Os motivos que levaram a queda do regime totalitário de Bashar al-Assad
Anselmo de Oliveira Rodrigues
Coronel do Exército Brasileiro. Doutor em Ciências Militares e
Coordenador do OMPV
1. Introdução
No dia 08 de dezembro de 2024, o mundo assistiu a queda de Bashar al-Assad. Sob a liderança do grupo extremista Hayat Tahrir al-Sham (HTS), os rebeldes sírios tomaram de assalto a capital Damasco, colocando um ponto final num regime que já perdurava mais de 50 anos no poder da Síria. A tomada da capital síria representa o coroamento de uma ofensiva rebelde muito bem sucedida, que teve início em finais de novembro de 2024, com a tomada de Aleppo, importante cidade síria situada ao norte do país e, sem encontrar muita resistência, os rebeldes rapidamente avançaram para Damasco.
As tentativas de Bashar al-Assad para deter o avanço dos rebeldes não obteve o êxito esperado, restando ao ditador apenas a opção de fugir para Moscou, local onde recebeu asilo político da Rússia. Com a saída do país, não tardou para milhares de homens, mulheres e crianças irem às ruas de cidades sírias como Damasco, Aleppo e Sueida para comemorarem a deposição do mandatário, demonstrando ao mundo qual era a vontade da maior parte da população que reside na Síria.
A queda do ditador sírio surpreendeu quase todos, afinal o regime de Bashar al-Assad conseguia se manter no poder, mesmo com a guerra civil instaurada no país desde 2011. Mas, quais foram os motivos que levaram a queda de um regime autoritário que perdurava mais de 50 anos na Síria? Para responder esse questionamento, este artigo apresenta cinco fatos ocorridos nos últimos meses de 2024, que motivaram a queda de Bashar al-Assad.
2. Primeiro Fato - o colapso do Hezbollah
Em que pese estar sediado no Líbano, o Hezbollah possui estreita ligação com o Irã. Logo após a revolução iraniana de 1979, o Corpo da Guarda Revolucionária Islâmica do Irã ajudou a estabelecer o Hezbollah no Líbano fornecendo dinheiro, equipamento, formação e orientação estratégica à incipiente organização xiita. Com uma ideologia voltada para a causa palestina, o Hezbollah passou a não reconhecer o Estado de Israel, questionando ostensivamente sua soberania, tendo, inclusve, o enfrentado em alguns momentos da história.Contudo, os ataques terroristas perpetrados pelo Hamas em 07 de outubro de 2023, geraram um clamor popular no seio da sociedade israelense, sendo considerado por muitos, um evento semelhante ao que aconteceu com os Estados Unidos da América em 2001. Com esse sentimento, Israel iniciou uma verdadeira caçada para combater os grupos extremistas da região que não reconheciam a legalidade e a legitimidade do Estado de Israel, dentre os quais toma destaque o Hezbollah. O embate envolvendo Israel e o Hezbollah se deu ao mesmo tempo do combate travado com o Hamas em Gaza. Utilizando uma estratégia distinta da adotada em Gaza, Israel se apoiou em sua inteligência para realizar ataques episódicos direcionados à cúpula do Hezbollah no Líbano, mesclando sabotagens e emprego do poder militar tradicional. E assim, em 27 de setembro de 2024, as Forças de Defesa de Israel conseguiram eliminar Hassan Nasrallah, líder do Hezbollah, em Beirute, capital do Líbano, decretando o colapso do grupo extremista.
O colapso do Hezbollah descortinou a fragilidade do Irã, que não foi capaz de manter o Hezbollah em condições de combate contra Israel. Temeroso por uma investida israelense em seu território, o Irã teve de redirecionar seus esforços para fotalecer sua defesa territorial. Para tanto, o Irã retirou suas tropas e materiais de emprego militar que estavam apoiando o regime de Bashar al-Assad em outubro de 2024. A perda do apoio iraniano desestabilizou o regime do mandatário sírio, que, associado a outros eventos, iniciaram o processo de ruptura do regime de Bashar al-Assad.
3. Segundo Fato - o colapso do Hamas
Deflagrado em 07 de outubro de 2023, o embate envolvendo Israel e Hamas foi determinante para reconfigurar o tabuleiro de forças na geopolítica do Oriente Médio. Ignorando todas as recomendações feitas pela Organização das Nações Unidas referentes aos direitos humanos, Israel empregou grande parte de seu poder militar para destruir o Hamas. Tal investida ocasionou danosos efeitos colaterais junto à população civil residente na Faixa de Gaza. Não pelo acaso, Gaza ficou, literalmente, em ruínas e sem perspectiva de reconstrução a médio prazo.
O colapso do Hamas se deu 1 ano após os ataques terroristas perpetrados pelo grupo. A morte de Yahya Al-Sinwar, líder do Hamas, ocorrida em 17 de outubro de 2024, em meio a uma batalha travada contra os militares israelenses na cidade de Khan Yunes, ao sul da Faixa de Gaza, materializou o colapso do grupo. Além de evidenciar o sucesso israelense, o colapso do Hamas, grupo extremista apoiado pelo Irã, pela Síria e por outros atores não estatais no Oriente Médio, gerou um efeito em cascata que afetou o Irã e a Síria.
Como se não bastasse o caos interno vivenciado desde 2011 em seu território, Bashar al-Assad também teve de enfrentar ataques pontuais executados pelas Forças de Defesa de Israel em território sírio, e que tinham como alvos bases militares e locais onde os líderes do Hamas costumavam se encontrar para deliberar sobre as estratégias a serem adotadas pelo grupo. Com tantas frentes de combate em disputa e já fragilizado pela perda do apoio iraniano, a derrocada do regime de Bashar al-Assad seria concretizada em questão de tempo.
4. Terceiro Fato - a utilização de mísseis de longo alcance na guerra russo-ucraniana
Eclodida em fevereiro de 2022, a guerra russo-ucraniana ainda não havia se tornado um obstáculo para que a Rússia pudesse apoiar o regime totalitário na Síria. Mesmo com o enorme apoio dado pelo Ocidente à Ucrânia, os russos estavam conseguindo travar o combate contra os ucranianos e ainda conseguiam fornecer apoio (militar, político e econômico) para Bashar al-Assad, uma vez que a Síria era considerada estratégica para a Rússia, pois servia como uma barreira para o avanço de Israel.
Contudo, um fato ocorrido em 17 de novembro de 2024, mostrou-se determinante para a perda do apoio russo à Síria. Trata-se do pronunciamento feito por Joe Biden, o qual autorizou a Ucrânia a utilizar mísseis de longo alcance fornecidos pelos norte-americanos na guerra contra a Rússia. Até então, a Ucrânia estava vetada de utilizar esse tipo de armamento, mas a presença de tropas norte-coreanas lutando ao lado de tropas russas no conflito entre Rússia e Ucrânia foi o estopim que faltava para a emissão do pronunciamento do mandatário norte-americano, autorizando os ucranianos a utilizarem mísseis de longo alcance nesse embate.
Com isso, a Rússia teve de se reorganizar e fortalecer a defesa de suas posições em seu território contra esse tipo de armamento. Uma das consequências foi a retirada de tropas e materiais de emprego militar russos que estavam na Síria. Enfraquecido, o regime de Bashar al-Assad não teve a robustez necessária para continuar seu enfrentamento contra os opositores rebeldes que, sabiamente, aproveitaram-se do momento de fragilidade do mandatário sírio para iniciar uma forte ofensiva poucos dias depois.
5. Quarto Fato - o fortalecimento do Hayat Tahrir al-Sham
Com origem ligada à Al-Qaeda, o Hayat Tahrir al-Sham (HTS) é um grupo extremista que surgiu na década de 2010 e que até então controlava a porção norte da Síria, uma área que contém cerca de 2 milhões de pessoas.
Com essa estrutura e de postura contrária à política implementada pelo mandatário sírio, o HTS procurou parceiros externos para ajudá-lo em sua causa político-ideológica. Solidarizado com a situação da população síria e sofrendo os efeitos colaterais em seu território decorrentes da guerra civil deflagrada na Síria em 2011, a Turquia se firmou como a principal parceira do HTS, fornecendo apoio financeiro, político e militar ao grupo extremista.
Atento aos sinais de enfraquecimento emitidos pelo regime de Bashar al-Assad nos últimos meses de 2024, o Hayat Tahrir al-Sham aproveitou-se da situação para liderar um movimento revolucionário, que iniciou em finais de novembro de 2024 e culminou com a tomada da capital síria em 08 de dezembro de 2024. Com o HTS fortalecido e sem o apoio do Irã e da Rússia, o mandatário sírio nada pôde fazer para conter a ofensiva rebelde.
Não pelo acaso, a Turquia reabriu sua embaixada na Síria em 14 de dezembro de 2024, tornando-se o primeiro país a fazê-lo desde o fim do regime de Bashar al-Assad, fato que fortaleceu politicamente ainda mais o grupo extremista, dando legitimidade para que ele possa representar o país no cenário internacional.
6. Quinto Fato - a união da população síria
A cena que retrata a população síria em festa, comemorando a queda de Bashar al-Assad evidencia o sentimento da maior parte dos sírios após a derrocada do regime autoritário. Para se manter no poder por tanto tempo no país, Bashar al-Assad teve de utilizar métodos extremos para neutralizar os opositores do regime, que passou a ser a maior parte da população síria.
Essa postura acentuou as desigualdades existentes na sociedade síria, onde apenas uma pequena parcela detinha privilégios políticos e financeiros, enquanto a grande maioria dos sírios viviam na pobreza e impedidos de exercerem seus direitos políticos. Isso fez com que a população síria se unisse em prol da deposição de Bashar al-Assad, não importando a crença ideológica e religiosa dos grupos étnicos sírios.
Essa união foi fundamental para o sucesso obtido pelo HTS em sua ofensiva que, fortalecido pelo apoio turco, liderou um movimento revolucionário composto também por outras milícias rebeldes como o Exército Livre da Síria, as Forças Democráticas Sírias, combatentes curdos, dentre outros.
Em qualquer planejamento militar, a população sempre será o centro de gravidade. Não basta alcançar o objetivo militar, há que se ter um cuidado especial em conquistar também o apoio da população local. Se não obtiver o apoio da população, a operação militar não atingirá o estado final desejado. No caso da Síria, percebe-se claramente que o ditador ignorou essa premissa, na medida em que teve que praticar um regime repressivo contra a sua própria população para se manter no poder. A postura adotada pelo ditador sírio a partir de 2011 foi determinante para que os diferentes grupos étnicos se unissem em prol da deposição do regime autoritário.
7. Considerações Finais
A queda de Bashar al-Assad evidenciou, sobretudo, o desejo da maior parte da população síria. Quanto à Síria, somente a história revelará qual destino o país seguirá. Fato é que, independentemente de quem esteja no poder, a pessoa ou grupo deverá ter muita coragem, empatia e habilidade política para liderar um país que está em ruínas e que está traumatizado com uma guerra civil que perdurava desde 2011.
Quanto ao tabuleiro geopolítico regional, não restam dúvidas de que o principal vencedor foi Israel, que a despeito de ter sofrido os ataques terroristas em 07 de outubro de 2023, teve a força necessária para erradicar os principais atores que não reconheciam a soberania de Israel sobre seu território, dando um recado para todos no Oriente Médio que é a principal potência militar regional. Também merece destaque a Turquia, que saiu ganhando com a deposição do mandatário sírio. Com uma postura diferente de Israel, os turcos apoiaram o principal grupo extremista que esteve à frente do movimento revolucionário sírio, pelo que lhe confere grande vantagem política.
Os atores regionais que mais sofreram perdas com a queda de Bashar al-Assad foram Hamas, Hezbollah e Irã. As mortes dos líderes do Hamas e do Hezbollah, ocorridas num intervalo de três semanas em 2024, praticamente colapsaram os grupos, que precisarão de tempo e terão de se reinventar para prosseguirem em suas causas políticas e ideológicas com a mesma força de outrora. Quanto ao Irã, resta claro que os eventos ocorridos no último quadrimestre de 2024 descortinaram a fragilidade do Irã, país que mais se enfraqueceu geopoliticamente no Oriente Médio.
Quanto ao tabuleiro geopolítico global, o principal vencedor foi a União Europeia, que vinha sofrendo diretamente os efeitos colaterais do regime praticado por Bashar al-Assad. Não pelo acaso, a União Europeia rapidamente se colocou à disposição para ajudar o novo poder na Síria. Quem saiu ganhando também foram os Estados Unidos da América que, atuando de forma indireta, viu o fortalecimento de Israel no Oriente Médio e o enfraquecimento da Rússia nessa região. Não restam dúvidas de que, a nível global, a Rússia foi a principal perdedora, na medida em que não conseguiu manter no poder da Síria, um regime alinhado com seus interesses na região.
Rio de Janeiro - RJ, 18 de dezembro 2024.
Como citar este documento:
Rodrigues, Anselmo de Oliveira. Os motivos que levaram a queda do regime totalitário de Bashar al-Assad. Observatório Militar da Praia Vermelha. ECEME: Rio de Janeiro. 2024.
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