias logísticas intrincadas e dependentes de diversos fornecedores e produtores espalhados ao redor do planeta. Os interesses nacionais e os assuntos de segurança em suas diversas dimensões, como a segurança econômica e a segurança alimentar, assumiram grande relevância nas discussões públicas. A importância do desenvolvimento de capacidades tecnológicas e produtivas autóctones ficou evidente, levando as populações a repensarem conceitos liberais e globalizantes. O protecionismo, a defesa das fronteiras e outras práticas que haviam sido relegadas a segundo plano durante a multilateralização do mundo no início do século XXI voltaram à tona, reforçando o paradigma realista nas relações internacionais (SILVA GOMES, 2020).

O segundo evento foi a invasão da Rússia sobre a Ucrânia, ou, conforme declarações russas, ação militar especial na região do Donbass, em resposta à contínua expansão da OTAN em direção às suas fronteiras, comportamento que representou uma ameaça à sua segurança e soberania (FISHER, 2022). A consequência foi a eclosão de uma guerra nos moldes tradicionais, entre Estados, quebrando o predomínio de conflitos de baixa intensidade entre atores estatais e não-estatais deflagradas no contexto da guerra ao terror das últimas décadas, os quais haviam levado muitos países a questionar a necessidade de manter investimentos em suas Forças Armadas nas ações convencionais.

As ações bélicas da Rússia têm suscitado muitos debates sobre a existência de fraturas no tecido que mantém o ocidente e a OTAN. A crescente importância da pauta econômica para as populações ocidentais, em detrimento dos assuntos militares, levou a discussões dentro da OTAN acerca de quais seriam as principais ameaças, sobre as quais deveriam recair os esforços de preparação militar.

Para os Estados Unidos, o foco deveria ser dado à China e suas pretensões de expansão por meio da Nova Rota da Seda e da política do Colar de Pérolas, enquanto para os países europeus a agressividade dos posicionamentos de Vladimir Putin deveria ser levada em conta para se manter a atenção sobre os russos. As reiteradas propostas de criação de forças de defesa europeias, principalmente por parte da França, enfrentaram oposição dos Estados Unidos, ao passo que estes levaram a efeito acordos com a Austrália, com previsão de doação de submarinos com propulsão nuclear, para descontentamento dos europeus. Isso reforça as dificuldades no relacionamento entre os principais líderes da aliança atlântica.

Ao mesmo tempo, a polarização política nos Estados Unidos, com tentativas de desacreditar o sistema eleitoral, desmoralizam um dos pilares culturais daquela potência, qual seja: sua democracia. Ademais, a debilidade econômica persistente desde as crises dos subprimes, instaurada na primeira década do século XXI, reforçada pelas crises migratórias, pelo “brexit” e pela pandemia de covid-19, dificulta a continuidade da integração política e do crescimento econômico europeu, levando a índices de inflação desconhecidos pela atual geração.

Adicionalmente, o alegado fracasso dos norte-americanos no Afeganistão, com uma retirada aparentemente desordenada que resultou na ascensão ao poder em Cabul do próprio grupo que os norte-americanos combatiam por duas décadas, gerou questionamentos a respeito da capacidade dos Estados Unidos de ser a liderança da OTAN. Tudo isso dificulta o estabelecimento e a coordenação de uma resposta ocidental efetiva frente às ações russas.

A guerra da Rússia na Ucrânia gerou efeitos colaterais difíceis de serem previstos. A volta da percepção de possibilidade de conflito tradicional tem conduzido a planos de rearmamento dos Estados, com acordos recordes para vendas de armas e munições aos países europeus. Os nórdicos Finlândia e Suécia romperam sua neutralidade que durava desde a Segunda Guerra Mundial, requerendo ingresso na OTAN, o que ocasionou uma rápida resposta russa. A ameaça de utilização de armamentos atômicos por parte dos russos tem gerado intensos debates no bloco ocidental, os quais percebem que precisam responder à altura caso isso ocorra, mas também sabem que a ocorrência de uma guerra nuclear trará gravíssimas consequências para o continente europeu, com as quais os políticos podem não estar preparados para arcar. De tudo isso se vale o governo russo para explorar as fraquezas e as idiossincrasias da aliança atlântica, na tentativa de aprofundar suas fissuras e possibilitar uma reformulação do equilíbrio de poder que recoloque a Rússia no centro do tabuleiro.

4. Considerações Finais

Em vista da complexidade do mundo contemporâneo, a busca de apoio nas proposições dos pensadores geopolíticos leva ao encontro de Pierre Lellouche e sua teoria da incerteza ou da turbulência (MAFRA, 2006).

Pierre Lellouche formulou, em 1992, um cenário em que a(s) grande(s) potência(s) não teria(m) capacidade de projetar sua(s) hegemonia(s) em todo o planeta, criando um ambiente de anarquia internacional com horizonte temporal de trinta anos. Ou seja, em 2022 o mundo passaria a ser estruturado com base em outra ordem mundial.

De fato, os eventos ocorridos na terceira década do século XXI, mormente a pandemia de covid-19 e a guerra entre Rússia e Ucrânia, apontam para uma reorganização do globo assentada em uma polarização entre um bloco ocidental-atlântico, composto principalmente pelos Estados Unidos, pela União Europeia, pela Austrália e pelo Japão, em oposição a um bloco euroasiático, baseado na Rússia e na China, tendendo a agregar parte do Oriente Médio e da Ásia Central, e possivelmente os tigres asiáticos. Os países do sul, nesse contexto, teriam perdido a oportunidade oferecida por André Martin de se afirmarem como um terceiro poder, em virtude especialmente da crise econômica brasileira, da crise econômica sul-africana e do aumento do nacionalismo indiano.

O ambiente internacional tem enfrentado mudanças acentuadas nos tempos atuais. Os eventos dos últimos anos são fatos portadores de futuro que apontam para uma realidade não prevista pela maioria dos pensadores geopolíticos no final da Guerra Fria. Pierre Lellouche, porém, pode ter acertado em cheio em sua designação do ano de 2022, como sendo o marco temporal para o estabelecimento de uma nova ordem mundial.  

 

 Referências Bibliográficas: 

  1. DE ALBUQUERQUE, Edu Silvestre. A teoria geopolítica meridionalista de André Martin. Revista de Geopolítica, Vol. 5, nº 2, p. 5-18, 2016.

  2. FISHER, Max. Putin’s Case for War, Annotated. The Interpreter. Disponível em:
    https://www.nytimes.com/2022/02/24/world/europe/putin-ukraine-speech.html. Acesso em: 23 de Maio de 2022.

  3. KISSINGER, Henry A. The Coronavirus Pandemic Will Forever Alter the World Order. The Washington Street Journal. Disponível em: The Coronavirus Pandemic Will Forever Alter the World Order - WSJ. Acesso em: 23 de Maio de 2022.

  4. MAFRA, Roberto Machado de Oliveira. Geopolítica: Introdução ao Estudo. 1a ed. São Paulo: Sicurezza, 2006.

  5. SILVA GOMES, Túlio Endres da. O mundo depois da pandemia: uma geopolítica pós-contemporânea? Observatório Militar da Praia Vermelha. Rio de Janeiro: ECEME, 2020.

 

Rio de Janeiro - RJ, 30 de setembro de 2022.


Como citar este documento:
Heck, Bruno Lion Gomes. Incertezas geopolíticas em 2022 e a teoria de Pierre Lellouche. Observatório Militar da Praia Vermelha. ECEME: Rio de Janeiro. 2022.  

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