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XXIX Ciclo de Estudos Estratégicos - Os Desafios do Sistema Internacional Contemporâneo para a Defesa

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A guerra entre Rússia e Ucrânia e as consequências para a União Europeia

Publicado: Quarta, 17 de Julho de 2024, 01h01 | Última atualização em Quarta, 17 de Julho de 2024, 10h16 | Acessos: 652

 

Thiago Bentes de Mello
 Major do Exército Brasileiro. Doutorando em Ciências Militares na ECEME

Débora Raquel Oliveira Regis
 Mestranda em Ciências Militares na ECEME

1. Introdução

Desde a invasão russa na Ucrânia em fevereiro de 2022, a dinâmica das relações internacionais na Europa sofreu alterações significativas (DELANTY, 2023). Segundo Buzan e Waever (2003), a Ucrânia desempenha o papel de buffer[1] entre a União Europeia e a Rússia, atuando como uma zona de transição e separação entre esses dois atores geopolíticos.

Compreender a situação da União Europeia face ao conflito entre Rússia e Ucrânia, por meio de uma análise da dinâmica de interdependência estrutural[2] desses atores, possibilita revelar as alterações de equilíbrio de poder na região e as respostas do velho continente frente aos desafios impostos por essa nova realidade.

Assim, este estudo busca identificar as consequências desse conflito para a União Europeia após o início da operação militar russa, em 24 de fevereiro de 2022, por meio de uma análise de fatores econômicos, sociais, políticos e militares. Acredita-se que assim procedendo, este artigo fornecerá uma análise abrangente que contribuirá para o entendimento das complexas relações geopolíticas no leste europeu e, especialmente, da situação da União Europeia diante desse conflito, possibilitando a compreensão das políticas adotadas pelos líderes da Europa continental dentro do contexto dos desafios socioeconômicos e militares prementes na região.

 

2. A União Europeia e a inserção russo-ucraniana

A União Europeia é uma organização intergovernamental política e econômica de 27 países que buscam promover a integração entre si. Ela teve origem após a Segunda Guerra Mundial, com o objetivo de garantir a paz e a estabilidade na região. Oficialmente, a formação do bloco ocorreu em 1992 com a assinatura do Tratado de Maastricht e a conformação de seus três “pilares”: a Comunidade Europeia, que com o lançamento da moeda única, o Euro, estabeleceu a União Econômica e Monetária (UCM); a Política Externa e de Segurança Comum (PESC); e a Cooperação em Justiça e Assuntos Internos (JAI) (COSTA, 2017).

Após sua formalização, a União Europeia prosseguiu em seu processo de aprofundamento institucional e de alargamento rumo ao leste europeu, com a adesão de novos países membros e a negociação com candidatos voluntários para integrarem o bloco. A figura a seguir mostra esse processo desde as origens do bloco (COSTA, 2017).

Figura 1 - Histórico de adesão de países a União Europeia e países candidatos

a guerra entre russia e ucrania e as consequencias para a uniao europeia fig1 

Fonte: OS AUTORES, com base em COSTA, 2017.

Apesar desse movimento de ampliação e alargamento desde suas origens, determinadas conjunturas econômicas, sociais e geopolíticas impactaram negativamente a integração do bloco europeu. As crises de 2008 e 2009, que deterioraram as finanças públicas de muitos países da zona do euro, desencadearam uma onda crescente de movimentos eurocéticos, um fenômeno que, desde então, se tornou o novo normal na política da União Europeia (COSTA, 2017; BRACK; STARTIN, 2015).

O Brexit, uma decisão do Reino Unido em deixar a União Europeia, é um exemplo desse cenário, na medida em que evidencia as tensões nacionalistas e a insatisfação com a integração europeia. Questões como os movimentos migratórios, segurança pública, crises econômicas e as dificuldades financeiras de alguns países geram debates e promovem o crescimento de governos com ideais conservadores e que ameaçam seguir o exemplo britânico. Essa situação leva a questionamentos e controvérsias sobre a identidade cultural dos países e das políticas de controle de fronteiras, que impactam a coesão e a integridade do bloco (GALINARI, 2018).

Além disso, a União Europeia enfrenta desafios consideráveis relativos às disparidades nos indicadores sociais de qualidade de vida entre os diferentes países membros. O envelhecimento populacional é uma questão premente, que impacta diretamente a situação previdenciária e coloca pressão sobre os sistemas de saúde e seguridade social. Além disso, as políticas de austeridade fiscal e as demandas por reformas estruturais, têm levado a tensões pela preservação do modelo social europeu, que foram agravados especialmente após a pandemia da covid-19 (BILBAO-UBILLOS, 2023).

No âmbito econômico, a União Europeia tem como característica a grande interdependência entre os países, caracterizada pela diversificação dos setores econômicos (DARMAYADI; MEGITS, 2023). Segundo mensagem emitida pela Comissão Europeia junto ao Parlamento Europeu, o bloco enfrenta desafios significativos, tais como a baixa taxa de crescimento econômico, a concorrência internacional crescente, além dos obstáculos para a implementação efetiva de medidas para aprofundar o mercado único, devido à falta de consenso político e à resistência dos Estados-Membros em adotar as mudanças necessárias (COMISSÃO EUROPEIA, 2018).

Soma-se a isso o fato de a Ucrânia e a Rússia desempenharem um papel significativo na economia da União Europeia. A Ucrânia, por ser um país com recursos naturais importantes, como terras férteis e reservas de minerais, atua junto à União Europeia por meio do fornecimento de alimentos e matérias-primas. Como se não bastasse a importância econômica, o país ocupa posição de destaque no tabuleiro geopolítico europeu, devido a sua localização estratégica, favorável para o fluxo de recursos energéticos, especialmente gás natural e petróleo (DARMAYADI; MEGITS, 2023).

A Rússia, por sua vez, destaca-se por ser a potência energética da Eurásia. Moscou detém grandes reservas de hidrocarbonetos e se configurou como sendo um dos principais fornecedores de energia para a União Europeia, gerando um forte vínculo de interdependência energética. Essa condição trouxe desafios e vulnerabilidades, especialmente no que diz respeito à segurança energética e à diversificação de fontes de energia para a União Europeia (HENDLER, 2015).

Tanto a Rússia, como a Ucrânia, são países oriundos da extinta União Soviética. A Rússia busca preservar sua esfera de influência na região do Leste Europeu tendo em vista a importância geoestratégica da região e o simbolismo histórico que possui, na medida em que Moscou considera o território ucraniano de Kiev como sendo a origem da própria nacionalidade russa. Por outro lado, a Ucrânia é um país com uma identidade nacional dividida. Se de um lado, a porção na margem oeste do rio Dnieper sofre forte influência europeia, por outro lado, a porção leste do rio Dnieper detém uma identidade russa bastante acentuada (CARMONA, 2022).

3. A guerra entre Rússia e Ucrânia e os reflexos para Europa

A guerra entre Rússia e Ucrânia iniciou-se com a transposição das fronteiras ucranianas por tropas russas em 24 de fevereiro de 2022. As razões que estão por trás desse conflito são ligadas à sensibilidade geográfica desses atores, em particular da Rússia, preocupada com a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) em sua zona de influência (CARMONA, 2022).

A motivação do presidente russo Vladimir Putin nesse conflito é complexa e multifacetada. Para o presidente russo, a possibilidade da Ucrânia se afastar da Rússia é percebida como uma ameaça existencial à própria identidade russa. A retórica de Putin sobre a defesa da população de etnia eslava na Ucrânia alimenta sua justificativa para a intervenção militar. Com efeito, há que se destacar também que a guerra é uma demonstração de poder e também uma tentativa de restaurar a grandeza da Rússia no cenário internacional, que consolida o apoio de seu público interno e reforça sua posição de liderança internacional (KNOTT, 2023).

Como resposta à agressão russa, o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky lançou uma intensa campanha de mobilização nacional, buscando unir o povo ucraniano por meio de apelos emocionais à história e à resistência do povo ucraniano, voltados à defesa da soberania e da identidade nacional. O presidente ucraniano convocou as forças armadas e a população civil a se unirem em defesa da pátria, reforçando a narrativa de resistência e patriotismo. Essa mobilização também visava angariar apoio político internacional em meio à crise (KNOTT, 2023).

Segundo Jones (2022), na fase inicial do confronto, as forças terrestres, aéreas e navais russas invadiram o território ucraniano empregando mais de 142 mil militares em quatro frentes, conforme ilustra a figura a seguir:

Figura 2 - Disposição das forças russas e ucranianas no conflito

a guerra entre russia e ucrania e as consequencias para a uniao europeia fig2

Fonte: JONES, 2022.

Nesse sentido, a guerra entre a Rússia e a Ucrânia comprometeu significativamente a segurança da União Europeia de várias maneiras. O conflito armado gerou instabilidade política e humanitária, aumentando as tensões entre a Rússia e os países europeus, desafiando a ordem de segurança estabelecida após a Segunda Guerra Mundial. Essa situação colocou em risco a coesão e a segurança da União Europeia, exigindo respostas diplomáticas e estratégicas para mitigar os impactos negativos e promover a estabilidade na região (HAGER JR, 2016).

Em decorrência da invasão russa ao território ucraniano, a União Europeia tem adotado uma postura unificada em apoio à Ucrânia, demonstrando solidariedade e cooperação entre os Estados membros. Dessa forma, as ações da União Europeia incluem a imposição de sanções econômicas contra a Rússia, o que tem impactado os preços de energia e alimentos para a própria Europa, devido a rotas comerciais interrompidas (HOOGHE, 2024). No setor energético, a União Europeia adota como estratégia a busca de novos fornecedores de energia e a diversificação de suas fontes a fim de reduzir sua dependência junto a Rússia (DARMAYADI; MEGITS, 2023).

Há que se destacar também que, após o início da guerra entre Rússia e Ucrânia, líderes europeus se manifestaram quanto à necessidade de fortalecer a defesa dos países europeus. Segundo dados fornecidos pelo Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo, os gastos militares totais na Europa em 2023, sem considerar os gastos da Rússia e da Ucrânia, totalizaram US$ 394,91 bilhões, 13% mais elevado que em 2021, que foi de US$ 346,83 bilhões (SIPRI, 2024). Para Tian (2023), essa reação foi impulsionada pela necessidade de fortalecer as capacidades de defesa dos países da Europa, em consequência da percepção da ameaça russa.

A respeito da situação humanitária, segundo dados fornecidos pelo Portal de Dados Operacionais, o número de refugiados da Ucrânia registrados na Europa chegou à marca de 5,94 milhões de pessoas até maio de 2024, conforme ilustra a figura a seguir:

Figura 3 - Refugiados da Ucrânia na Europa

a guerra entre russia e ucrania e as consequencias para a uniao europeia fig3

Fonte: OPERATION DATA PORTAL, 2024.

Segundo Buzan et al (1998), essa situação resultará em pressões significativas sobre os recursos disponíveis, como moradia, empregos e serviços de saúde, bem como a possibilidade de aumentar o nacionalismo e a xenofobia na Europa. Além disso, a crise pode desencadear divergências políticas entre os Estados membros da União Europeia, que sofrem impactos distintos no que se refere à quantidade de refugiados que chegam em seus territórios.

4. Considerações Finais

A guerra entre Rússia e Ucrânia desencadeou uma série de mudanças na dinâmica da União Europeia, refletindo-se em múltiplos domínios políticos, econômicos e sociais. O conflito não apenas desafia a segurança regional, mas também testa a coesão e a capacidade de resposta do bloco diante de uma crise de magnitude sem precedentes.

A resposta da União Europeia ao conflito tem sido marcada por esforços unificados em apoio à Ucrânia, através de medidas como sanções econômicas contra a Rússia e a busca por novas fontes de energia para reduzir a dependência do bloco europeu do gás russo. Além disso, impulsionados pela percepção de ameaça e pela necessidade de fortalecer as capacidades de defesa dos países europeus, a crise desencadeou um aumento nos gastos militares na região.

A escalada do conflito coloca em evidência as fragilidades da União Europeia. Particularmente em relação à sua capacidade de lidar com a crise humanitária resultante, como o crescente número de refugiados ucranianos e as tensões políticas decorrentes da distribuição desigual desses refugiados entre os Estados membros, em um contexto marcado pela guerra que também ocorre no campo informacional.

Portanto, a guerra entre Rússia e Ucrânia representa um ponto de inflexão crucial para a União Europeia, desafiando sua coesão, sua segurança e sua capacidade de enfrentar ameaças externas e crises humanitárias. O conflito não apenas evidencia a necessidade de uma resposta unificada e coordenada por parte da União Europeia, mas também ressalta a importância de fortalecer suas instituições e sua posição geopolítica como ator global, em um cenário de crescente incerteza e grande instabilidade.

 

[1] Segundo Buzan e Waever (2003) buffer é um Estado ou um mini complexo dentro de um complexo de segurança regional que ocupa uma posição central em um forte padrão de securitização, cujo papel é separar poderes rivais.

[2] Interdependência estrutural, de acordo com Cervera (2023), está ligada à correlação de sensibilidade e vulnerabilidade existente entre determinados atores na política internacional. Sua compreensão possibilita a análise das dinâmicas da sociedade e a propensão de mudanças estruturais evolutivas ou disruptivas no atual cenário internacional.

 

 

 

 Referências Bibliográficas: 

  1. BILBAO-UBILLOS, Javier. The Social Dimension of the European Union: A Means to lock out Social Competition? Social Indicators Research, Vol. 165, n.º 1, p. 267-281, 2023.

  2. BRACK, Nathalie; STARTIN, Nicholas. Introduction: Euroscepticism, from the margins to the mainstream. International Political Science Review, Vol. 36, nº 3, p. 239-249, 2015.

  3. BUZAN, Barry; WAEVER, Ole; DE WILDE, Jaap. Security: A new framework for analysis. Colorado: Lynne Rienner Publishers, 1998.

  4. BUZAN, B; WAEVER, O. Regions and Powers: the structure of international security. New York: Cambridge University Press, 2003.

  5. CARMONA, Renaldo. A guerra na Ucrânia: uma análise geopolítica. CEBRI Revista, Vol. 1, nº 3, p. 88-111, 2022.

  6. CERVERA, Rafael Calduch. La estructura internacional del nuevo siglo: una revisión teórica. Anuario Mexicano de Asuntos Globales, Vol. 1, nº 1, p. 95-119, 2023.

  7. COMISSÃO EUROPEIA. Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social Europeu e ao Comité das Regiões. O mercado único num mundo em mutação - Um trunfo único que requer maior empenho político. Bruxelas: Comissão Europeia, 2018.

  8. COSTA, Olivier. A União Europeia e sua Política Externa: história, instituições e processo de tomada de decisão. Brasília: FUNAG, 2017.

  9. DARMAYADI, Andrias; MEGITS, Nikolay. The impact of the Russia-Ukraine war on the European Union economy. Journal of Eastern European and Central Asian Research (JEECAR), Vol. 10, nº 1, p. 46-55, 2023.

  10. DELANTY, Gerard. Introduction to the special issue on the Russo-Ukrainian War: A new European war? Considerations on the Russo-Ukrainian War. European Journal of Social Theory, Vol. 26, nº 4, p. 431-449, 2023.

  11. GALINARI, Tiago Nogueira. A União Europeia frente aos velhos e novos nacionalismos. Revista de Geopolítica, Vol. 9, nº 2, p. 92-105, 2018.

  12. HAGER JR, Robert P. History and Culture in Russia and Ukraine: How to Complicate a Crisis of European Security. Democracy and Security, Vol. 12, nº 3, p. 211-218, 2016.

  13. HENDLER, Bruno. A Segurança Energética entre Rússia e União Europeia: interdependência complexa e cenários possíveis. Conjuntura Austral, Vol. 6, nº 30, p. 12-33, 2015.

  14. HOOGHE, Liesbet et al. The Russian threat and the consolidation of the West: How populism and EU-skepticism shape parto support for Ukraine. European Union Politics, 2024. Disponível em: https://www.maxwell.syr.edu/research/article/the-russian-threat-and-the-co nsolidation-of-the-west. Acesso em: 10 de maio de 2024.

  15. JONES, Seth G. Russia's Ill-Fated Invasion of Ukraine: Military Lessons Learned. CSIS Briefs, Vol. 1, nº 1, p. 1-14, 2022.

  16. KNOTT, Eleanor. Existential nationalism: Russia's war against Ukraine. Nations and Nationalism, Vol. 29, nº 1, p. 45-52, 2023.

  17. OPERATION DATA PORTAL. Ukraine Refugee Situation. ODP, 2024. Disponível em: https: //data.unhcr.org/en/situations/ukraine. Acesso em: 10 de maio de 2024.

  18. SIPRI. SIPRI Military Expenditure Database. SIPRI, 2024. Disponível em: https://milex.sipri. org/sipri. Acesso em: 10 de maio de 2024.

  19. TIAN, Nan et al. Developments in Military Expenditure and the Effects of the War in Ukraine. Defence and Peace Economics, Vol. 34, nº 5, p. 547-562, 2023.

 

Rio de Janeiro - RJ, 17 de julho 2024.


Como citar este documento:
Mello, Thiago Bentes de; Regis, Débora Raquel Oliveira. A guerra entre Rússia e Ucrânia e as consequências para a União Europeia. Observatório Militar da Praia Vermelha. ECEME: Rio de Janeiro. 2024.  

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