Ir direto para menu de acessibilidade.
Portal do Governo Brasileiro
Início do conteúdo da página

Unidades de operações especiais da ONU: uma solução viável para o uso da força no contexto das missões de paz?

Publicado: Quarta, 22 de Abril de 2020, 08h01 | Última atualização em Quinta, 06 de Janeiro de 2022, 13h57 | Acessos: 1699

Josias Marcos de Resende Silva
Doutorando do PPGCM da ECEME e mestre em Relações Internacionais e Resolução de Conflitos pela American Military University

 Atualmente, o uso da força no contexto das operações de paz da Organização das Nações Unidas (ONU) é um tema que suscita debates no cenário internacional. Nesse sentido, alguns autores argumentam que o uso da força por tropas da ONU fere os princípios tradicionais das missões de paz, abrindo um perigoso precedente para que grandes potências intervenham em países em desenvolvimento. Por outro lado, existe o entendimento de que somente o uso efetivo da força é capaz de deter graves violações de direitos humanos como genocídio e limpeza étnica.

É nessa conjuntura que o emprego de unidades de operações especiais surge como uma inovação dentro das operações de paz da ONU, particularmente naquelas desdobradas em ambientes hostis, onde as tropas convencionais não possuem a capacidade ou a disposição de cumprirem os respectivos mandatos e proteger os civis sob sua responsabilidade. Essa novidade só é possível porque, diferente de algumas décadas atrás, na atualidade, ONU é reconhecida pela maioria de seus Estados-membros como a organização legítima para a resolução de conflitos no mundo.

Entretanto, a realidade nem sempre foi assim. Durante a Guerra Fria, as duas superpotências representadas pelos Estados Unidos da América (EUA) e pela União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) travavam uma disputavam pela hegemonia mundial. Nesse contexto, a ONU ocupava um papel secundário no cenário internacional, cedendo constantemente aos interesses dos grandes protagonistas globais (BELLAMY; WILLIAMS; GRIFFIN, 2010, p. 175).

Com o colapso da URSS e a consequente mudança da ordem mundial, a ONU assumiu um papel de protagonismo na resolução de conflitos, desdobrando várias missões ao redor do mundo. Além do aumento em termos de demanda, as operações de paz começaram a tomar um aspecto mais complexo ou multidimensional. Isso se deve em grande parte às mudanças ocorridas na natureza dos conflitos armados. Enquanto no período da Guerra Fria os conflitos eram predominantemente travados entre Estados nacionais, o fim da bipolaridade mundial resultou num crescimento exponencial de guerras civis e ameaças não-estatais (ONU 2008, p. 21).

Assim, diferentemente das operações de paz tradicionais, estruturadas em torno de um contingente militar, as operações de paz multidimensionais adaptaram-se à nova realidade e passaram a agregar também os pilares policial e civil, ampliando seu escopo para incluir atividades como proteção de civis, apoio a refugiados, desenvolvimento, criação de instituições locais e desmobilização de ex-combatentes (ONU, 2008, p. 22).

Contudo, dois grandes fracassos nos anos 1990 frearam o entusiasmo da comunidade internacional pós-Guerra Fria, afetando negativamente a história da ONU. Eles foram materializados pelas operações de paz desdobradas em Ruanda e na Bósnia, as quais não conseguiram prevenir e deter os genocídios que ocorreram nesses dois países, colocando seriamente em xeque a credibilidade da organização. Dessa forma, a ONU percebeu que deveria se preparar para engajar em operações de paz de uma forma mais robusta (KALDOR, 2010, p. 280).

Fruto desse entendimento e após intensos debates por meio de fóruns internacionais e grupos de trabalho com especialistas, o Conselho de Segurança (CSNU) passou a emitir resoluções referenciando o Capítulo VII da Carta das Nações Unidas. Essas novas resoluções permitem que as tropas da ONU usem a força não somente para autodefesa como último recurso, mas também de forma proativa para a proteção de civis (PoC) e para a consecução de seus respectivos mandatos (ONU, 2008, p. 35).

Apesar da nova postura adotada pelo CSNU ao emitir resoluções mais robustas, as missões de paz desdobradas em regiões hostis mostraram-se incapazes de cumprir os mandatos recebidos e proteger os civis das ameaças existentes. Em 2012, na República Democrática do Congo (RDC), mais de 1.500 peacekeepers desdobrados em Goma observaram inertes enquanto rebeldes do grupo M-23 tomaram posse da cidade, causando frustração e revolta na população local e na comunidade internacional (DOSS, 2014, p. 726).

Com receio de que o conflito na RDC pudesse conduzir a violações de direitos humanos tão sérias como os genocídios de Ruanda e da Bósnia, o CSNU resolveu tomar uma medida drástica. Assim, em 2013, foi desdobrada a Brigada de Intervenção (FIB) da Missão das Nações Unidas para a Estabilização na República Democrática do Congo (MONUSCO). O mandato da FIB representou um marco na evolução do uso da força na história da ONU, uma vez que a Brigada de Intervenção recebeu a missão de conduzir operações ofensivas e neutralizar grupos armados rebeldes (ONU, 2013, p. 6).

Tendo em vista potencializar os resultados da FIB e assegurar seu sucesso, este mecanismo de intervenção foi dotado por uma Companhia de Forças Especiais da Tanzânia. De acordo com a doutrina da ONU, Operações Especiais das Nações Unidas são atividades militares conduzidas por forças especificamente designadas, organizadas, treinadas e equipadas, compostas por pessoal selecionado que utiliza técnicas, táticas e linhas de ação não-convencionais (ONU, 2015a, p. 9).

No espectro das operações de paz, as Forças de Operações Especiais (FOpEsp) podem contribuir para o sucesso dos mandatos em todos os estágios da missão, cumprindo três missões principais: Tarefas Especiais, Reconhecimento Especial e Assistência Militar.

As Tarefas Especiais, também conhecidas como Ações Diretas, são operações precisas e limitadas em amplitude e duração, com o propósito de adquirir, destruir, recuperar, neutralizar ou desabilitar objetivos de alto valor estratégico. Reconhecimento Especial são operações conduzidas para coletar ou verificar informações de valor estratégico ou operacional, empregando técnicas, táticas e procedimentos (TTP) não disponíveis em tropas convencionais. Por fim, Assistência Militar é composta pelo engajamento com lideranças e organizações locais, regionais e nacionais, além do desenvolvimento da capacidade de forças amigas (ONU, 2015a, p. 16).

No ano de 2015, respaldada pelo sucesso inicial da FIB, a MONUSCO inovou mais uma vez ao implementar a Força-Tarefa de Forças Especiais (SFTF), subordinada diretamente ao Force Commander. Essa nova estrutura reuniu sob sua coordenação a Companhia de Forças Especiais da Tanzânia, que integra a FIB, além das Companhias de Forças Especiais da Guatemala e do Egito, também presentes da missão (ONU, 2015b, p. 5).

Nesse mesmo sentido, o CSNU criou, no ano de 2016 e inserida na Missão das Nações Unidas no Sudão do Sul (UNMISS), a Força de Proteção Regional (RPF). Essa força de intervenção, aos moldes da FIB, foi dotada de uma Companhia de Forças Especiais do Nepal, também conhecida como High Readiness Company (HRC) (ONU, 2016). Finalmente, na República Centro-Africana (RCA), a Companhia de Comandos de Portugal, denominada Força Nacional Destacada (FND), passou a integrar a Missão das Nações Unidas para a Estabilização da República Centro-Africana (MINUSCA) a partir de 2017 (ONU, 2020).

De uma forma geral, o emprego de unidades de Operações Especiais resultou em relevantes sucessos iniciais nessas três missões nas quais estão sendo empregadas. Na MONUSCO, a Companhia de Forças Especiais da Tanzânia teve papel central na vitória sobre o M-23 e na redução de outros grupos rebeldes como as Forces Démocratiques Alliées (ADF) para um número insignificante (NDUWIMANA, 2014, p. 10). Na UNMISS, a HRC passou a proporcionar ao comandante da RPF a autonomia para atingir alvos com efeitos estratégicos e operacionais, contribuindo para o sucesso da missão (ONU, 2017). Por fim, de forma inédita na MINUSCA, os comandos portugueses tomaram a ofensiva e derrotaram grupos rebeldes como o Union for Peace in the Central African Republic (UPC) e o Popular Front for the Rebirth of Central African Republic (PFRC), garantindo a proteção de milhares de civis anteriormente sujeitos à barbárie das milícias (PAULINO, 2017, p. 5).

Portanto, o emprego de unidade de operações especiais surge como uma alternativa extremamente promissora para o uso da força no contexto das operações de paz, particularmente naquelas soba égide do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas. É importante lembrar, no entanto, que o desdobramento dessas unidades é bastante recente e seus resultados não estão totalmente consolidados. Dessa forma, este é um assunto que ainda necessita ser profundamente estudado e debatido. Apesar disso, resta-nos a expectativa de que as FOpEsp possam impactar de forma relevante o desempenho das operações de paz, trazendo uma nova esperança às populações sofridas nas regiões de conflito.

Rio de Janeiro - RJ, 14 de abril de 2020.

 




Como Citar este documento:

SILVA, Josias Marcos de Resende. Unidades de Operações Especiais da ONU: Uma solução viável para o uso da força no contexto das missões de paz? Observatório Militar da Praia Vermelha. Rio de Janeiro: ECEME. 2020.


Referências:

BELLAMY, Alex J; WILLIAMS, Paul D.; GRIFFIN, Stuart. Understanding Peacekeeping. 2 ed. Cambridge: Polity Press, 2010.

DOSS, Alan. In the Footsteps of Dr Bunche: The Congo, UN Peacekeeping, and the Use of Force. Journal of Strategic Studies. v. 37, n. 5, 2014. http://www.tandfonline .com.ezproxy1 .apus.edu/doi/abs/10.1080/01402390.2014.908284#.VTbTtebF-So.

KALDOR, Mary. Inconclusive Wars: Is Clausewitz Still Relevant in These Global Wars? Global Policy. v. 1, n. 3, 2010. https://onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/ j.1758-5899.2010.00041.x.

Nduwimana, Donatien. Impact of the UN Force Intervention Brigade Operations on the Eastern DRC. International Peace Support Training Center. 2014. http://www.ipstc.org/media/documents/IPSTC_OPNo2.pdf.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Nepal High Readiness Company. Regional Protection Force Standard Operational Procedures. Juba: UNMISS Headquarters, 2017.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Adopting Resolution 2304 (2016), Security Council Extends Mission in South Sudan, Authorizes Expanded Peacekeeping Force to Bolster Civilian Protection Efforts. Meetings Coverage and Press Releases. 2016. Disponível em: https:// www.un.org / press/en/2016/sc12475.doc.htm.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Portuguese Blue Helmets Awarded UN Medals for Impactful Peacekeeping. United Nations Multidimensional Integrated Stabilization Mission in the Central African Republic. 2020. https://minusca.unmissions.org/en/portuguese-blue-helmets -awarded-un-medals-impactful-peacekeeping. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Resolution 2098. New York: United Nations Security Council, 2013.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Special Forces Task Force Cell. Standard Operational Procedures. Goma: MONUSCO Force Headquarters, 2015b.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. United Nations Peacekeeping Missions Military Special Forces Manual. New York: Department of Peace Operations, 2015a.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. United Nations Peacekeeping Operations: Principles and Guidelines. New York: Department of Peace Operations, 2008.

PAULINO, Musa. Missão na República Centro-Africana: 1ª força nacional destacada. Revista Mama Sume. Carregueira: Regimento de Comandos, 2017.



64498.003656/2020-74

Fim do conteúdo da página