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Por que desenvolver tecnologias sensíveis habilitadoras de capacidades militares é importante para países em desenvolvimento?

Publicado: Sexta, 04 de Julho de 2025, 01h01 | Acessos: 1061

 

Juraci Ferreira Galdino
General de Divisão Engenheiro Militar.
Comandante e Reitor do Instituto Militar de Engenharia.


O mercado de Defesa encontra-se em um dos períodos mais pujantes de sua história. Em 2024, os gastos militares mundiais atingiram a marca de US$ 2,718 trilhões, registrando crescimento em todos os anos da última década, com um aumento de 37% entre 2015 e 2024. Trata-se de um mercado com particularidades que o distinguem de outros setores da economia. Ao entender essas particularidades, descobrimos o quão importante é esse mercado não apenas para a Defesa, Segurança e Soberania do país, mas também para impulsionar o crescimento econômico e o desenvolvimento nacional em amplo espectro. Discutir o assunto com disposição para entender seus meandros, sem ideias preconcebidas e sem vieses ideológicos é essencial para rompermos o círculo vicioso dos grilhões da dependência tecnológica.

Figura 1: Características do mercado de Defesa - Círculo vicioso da Dependência Tecnológica

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Fonte: Autor.

Os materiais e sistemas centrais para o estabelecimento de capacidades militares importantes envolvem tecnologias complexas e de vanguarda. Geralmente, as atividades de P,D&I (Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação) visando obtê-las possuem alto risco tecnológico, estabelecendo desafios e criando óbices difíceis de serem imaginados previamente e que podem dificultar o atingimento de requisitos operacionais e técnicos vislumbrados para tais produtos, ou de não serem atingidos nos prazos e custos estimados na fase de planejamento da PD&I. Além disso, normalmente, a PD&I de sistemas complexos demora e demanda muitos recursos financeiros e pessoal altamente qualificado.

Quando tais sistemas, materiais ou plataformas complexas entram em operação, possuem ciclos de vida longos. A dificuldade de substituir uma plataforma como um carro de combate, por exemplo, não é simples. Essa substituição extrapola questões meramente econômicas. O preparo, o emprego, a logística de uma plataforma dessas depende, em alguma medida, do tipo de sistema ou produto de Defesa empregado. Portanto, além dos valores expressivos a serem despendidos para realizar uma grande aquisição de novas plataformas, em substituição às anteriores, há várias ações que devem ser desdobradas, em alguns casos, em todos os conjuntos de fatores determinantes da capacidade de uma força militar. No caso do Exército Brasileiro, esses fatores são sintetizados no acrônimo DOAMEPI: Doutrina, Organização (e/ou processos), Adestramento, Material, Educação, Pessoal e Infraestrutura.

Visando impulsionar a inovação, a produtividade, a competitividade, a globalização e, em alguns casos, a cooperação entre os países, no mercado convencional é incentivado a adoção de padrões abertos para orientar o desenvolvimento de produtos, de software e de serviços. Esses padrões são confeccionados contando com a participação de vasta gama de setores muitas vezes de diversos países e de organizações multilaterais. Após aprovados pelos órgãos competentes, eles podem ser adotados pelos países interessados. Cito os padrões de telefonia celular, os padrões de transmissão de sinais de TV, peças para o mercado automobilístico e a arquitetura de computadores, apenas para listar alguns poucos casos para ilustrar esse ponto de vista. Com essa padronização, empresas distintas, inclusive sediadas em países diferentes, podem desenvolver aparelhos de celular, receptores de TV, montar e fornecer computadores, peças intercambiáveis, desenvolver softwares, sem risco de não funcionarem em contextos díspares, locais diferentes e em conjunto com aparelhos ou peças de outros fabricantes.

Na área de Defesa, as grandes empresas adotam seus próprios padrões (padrões proprietários). Os grandes players mundiais não têm interesse em se reunirem para propor padrões abertos e, em alguns casos, essa abordagem não faz muito sentido. Portanto, após a aquisição dos sistemas, produtos e plataformas complexas de uma grande empesa, ela se torna não apenas a fornecedora dos produtos, mas também aquela que poderá realizar os serviços de assistência técnica mais sofisticados durante o longo ciclo de vida do produto ou sistema.

Esse aspecto, associado a tendência de substituição de componentes de hardware por componentes de softwares, vem aumentando progressivamente a dependência da Força Armada em relação à empresa fornecedora ao longo do ciclo de vida dos sistemas e materiais de emprego militar. Serviços de manutenção e atualização de softwares vêm se tornando cada vez mais frequentes e a engenharia reversa é ineficiente para desenvolver maneiras do país hospedeiro da Força Armada realizar tais serviços como outrora. No caso da eletrônica, a engenharia reversa é mais bem sucedida com circuitos discretos, aqueles construídos com componentes eletrônicos individuais, como resistores, capacitores, diodos e transistores, conectados por fios ou soldados em uma placa de circuito impresso (PCB, do termo em inglês Printed Circuit Board). A eletrônica embarcada é cada vez mais definida por circuitos integrados e por softwares, enquanto circuitos discretos estão se tornando obsoletos.

De um lado, esse conjunto de circunstâncias dificulta a realização de PD&I em países em desenvolvimento, particularmente nos quais a sociedade não percebe claramente a importância da área de Defesa, tampouco conhece as implicações da relativização ou fragilização da soberania. Afinal, o investimento é vultoso, os riscos tecnológicos são enormes e o retorno, mesmo quando bem-sucedido, não é percebido como sendo um importante resultado para a sociedade. É difícil convencer as pessoas a se preocuparem com algo que parece tão distante e abstrato.

Por outro lado, esse mesmo conjunto de características torna atrativa a prática de dumping ou outras ações que favoreçam a importação em detrimento de iniciativas autóctones. Haverá bastante tempo para que a empresa estrangeira consiga recuperar o “prejuízo” com a redução do valor de venda do produto ou sistema complexo. Essa abordagem torna-se ainda mais atrativa quando o país interessado em obter o produto tem iniciativas de PD&I em andamento com boas chances de sucesso, por se encontrarem em níveis de maturidade avançados. Nesses casos, os grandes players podem contar com o apoio do país sede, particularmente se ele for um gigante geopolítico, visando manter restrito o conjunto de países que dominam determinadas tecnologias. O dumping é uma prática desleal de concorrência e, por isso, pode ser alcançado por ações multilaterais de antidumping. Entretanto, os mecanismos multilaterais possuem efetividade limitada quando o assunto afeta a soberania dos países.

Outro aspecto importante que afeta a Defesa é o cerceamento tecnológico. Na realidade, as ações de cerceamento tecnológico podem ser direcionadas aos diversos setores da economia, mas é justamente na Defesa que essas ações são utilizadas com mais frequência e onde causam maiores dificuldades e, mesmo quando direcionadas para outros setores, a Defesa pode se encontrar no cerne da decisão ou da justificativa da realização da ação.

Essencialmente, as tecnologias, particularmente quando se encontram nos níveis de maturidade tecnológica mais baixos, possuem usos duais, no sentido de que podem ser empregadas para desenvolver sistemas, serviços e produtos de uso civil ou militar. A isso denominamos dualidade tecnológica.

A característica de dualidade é importante, pois esforços despendidos pelo setor civil podem ser aproveitados para desenvolver capacidades militares. Assim como avanços na área de Defesa podem contribuir para o surgimento de inovações destinadas ao público em geral. Essa característica também é interessante para incentivar a colaboração entre setores civis e militares no campo da C&T (Ciência e Tecnologia), bem como pode diversificar a fonte de recursos de fomento para realizar um determinado desenvolvimento científico-tecnológico.

Entretanto, utilizo-me aqui do termo dualidade como um princípio ideológico segundo o qual pode haver em um mesmo objeto a coexistência simultânea de coisas antagônicas. O Dicionário Online de Português exemplifica esse conceito sugerindo um objeto que pode ser interpretado como matéria e espírito; como corpo e alma; como bem e mal. Nesse sentido, cunhei a expressão “Dualidade da Dualidade Tecnológica” para sintetizar uma característica benéfica da dualidade tecnológica, geralmente utilizada por países em desenvolvimento, e outra maléfica para esses países, quando utilizada por países desenvolvidos.

Nos países em desenvolvimento, os recursos destinados à Defesa são geralmente modestos. Para realizar atividades de PD&I, esses países usam a característica da dualidade tecnológica para obter apoio e recursos de outras áreas do governo para desenvolver tecnologias de interesse da Defesa que também são importantes para outros setores da economia. No Brasil, por exemplo, parte considerável dos recursos para desenvolver tecnologias de radares, equipamentos de comunicações táticas, optrônicos, enxames de drones, tecnologias quânticas, sistemas de navegação inercial e componentes de segurança cibernética são provenientes do MCTI.

Os países desenvolvidos por vezes negam a transferência de uma tecnologia para um setor do mercado convencional, alegando que aquela tecnologia pode ser utilizada também para desenvolver capacidades militares. Sugerem, portanto, que o cerceamento visa preservar a soberania do país detentor da tecnologia e, por isso, devem controlar a difusão de um conhecimento sensível, que pode trazer insegurança e instabilidade mundial se não for utilizado com responsabilidade.

Ao não dominar tecnologias sensíveis de grande valor de mercado, mas que também são essenciais para desenvolver capacidades militares, cria-se uma armadilha poderosa de cerceamento tecnológico, , especialmente pelo fato de que as grandes potências podem utilizar esse discurso para praticamente todas as tecnologias de vanguarda de grande interesse de mercado convencional, mesmo sabendo que não existem evidências de que o país em desenvolvimento pretenda desenvolver capacidades militares a partir das tecnologias negadas. Dessa forma, as ações de cerceamento atingem sua finalidade precípua: manter a dinâmica de poder entre as nações, perpetuando a condição de baixa competitividade dos países em desenvolvimento, caracterizando-os como fornecedores de mercado para as grandes empresas internacionais, de recursos naturais e de mão de obra barata.

Em suma, desenvolver tecnologias sensíveis de interesse da Defesa não é apenas essencial para a Defesa, mas também representa um dos caminhos para um país romper um círculo vicioso de dependência tecnológica e criar condições para aumentar a competitividade em setores da economia de alto valor agregado. Ao não desenvolver tais tecnologias, cria-se uma vulnerabilidade que pode ser explorada de  forma eficiente pelos mecanismos de cerceamento tecnológico (dualidade da dualidade tecnológica), mantendo-se um círculo vicioso de dependência tecnológica.

 

Referências

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Rio de Janeiro - RJ, 04 de julho 2025.


Como citar este documento:

ESCOLA DE COMANDO E ESTADO-MAIOR DO EXÉRCITO (ECEME). OBSERVATÓRIO MILITAR DA PRAIA VERMELHA (OMPV). Por que desenvolver tecnologias sensíveis habilitadoras de capacidades militares é importante para países em desenvolvimento?. Rio de Janeiro, 2025. Disponível em: hhttps://ompv.eceme.eb.mil.br/ct-i-para-defesa-desenvolvimento-e-seguranca-nacional/desenvolvimento-cientifico-tecnologico/778-por-que-desenvolver-tecnologias-sensiveis-habilitadoras-de-capacidades-militares-e-importante-para-paises-em-desenvolvimento.

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