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XXIX Ciclo de Estudos Estratégicos - Os Desafios do Sistema Internacional Contemporâneo para a Defesa

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Esperanças perdidas

Publicado: Quarta, 24 de Julho de 2024, 01h01 | Última atualização em Quarta, 24 de Julho de 2024, 10h43 | Acessos: 352

 

Esley Rodrigues de Jesus Teixeira
 Capitão de Corveta da Marinha do Brasil e doutorando em Ciências Militares da ECEME

Quando a humanidade deixou de nutrir o medo da aniquilação global com o fim da guerra fria, a realidade cruel dos conflitos passou a ficar em segundo plano e as Forças Armadas, não obstante em alguns casos continuarem a projetar a violência inerente à guerra, assumiram papéis benignos. Ilusões difundidas por diversos meios alimentaram esta realidade incongruente de um mundo sem conflitos (ou com conflitos em lugares que não valeriam manchetes de jornais), em que a violência da guerra convencional seria paulatinamente codificada pelas benevolentes missões de paz, humanitárias e de emprego limitado da força.

As ações de defesa passaram a ser confundidas com ações de segurança, e, pouco a pouco, o poder de aniquilação passou a dar lugar ao poder de benevolência. Politicamente sedutor, apesar dos documentos de alto nível que afiançam a preponderância da guerra na formação e adestramento das forças, é notório que o papel subsidiário ocupou o papel principal.

As previsões, como observado recentemente, não podiam estar mais longe da realidade, e a guerra voltaria a ser a política engendrada por outros meios.

Em menos de dois anos, dois conflitos ressuscitariam o velho general prussiano nos manuais militares. A invasão russa à Ucrânia e a invasão israelense à Gaza detonariam nova onda de compreensão do fenômeno da guerra como o antigo paradigma clausewitziano. Em meses, os acontecimentos no leste europeu e no oriente próximo, captados pelas câmeras e difundidos por streaming trouxeram a guerra para nossos lares. Entre soldados mortos em combates urbanos e drones atacando carros de combate, a realidade cruenta e facínora da guerra retornou à psique da humanidade.

Ao invadir a Ucrânia, a Rússia seguiu os protocolos prussianos à risca: desde pelo menos 2014 que os servo-cossacos tentam cooptar seguidos governos tártaros com facilidades logísticas, isenções energéticas e construção de infraestrutura. Quando todos esses movimentos políticos caíram por terra, pôs-se em movimento a antiga máquina de guerra russa, cuja mola propulsora passou a nortear o objetivo político da guerra: a manutenção de um espaço de contenção na estepe, controlado unicamente pelos próprios russos. Um modelo didático e bastante comum, que remonta diversos outros conflitos na história brasileira, como, por exemplo, a Guerra da Cisplatina em 1831 e a guerra contra Aguirre em 1864.

A batalha de Israel contra o Hamas também não deflorou novas realidades. Relembra, dadas as devidas proporções, as lutas dos romanos contra as diversas tribos que exigiam sua libertação do jugo dos exércitos itálicos: um Estado contra um grupo. Exemplo mais recente: uma organização criminosa/terrorista como responsável pelo estopim da Primeira Grande Guerra. Não há, portanto, nenhuma novidade em uma guerra entre um ente estatal, e outro que se clama representante de um povo ou uma nação.

Ambos os eventos demonstram como a raison d’etre das Forças Armadas continua sendo a de garantir a soberania, de exercer a persuasão, e de infligir, quando necessário, a destruição, projetando a violência quando e onde se fizer necessário. Mesmo um país que não se pretende ser global, que se vê apenas como mantenedor de suas fronteiras, precisa garantir que seu Exército consiga projetar fogo e destruição contínua, sendo a principal preocupação do poder político de qualquer nação inserida em algum contexto de relações minimamente bilaterais.

Essas considerações políticas levam a compreender o porquê de manter estruturas de defesa dispendiosas no Brasil, como os navios e aeronaves da Marinha de Tamandaré, ou a recente aquisição de mais de 400 carros de combate pelo Exército de Caxias. Encarando os fatos, de maneira realista, o Brasil jamais pretendeu, nem nunca precisou, aumentar suas fronteiras, a ponto de resolver por se aventurar em uma empresa de imperialismo e expansionismo. Gestado na época dos “descobrimentos” europeus do século XIV e XV, cresceu e tornou-se moço durante os imperialismos do fim do XIX, e, em todos esses quebra-molas históricos em que tropeçaram as grandes nações d’outrora e de hoje, manteve-se incólume o Brasil de manchar sua nobre história com peripécias coloniais.

Diferente do ocidente de Huntington, o Brasil é um país pacífico, e assim se manterá por longo tempo, assim espera-se. Não criou, portanto, suas Forças Armadas sem que visasse, unicamente, à sua defesa territorial (exemplificada na unificação do Brasil em território indivisível), e à manutenção de sua soberania, seja no combate ao tráfico negreiro, seja na defesa de suas jurisdições marítimas e fluviais.

O Brasil já passou por diversas invasões desde a colônia. Os holandeses foram até Salvador, e depois Fortaleza, no século XVII. Os franceses tentaram a sorte bem cedo também, e chegaram a capturar o Rio de Janeiro em 1711, apenas saindo após o pagamento de resgate pelos portugueses. Se alguém acha que essas invasões se configuram em longínquo passado, basta lembrar da fragata norte-americana nos “levantamentos hidrográficos” no rio Amazonas durante a crise acreana, ou da fragata francesa durante as crises pesqueiras em meados do século XX, que passaram para a história como Guerra da Lagosta. O afundamento de navios pelos segundo e terceiro impérios alemães durante o século XX também relembra o imperativo de se possuir tropa capaz de aniquilar e persuadir ataques de forças inimigas. E esta capacidade precisa ser crível, não apenas pelas mídias e press releases, mas, sobretudo, pelos atentos olhos dos adidos militares cá creditados.

Ao observar a história da Marinha russa, criada por Pedro Romanov para combater os tártaros de Azov, ou a Marinha soviética, que se expandiu para garantir a defesa do território continental, não se notará condições distintas. Poderes continentais, longe de ansiarem por mercados consumidores e matérias primas alhures (ou, como desde pelo menos Rudyard Kipling, expandir a civilização do homem branco), já possuem largas reservas e problemas unificadores demais para se lançar em empresas colonialistas. Nem por isso o poder naval esteve longe de ser essencial na defesa e na dissuasão. Perder este ethos é incorrer em um erro grave, que a história não perdoa, tampouco perdoará. A cultura de poderes continentais, defensiva per se, exige uma Marinha e Exército aptos a defenderem o povo e seu território.

Os investimentos em defesa deveriam, portanto, ser reconhecidos não apenas como um seguro contra incursões em nosso território de grupos que respeitam mais o amor ao dinheiro que a soberania de Estados, como outrora o caso dos navios de guerra da França, Holanda, Reino Unido e, hoje em dia, os pesqueiros da China.

O perigo da aniquilação total continua a nos rondar, hibernando calmamente desde aquele 31 de dezembro de 1991, quando a bandeira vermelha foi trocada pela tricolor no Kremlin e, teoricamente, as bombas atômicas teriam sido desativadas. Uma política de Forças Armadas adestradas para operações de paz, ações humanitárias, apoio à defesa civil...mas sem o imperativo preparo para a guerra, influencia na forma como o mundo vê o Brasil: um país forte e soberano, ou uma jazida mineral a ser explorada a qualquer momento?

Já é hora de a sociedade brasileira deixar para trás as esperanças perdidas na névoa de tantas guerras que se espraiaram neste longo breve século XXI. Cabe, entretanto, ao poder político, o ônus de inserir em seus documentos de alto nível essas determinações, tal qual Clausewitz nos ensina desde as guerras napoleônicas.

 

 

Rio de Janeiro - RJ, 24 de julho 2024.


Como citar este documento:
Teixeira, Esley Rodrigues de Jesus. Esperanças perdidas. Observatório Militar da Praia Vermelha. ECEME: Rio de Janeiro. 2024.  

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