Ir direto para menu de acessibilidade.
Portal do Governo Brasileiro
Início do conteúdo da página

O Brasil e os movimentos populacionais no contexto dos estudos estratégicos da defesa e da segurança.

Publicado: Sábado, 30 de Mai de 2020, 09h47 | Última atualização em Sexta, 09 de Outubro de 2020, 16h39 | Acessos: 20669

Marcelo de Jesus Santa Bárbara

1. INTRODUÇÃO

Os movimentos populacionais no cenário internacional contemporâneo se caracterizam pelos deslocamentos, intermitentes ou constantes, de indivíduos e grupos entre seu território de origem e espaços de destino, em países contíguos ou não, considerados “mais atrativos”.

O Brasil é o terceiro país com maior número de nações vizinhas no cenário internacional. Um país com poder de atração condizente com atributos de poder como grande território, recursos naturais, população miscigenada e posição geográfica. Fruto dessa localização e das relações sociais, políticas e econômicas que estabelece regionalmente, a geografia se impõe como um forte atrativo diante dos 16 mil km de fronteiras terrestres com quase todos os países sul-americanos (com exceção de Chile e Equador), além 7,5 mil km de fronteira marítima – sendo o maior país do Atlântico Sul2.

Atualmente, a mobilidade populacional se transforma em um importante tema de segurança internacional tornando mais complexo o tradicional framework dos estudos de defesa e segurança que tradicionalmente considerava a defesa da soberania nacional diante do ataque militar convencional por parte de outro Estado.

Em termos geopolíticos, é importante frisar que uma redefinição de fronteiras e de áreas de influência em todo o mundo foi um dos resultados da queda de Muro de Berlim (1989), do fim da Guerra Fria (1991) e da conturbada instauração da Nova Ordem Mundial. Todavia, o otimismo diante triunfo da globalização liberal logo se dissipou diante do medo e da violência que marcam os atentados às Torres Gêmeas, a reação norteamericana e os problemas que envolvem a chamada rede terrorista global, fatos que trazem novos significados para o velho tema dos movimentos populacionais.

Em tal contexto um cenário de aumento da mobilidade populacional transfronteiriça pode gerar tensão ou é um fator de integração? Em que medida os imigrantes são uma ameaça à soberania nacional? Como acolher e integrar grandes contingentes de estrangeiros em cenários de grande crise econômica estrutural? E o que fazer quanto a uma possível crise de refugiados a partir de um país vizinho? A resposta para tais perguntas não é óbvia como parece, ainda mais se lançamos nessa equação a expressão de poder militar.

Sem a pretensão de responder cabalmente a tais questões, o objetivo do artigo será apresentar um panorama da questão da mobilidade populacional, tendo como foco o Brasil no contexto de seu entorno estratégico, a partir de termos históricos, geopolíticos e conceituais. O fenômeno reflete a complexidade dos diferentes atores envolvidos e demandará intensa reflexão visando à ação, interessando especialmente ao poder militar as inciativas que dizem respeito às políticas públicas de Estado e, por conseguinte, ao possível emprego das Forças Armadas em ações subsidiárias3 e na Garantia da Lei e da Ordem (GLO)4 envolvendo o tema.

E esses pontos começaram a ser desenvolvidos, a seguir, a partir de um breve histórico sobre a questão da mobilidade populacional em terras brasileiras.

2. Os antecedentes históricos dos movimentos populacionais no Brasil

Não é novidade alguma que os movimentos populacionais exerceram uma contribuição decisiva para o ritmo de crescimento vegetativo da população brasileira, pela integração dos estrangeiros à sociedade brasileira (SEYFERTH, 2005). O período inicial, após 1532, foi marcado pela união da mulher aborígene, chamada genericamente de índia, com o português colonizador e, depois, acrescido em ondas sucessivas o africano, oriundo de diversas localidades. Está aí a base identitária da nacionalidade brasileira (FREIRE, 1998).

Além disso, desde o fim do século XIX [1], com a chegada de suíços-alemães e açorianos, até os dias atuais, a questão dos fluxos populacionais envolveu diferentes expressões do poder nacional. Com isso, dá-se destaque para a expressão psicossocial por meio dos altos níveis de coesão nacional que tem sido mantida por essa “plasticidade da identidade nacional” e, obviamente, pela ação do Estado por meio de seus aparelhos jurídicos, educacionais e coercitivos.

Precisando um pouco mais as informações anteriores, o Brasil, entre 1820 e 1934, foi um país tipicamente de imigração [2]. Os fluxos iniciais foram dominados pelo colonizador português, e, depois por contingentes de escravos oriundos de diferentes regiões no continente africano, em especial os bantos e os sudaneses5, que trabalhariam inicialmente nas grandes plantations de cana. Porém, com o auge da economia cafeeira e o progressivo desestímulo internacional ao trabalho escravo, foi incentivada pelos governos nacionais a vinda espontânea de imigrantes italianos, espanhóis, japoneses e alemães visando a sua incorporação à economia capitalista moderna. Por exemplo, nas serras do Rio Grande do Sul, mais especificamente em Caxias do Sul, Bento Gonçalves, Garibaldi se fixaram os italianos, sendo que os alemães se fixaram no Vale dos Sinos (São Leopoldo e Novo Hamburgo) e também em Santa Catarina com colônias nas áreas de Joinville e do Vale do Itajaí (Blumenau, Brusque) e serras fluminense e capixaba. Os eslavos predominaram no estado do Paraná. Dessa forma, o elemento europeu aqui chegou vindo de diferentes regiões e foi incorporado, em maior ou menor grau, à economia e à sociedade nacional em um contexto de formação de um mercado consumidor nacional.

Destarte, a Lei Eusébio de Queirós de 1850, que proibiu o tráfico negreiro, também motivou essa inflexão de grupos africanos para os europeus. Associado a isso, o crescimento da economia cafeeira demandou mais mão de obra assalariada, o que foi suprido gradativamente pelos grupos oriundos do Velho Mundo, oriundos de áreas que sofriam com a falta de empregos ou calamidades. Por isso, o país recebeu importantes fluxos de trabalhadores.

Ao mesmo tempo que as grandes plantations voltadas para a exportação eram a base da economia nacional, os imigrantes também participavam do processo de colonização agrícola familiar caracterizado por pequenas propriedades rurais que coexistiam com grandes propriedades de cana e café, modelando a paisagem agrária nacional, sendo o espaço econômico estruturado para atender as demandas internacionais por commodities agrícolas em um mundo que já se globalizava.

Dessa forma, é importante frisar que a sociedade brasileira se formou agrária, inicialmente escravocrata e com identidade cultural híbrida (Freire, 1998). O termo híbrido, utilizado por Gilberto Freira na hoje muito questionada obra Casa Grande e Senzala, é muito importante para entender-se o caráter cultural do Brasil. Ao contrário, das chamadas identidades predatórias6 que opõem “nós” a “eles” dentro de uma mesma nação.

O pico desse grande ciclo ou onda migratória foi em 1891 onde fora registada a entrada de 215.239 imigrantes. Novamente, em 1913, observou-se a entrada de 190. 343 imigrantes. Todavia, a partir de 1934, a lei de cotas de imigração, editada pelo presidente Getúlio Vargas, restringiu bastante a entrada de estrangeiros, com exceção dos portugueses. Por exemplo, em 1936 entraram apenas 12.736 imigrantes. Por conseguinte, a lei de cotas determinava que a cada ano só poderiam entrar no Brasil até 2% do total, por nacionalidade, de imigrantes que haviam ingressado no país nos 50 anos anteriores ao início da lei.

O Brasil agrário-exportador precisava atrair grandes contingentes de mão de obra e mesmo ocupar seu território pouco povoado via expansão da fronteira econômica para o Oeste, processo conhecido como “Marcha para o Oeste” onde a população se interiorizava. A partir de 1940 [3], a imigração no Brasil esteve associada a fatos como a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e à devastação e desarticulação econômica do espaço europeu e asiático, fruto da expansão e posterior derrota no nazi-fascismo. Com isso, registrou-se a entrada de judeus, poloneses, ucranianos, lituanos, letos, japoneses e chineses, além de italianos, alemães e pessoas de outras nações europeias.

Assim, tais elementos se espraiaram pelo território nacional mantendo vivo aspectos culturais como dialetos e culinária, todavia incorporando o idioma nacional brasileiro. Nesse aspecto Seyferth argumenta que o processo também fora uma política de estado de abrasileiramento, proibindo práticas de etnicidade “alienígenas” que fossem contrárias à homogeneidade nacional (SEYFERTH, 2005. p. 17).

A autora supramecionada, embora caracterize o processo como “política intervencionista” e de “fim da tolerância pluralista” das políticas imigratórias do Império e da Primeira República, sintetiza o “carárter digestivo” ou de “absorção” que o Estado brasileiro como algo feito em prol da unidade nacional.

“De fato as metáforas disgestivas ou químicas não ficaram restritas às representações nacionalistas mais radicais em prol do melting pot (caldeirão, grifo nosso), ideal: são indicativas de um ideal de nação plasmada na mestiçagem, racialmente democrática, com firmes raízes culturais ibéricas e cuja língua vernácula é o português” (SEYFETH: 2005, p. 18)

Em meados da segunda metade do século XX, a industrialização já era uma realidade de um país que agora era eminentemente urbano, mas ainda com grandes densidades populacionais concentradas no Centro-Sul. O Brasil, durante a década de 1970, mais precisamente até o ano de 1975, voltou a receber muitos imigrantes de Angola e Moçambique, devido ao processo de descolonização (muitos portugueses) e independência de países africanos e do pragmatismo responsável de Geisel e Azeredo da Silveira7 que buscava assim manter laços estratégicos com países em todo o ecúmeno terrestre visando o interesse nacional em se tornar um global player.

Ao mesmo tempo, o pragmatismo responsável e as mudanças na conjuntura internacional (descolonização, guerra fria e diferenças Norte-Sul) também fizeram da África, durante a década de 1970, um espaço de destino para as “tecnologias tropicais” brasileiras e, com o tempo, para o alastramento da influência cultural, política e econômica por intermédio da “ponte” criada no Atlântico Sul entre o Brasil e o continente africano.

Logo, isso também foi fruto do pragmático reconhecimento do processo de independência de Guiné-Bissau e Angola, da abertura de novas embaixadas e das visitas mútuas. Por isso, a partir da segunda metade do século XX, como ressalta Visentini (2013), a industrialização e o desenvolvimentismo mudaram gradativamente a agenda internacional do Brasil e o alcance de sua política externa no cenário internacional:

Logo, isso também foi fruto do pragmático reconhecimento do processo de independência de Guiné-Bissau e Angola, da abertura de novas embaixadas e das visitas mútuas. Por isso, a partir da segunda metade do século XX, como ressalta Visentini (2013), a industrialização e o desenvolvimentismo mudaram gradativamente a agenda internacional do Brasil e o alcance de sua política externa no cenário internacional:

Já no final do século XX, a América do Sul e Ásia estavam em foco, e o Brasil acolheu grande quantidade de imigrantes peruanos, bolivianos, paraguaios, argentinos, coreanos e chineses. Era uma nova mudança das nacionalidades, dessa vez com pessoas que vivem em países do sul-americanos devido a maior proximidade comercial e política gerada pelo Mercosul e, também, de asiáticos como os chineses, fruto de uma política governamental local de exportar excedentes populacionais. Muitos dos imigrantes estavam em situação ilegal no Brasil e, não raro, trabalhavam no setor terciário informal (ambulantes) ou como empregados em empresas clandestinas nas áreas metropolitanas de grandes cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, sujeitos a cooptação pelo crime organizado. A setor terciário e a falta de empregos já se tornam um problema e um debate quanto à presença do imigrante em território nacional.

A relação entre migrações, fronteiras e poder, conforme já analisamos em outros trabalhos, Santa Bárbara (2005), tem no fenômeno migratório na América do Sul o importante processo de formação de redes transfronteiriças que, conectando as áreas de origem com as áreas de destino, passam a atuar dentro e fora do território nacional, esse é o caso dos “Brasiguaios” e também dos “Brasivianos” desde a década de 1980. Com isso, como veremos adiante, também se tem novos contingentes que atualmente pedem refúgio no Brasil, pressionando diariamente as autoridades a dar respostas ágeis e juridicamente embasadas ao problema em termos jurídicos, humanitário e social.

Sendo assim, surgia no Brasil a lei 6.815/80 [4] para dar uma resposta ao aumento da mobilidade populacional em todo planeta. Nela encontram-se importantes pontos que até hoje explicam a situação jurídica do estrangeiro no Brasil. De acordo com tal lei, o imigrante deve entrar no Brasil por locais pré-estabelecidos pelas autoridades. Em contrapartida, por exemplo, o seu Art. 57 prevê que nos casos de entrada ou estada irregular de estrangeiro, se este não se retirar voluntariamente do território nacional no prazo fixado em regulamento, será promovida sua deportação. Além disso, no § 2º da referida lei temos que desde que conveniente aos interesses nacionais, a deportação farse-á independentemente da fixação do prazo. Dessa forma, o Estado exerce suas prerrogativas coercitivas.

Atualmente, destaca-se a entrada de haitianos e mais recentemente de venezuelanos e cubanos, esses últimos da América Central, incentivados por programas sociais de cooperação Sul-Sul enfatizados pelas administrações que estiveram no poder entre 2003 e 2014. O caso dos venezuelanos chama a atenção. De um modo geral, notase que o escopo geográfico da mobilidade populacional é o entorno estratégico conforme já definido, o que realça ainda mais poder de atração brasileiro.

Com efeito, o cenário de entrada desordenada de imigrantes é potencialmente de crise no Norte do Brasil, vide os estados de Roraima e Amazonas, todavia temas como o racismo e a xenofobia, apesar do número de imigrantes que aumenta significativamente a cada dia, não tem sido a característica do Brasil. Por exemplo, a solicitação de refúgio pendentes por parte de venezuelanos era de 4 em 2010 passando para o número de 4434 em 2016. Já por parte de Haitianos era de 442, passando a 34 410 em 20148.

Cabe frisar que é justamente nesse contexto de grande incremento de mobilidade populacional transfronteiriça que surge a lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017 [5]. Nela o imigrante é definido como pessoa nacional de outro país ou apátrida que trabalha ou reside e se estabelece temporária ou definitivamente no Brasil. Segue no Art. 4o da mesma lei que ao migrante é garantida no território nacional, em condição de igualdade com os nacionais, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, bem como são assegurados direitos e liberdades civis, sociais, culturais e econômicos; o direito à liberdade de circulação em território nacional; o direito à reunião familiar do migrante com seu cônjuge ou companheiro e seus filhos, familiares e dependentes e medidas de proteção a vítimas e testemunhas de crimes e de violações de direitos.

Diante do exposto, conclui-se que o Brasil é tem sido um país com grande capacidade de atração e que tem na imigração um elemento formador de sua identidade nacional. Com efeito, a coesão nacional foi construída assentada no hibridismo cultural e na língua portuguesa que é falada em todo o território nacional. Todavia, os espaços geográficos de origem dos maiores contingentes populacionais e o tipo de inserção no mercado de trabalho se modificaram ao longo dos anos, principalmente fruto da progressiva globalização. Atualmente, não é mais o fluxo migratório forçado de africanos ou o incentivado do continente europeu e asiático que predominam. Ocorre hoje incremento dos fluxos de imigrante oriundos, principalmente, de países situados na América do Sul, no Caribe e na Porção Ocidental do Continente africano, ou seja, no chamado Entorno Estratégico Nacional.

A seguir, serão apresentados o escopo, os aspectos teórico-metodológico relativos aos movimentos populacionais no Brasil contemporâneo tendo em vista a sua atual condição geopolítica.

3. Geopolítica e mobilidade populacional, espaço e método

Sabe-se que poucos conceitos têm sido usados de forma tão vaga quanto o de geopolítica. Por exemplo, na esteira do modismo da pós-modernidade, o filósofo francês Paul Virilio (2007) afirmou que a tendência com a globalização era “cronopolítica” e não mais a geopolítica. Assim a velocidade das redes de informação e comunicação de controle do espaço-tempo dos fluxos, superaria as distâncias espaciais e poria fim à Geografia enquanto elemento fundamental de organização da sociedade. (Becker, 1999).

Todavia, Samuel P. Huntington (2004) teve um importante papel em reacender o debate focado no espaço, a partir do fenômeno cultural-civilizacional, ao afirmar que o choque das civilizações seria a tônica de mundo a partir do fim da Guerra Fria. E onde mais se daria esse conflito de vontades? O autor opõe, em sua ideia de civilizações, o Ocidente ao Oriente, principalmente às civilizações islâmica e chinesa. Logo, sem dúvida o espaço continua em voga.

por isso que o fato do Brasil, que não é considerado por Huntington um país Ocidental e sim pertencente à civilização Latino-Americana, ser um gigante continental com mais de 16 mil quilômetros de fronteiras terrestres com países sul-americanos e o departamento ultramarino francês, além de 7,5 mil quilômetros de litoral debruçado sobre o Atlântico Sul9, o projeta diretamente no centro do problema populacional. Sendo assim, juntamente com a China e a Rússia é o país que tem maior quantidade de estados vizinhos, fato que enseja uma realidade geopolítica particularmente complexa em termos de controle fronteiriço dos fluxos de mercadorias, pessoas, armamentos, drogas, etc. Além disso, a sua posição no Atlântico Sul e, como vimos o histórico de relação e cooperação com os países da África Ocidental e Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), também cria um contexto de importância significativa para a reflexão acerca de possíveis fluxos internacionais de pessoas oriundos do continente africano, somados ao europeu e asiático.

O fato é que a mobilidade populacional transfronteiriça, enquanto um relevante problema teórico vem ganhando destaque com a intensificação, nos anos 1980, da sociedade em rede e o poder da identidade no cenário internacional (Castells, 1999). Naquele período, surgiram teses sobre a globalização e suas consequências para a soberania estatal e mesmo o espaço que passava a ser visto como algo que seria superado pelas novas tecnologias de transporte, comunicação e informação. Iniciava-se à época o questionamento acerca de qual seria o papel do Estado-Nação diante dos novos fluxos de uma população cada vez mais globalizada de consumidores e mesmo sobre a formação de uma cidadania globalizada.

Por exemplo, contribuindo para o debate, Meira Mattos (2011) lançou nos anos 1980 os conceitos de “Estado Ficção” e “Estado Realidade”, não por acaso trazendo a geopolítica para o centro do problema. A geopolítica vista pelo autor como a política ou arte de governar aplicada aos espaços geográficos. Essa terminologia de Meira Mattos era um indicativo do hiato que pode existir na relação entre o Estado e seu território e, aqui, será desenvolvida no sentido da real necessidade de contribuição para o estabelecimento de políticas públicas nas áreas de Segurança e Defesa a fim de se dar de situações-problema.

O “Estado Realidade” e presente deve dar respostas que envolvam a alocação e, se for o caso, o controle do acesso e circulação de fluxos imigratórios na área do entorno estratégico. Para tanto, inspirando em Meira Mattos (1977), será fundamental um estudo pautado em teoria e, por conseguinte, em método que contribua para formulação de políticas públicas de Estado, enquanto planejamento integrado (Operações Interagências, Conjuntas e Combinadas). Uma sugestão é que se baseie em dois passos:

1) A avaliação da conjuntura ou da realidade dos movimentos populacionais, especialmente no contexto do entorno estratégico, à luz das expressões do poder nacional, em termos de impactos sobre a segurança e a defesa 10 do Brasil;

2) Eventual contribuição na formulação de políticas que responderiam aos objetivos levantados na primeira fase.

Na esteira desse raciocínio, o poder militar, por exemplo, se pauta pela ação planejada e tendo como base a apreciação das expressões do poder nacional. Por exemplo, é “Braço Forte” e “Mão Amiga” o modus operandi norteia a ação da força terrestre diante de questões complexas como as que podem apresentar os movimentos populacionais transfronteiriços, mostrando uma perspectiva que será desenvolvida a seguir articula soft e hard power harmoniosamente. Para tal fim, a Força Terrestre pode, por exemplo, desempenhar missões de estabelecimento e operação de corredor humanitário em caso de crise de refugiados em uma área de fronteira. Para tanto, o poder militar deve estar apto a dar respostas a questões como para onde conduzir eventuais deslocados oriundos de países vizinhos e por onde deslocar tais civis que deixam desorganizadamente seus países e adentram em território nacional.

Conclui-se, parcialmente, que o Brasil, devido a atual inserção internacional e dimensão territorial de perfil tanto continental como atlântico, construiu um entorno estratégico onde projeta poder por meio da influência econômica, militar e cultural imediata. Essa condição, associada à instabilidade em países vizinhos, gera fatores de atração populacional oriundos de estados contíguos ou não que se traduzem num possível cenário de aumento dos fluxos populacionais na direção do território nacional.

4. Uma proposta de referencial teórico: os Estudos Estratégicos da Defesa e da Segurança

As perguntas que servem de base para a definição do referencial teórico é saber com qual lente é possível se analisar os movimentos populacionais no entorno estratégico? Como eles afetam a atual realidade brasileira?

O conceito de estratégia é normalmente associado à aplicação do poder militar para o atingimento de objetivos políticos definidos por um Estado, em um contexto de oposição de vontades. Esse é um importante ponto de partida. Ao mesmo tempo, também dado o caráter multifacetado do problema, a perspectiva aqui adotada reside no enfoque multidisciplinar do campo dos estudos estratégicos (BAYLIS e WIRTZ, 2010; FIGUEIREDO, 2010). Para os referidos autores, essa condição permite que, na teoria, sejam estabelecidos pontos que permitam analisar, à luz do problema discutido, a aplicação do uso da força ou da expressão militar do poder, a geografia, a economia, situação social, dentro outros, tendo por base os objetivos da política externa de Estado, no caso o Brasil no contexto de seu entorno estratégico.

O conceito de estratégia, destarte, precisa ser entendido na interface de fatores ou expressões como a política, a econômica, a psicossocial e militar, a fisiografia, bem como a ciência e tecnologia, mas o seu eixo condutor repousa sobre como empregar o poder militar diante do fenômeno dos movimentos populacionais.

Em autores como Liddel Hart (1967) percebe-se a diferenciação entre a “estratégia pura” (arte do estrategos) e a grande estratégia, que significava coordenar e dirigir todos os recursos de uma nação ou de um grupo de nações para a consecução dos objetivos políticos visados com a guerra, que é definido pela política.

É importante afirmar que André Beaufre (1998), acreditava que a essência da estratégia consistia na oposição e no choque entre vontades, onde a força deve ser empregada para resolver conflitos de interesse entre Estados, utilizando da melhor forma os meios militares de que dispõe o governo para se atingir os objetivos nacionais. Contudo, a questão que se coloca com os movimentos populacionais é saber quanto ao uso da força está ambientada para o contexto de paz ou em cenários complexos e contra grupos não-estatais.

Por isso Edward N. Luttwak defende que as ações da grande estratégia demandam a coordenação dos campos da diplomacia, propaganda, operações secretas e em toda esfera econômica, bem como na política militar (LUTTWAK, 2009). Ela traz em si um grande problema pois

o altamente diversificado aparato de Estados modernos é, por si só, os grandes obstáculos à implementação de qualquer amplo esquema de grande estratégia. Cada departamento militar e civil está estruturado para perseguir seus próprios objetivos distintos e cada um tem a sua própria cultura institucional (LUTTWAK, 2009, p. 324).

Em outras palavras, a articulação entre a expressão política e o poder militar já é uma questão chave em Luttwak que frisa as diferenças culturais e a persecução de objetivos próprios como fatores para a falta de canais de diálogo entre os “departamentos” militares e civil.

Na obra Strategy in the Contemporary Wolrd encontra-se elementos que podem ampliar os componentes da atuação do poder militar diante de problemas como o da mobilidade populacional. Stephen Biddle, no texto Land Warfare: Theory and Practice, comenta a diferença entre força bruta e coerção: “where coercion fails, brute force on land has been the final arbiter on disputes” (BIDDLE, 1999, p.92).11

Mas ampliando a discussão sobre o uso do poder militar para além das dimensões da coerção e da coação, Joseph Nye, na obra O Futuro do Poder 12, convida a refletir sobre as diferentes formas de usos não coercitivos e “benignos” dos recursos militares - que podem ser uma fonte importante do comportamento do poder brando de estruturação de agendas, persuasão, cooptação e atração entre estados na política mundial. Desse modo, conforme sugere o próprio Joseph S. Nye Jr, no livro citado, o poder militar necessita ser olhado mais de perto pois

O recurso do poder militar há muito vem sendo usados para proporcionar proteção aos aliados e ajuda aos amigos, mas até o comportamento de lutar em defesa dos amigos pode envolver o poder brando (...) os usos não coercivos e benignos dos recursos militares podem ser uma fonte importante do comportamento do poder brando de estruturação de agendas, persuasão e atração na política mundial. (NYE, 2012 p. 49)

Ao mesmo tempo, pode-se afirmar que, conforme é sinalizado ao longo do texto, as migrações internacionais estão entre os temas que podem a ser pensados a partir de uma perspectiva de segurança como quer a Escola de Copenhagen por intermédio da obra de autores como Barry Buzan, Waever, Lemaitre, Kelstrup (1993;1998). Buzan inclusive enfatiza que o conceito de segurança é muito válido para se estudar os riscos multifacetados presentes no mundo contemporâneo. Sendo assim, essa lógica redunda na percepção da mobilidade populacional transfronteiriça como uma eventual ameaça ao Estado receptor, securitizando o fenômeno. Assim desempenha um papel de destaque na definição de prioridades na agenda de política externa diante do controle de fronteiras e dos impactos internos (políticos, econômicos ou psicossociais). Não se trata aqui de rotular pura e simplesmente o “outro” ou o estrangeiro como o “inimigo”, restringindo as liberdades civis ou humanas dos envolvidos, mas de refletir e agir num quadro definido politicamente, tendo em vista de objetivos nacionais claros em termos de questões como integração e coesão social, terrorismo, multiculturalismo, etc.

Pode-se concluir que os movimentos populacionais, inseridos no campo dos estudos estratégicos da defesa e da segurança precisam abordar a estratégia para além do que sua interpretação literal inicialmente sugere: arte militar de dispor ou organizar as forças para o combate. Os estudos envolvem, contextualizados ao problema, o fornecimento de embasamento teórico que permitam analisar a atuação do poder militar diante dos diversos riscos que envolvem o fenômeno e de como a força armada pode ser empregada para se atingir os fins da política interna/externa em tempos de paz ou na guerra.

4. Conclusão

O artigo, obviamente, se limita a lançar luz sobre um tema que é de fundamental importância ser discutido. Logo, trata-se de um ponto de partida para o necessário aprofundamento em futuras discussões e pesquisas sobre os movimentos populacionais enquanto parte de estudos multidisciplinares. Com efeito, existe um longo caminho a ser percorrido o que demandará dos órgãos e atores envolvidos uma visão integrada e coerente à realidade internacional e aos valores humanitários modernos.

Em síntese, pede-se licença para estar de acordo com a estratégia do “Braço Forte, Mão amiga” que indica a capacidade de atuação em cenários complexos como os movimentos populacionais, envolvendo um conjunto de atores estatais e não estatais, sendo não só uma função da expressão do poder político, mas também fruto da sinergia entre Estados vizinhos, Forças Armadas, Polícia Federal, Polícia Rodoviária, o Ministério das Relações Exteriores, o Ministério da Justiça, etc). Destarte, para combater as ameaças concretas (não as imaginadas) deste mundo globalizado, é preciso fazer com que o controle social das fronteiras e do cotidiano seja permeado por ações contextualizadas aos problemas enfrentados e, por isso, de inteligência estratégica.

Assim, como o Brasil faz parte do seleto grupo dos cinco maiores países em termos de território e população, estando há décadas entre as dez maiores economias do mundo e possuir um produto interno bruto (PIB) com mais de 90% do seu comércio exterior feito pelo mar, se configurando como um país simultaneamente marítimo e continental. É um cenário possível que a posição geográfica aliada ao aumento do poder de atração ou soft power nacional encontre no seu entorno estratégico um contexto favorável ao aumento da mobilidade humana.

A resposta se inicia em enfatizar que o problema dos movimentos populacionais possa ter um enfoque geopolítico pertencendo ao campo dos estudos estratégicos da defesa e da segurança. Sendo assim, envolve questões de domínio e/ou ocupação do espaço, em contextos e causas como a intensificação da mobilidade populacional na economia globalizada, situações de perseguição política, problemas étnico-religiosos, catástrofes naturais, socioculturais, conflitos bélicos, o turismo, o estresse ambiental, expansão da fronteira agrícola, dentre outras. Portanto, como não existem soluções simples para problemas complexos, o movimento populacional também pode apresentar consequências as mais variadas para o Estado e a sociedade, dependendo do referencial (se país de origem ou de destino) e da forma como o caso é abordado.

Portanto, o Brasil deve unir esforços simultâneos em diplomacia, segurança e defesa para manter uma posição de independência e solidariedade diante de um possível cenário crítico em termos de movimentos populacionais, agindo sem olvidar o monopólio legítimo de usar meios coercitivos, mas se organizando diante de possíveis cenários de intensificação da mobilidade populacional, onde o problema da segurança humana pode se chocar com a questão da soberania nacional.

Por fim, o estudo sobre os movimentos populacionais em termos de defesa e segurança podem ser uma valiosa ferramenta para se analisar e operar num contexto onde a incerteza e a ambiguidade demandam respostas diante das constantes mudanças de cenários e circunstâncias.

Notas

1 Major QCO Magistério em Geografia, mestre em Estudos Estratégicos da Defesa e da Segurança pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

2 Corroborando a condição geopolítica brasileira, o entorno estratégico nacional é definido por Fiori (2013: p. 2) como "a região onde o Brasil quer irradiar – preferencialmente – sua influência e sua liderança diplomática, econômica e militar, o que inclui a América do Sul, a África Subsaariana, a Antártida e a Bacia do Atlântico Sul". Assim situado, nos indica que o aspecto geopolítico do problema da mobilidade populacional vai nos conduzir a análise de três realidades geográficas interconectadas: em primeiro lugar, a área de fronteira e, uma vez no interior dos estados, os núcleos urbanos no litoral e na “hinterlândia” das áreas rurais do Brasil.

3 As atividades subsidiárias podem ser de caráter geral para as 03 forças e particular a cada uma. Estão definidas na Lei Complementar nº 97/99 e disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/Lcp97.htm. Acesso em 05 de dezembro de 2017.

4 Definido conforme o Artigo 142 da Constituição Federal de 1988, disponível em http://www.senado.gov.br/legislacao/const/con1988/CON1988_04.02.2010/CON1988.pdf.

5 O censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) revela que dos aproximadamente 50% dos cerca de 200 milhões de habitantes brasileiros era afrodescendente o que o deixa atrás apenas da Nigéria em números absolutos. Disponível em: http://www.ibge.gov.br

6 “Defino como predatórias aquelas identidades cuja mobilização e construção social requerem a extinção de outras categorias sociais próximas definidas como ameaças à própria existência de algum grupo, definido como nós.” (APPADURAI, 2009, p.46).

7 A política africana de Azeredo da Silveira, durante o governo do General Ernesto Geisel (1974-79), correspondeu ao período conhecido como Pragmatismo Ecumênico e Responsável. Entre outras ações, o Brasil tomou medidas concretas para se afastar da África do Sul do apartheid e se aproximar do restante do continente, bem como reconheceu e auxiliou as independências das colônias portuguesas na África.

8 Dados disponíveis em http://www.justica.gov.br/noticias/brasil-tem-aumento-de-12-no-numero-de-refugiados-em- 2016/20062017_refugio-em-numeros-2010-2016.pdf/view, acesso em 9 de dezembro de 2017.

9 Segundo Therezinha de Castro (1999), o Atlântico Sul é o “espaço marítimo compreendido entre três frentes continentais – América, África e Antártica; e três corredores – o do Norte, constituído pela zona de estrangulamento Natal-Dacar, e dois no Sul, respectivamente, entre a Antártica e as frentes continentais americana-africana, comandados pelo Estreito de Drake e Passagem do Cabo” (CASTRO, 1999, p. 304).

10 A segurança é um estado ou condição em que se estabelece a nação – está a cargo da nação e de todas as suas forças disponíveis. Já o conceito de defesa é definido como um conjunto de meios e ações que compõem a segurança nacional e está a cargo das Forças Armadas, conforme preceito Constitucional (CERVO, 2008, p. 119).

11“Onde a coerção falha, a força bruta tem sido o árbitro final nas disputas”, em tradução livre).

12 Os termos poder robusto e poder brando são traduções dos conceitos de hard power e soft power desenvolvidos pelo autor norte-americano Joseph Nye (2012) na obra “O futuro do poder”, para expressar a interação entre as dimensões complementares do cooptação e do comando (NYE, 2012).

Veja mais [+]

Fim do conteúdo da página