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XXIX Ciclo de Estudos Estratégicos - Os Desafios do Sistema Internacional Contemporâneo para a Defesa

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Uma década de MINUSMA: análise panorâmica da Missão

Publicado: Quinta, 04 de Julho de 2024, 01h01 | Última atualização em Quinta, 04 de Julho de 2024, 12h56 | Acessos: 150

 

Nicole Ribeiro Neves
 Aluna do curso de Mestrado da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército

Introdução

Desde a sua fundação em 1945, a Organização das Nações Unidas (ONU) tem se dedicado a promover a cooperação internacional e evitar a escalada de conflitos graves, inspirados pelas memórias das grandes guerras. Nesse intuito, as operações de paz onusianas iniciadas em 1948 passaram a representar uma das principais ferramentas de promoção e manutenção da paz e segurança global, sendo implementadas em áreas sensíveis em conflitos armados e disputas político-territoriais. Um exemplo significativo dessas operações é a Missão Multidimensional das Nações Unidas para Estabilização do Mali (MINUSMA).

O Mali, situado na região do Sahel na África Ocidental, tem uma história complexa. O país é profundamente marcado pela colonização francesa, sendo influenciado por atores ocidentais na área política, na área econômica e na área securitária. Mesmo após sua independência, vestígios de colonialidade ainda podem ser vistos no país, que tem enfrentado problemas de governança, subdesenvolvimento, tensões étnicas e regionais. O ápice dessas problemáticas se deu em meados de 2012, quando grupos de libertação nacional e separatistas, unindo-se à grupos extremistas e terroristas, reivindicaram a independência de territórios situados ao norte do país, provocando a maior crise até então visualizada em território malinês.

Em resposta a esta conjuntura, o Conselho de Segurança das Nações Unidas publicou a resolução nº 2100, estabelecendo a MINUSMA, missão que tinha como objetivo central apoiar o processo político e auxiliar na estabilização do país. Entre as ações descritas no mandato, havia a contenção da violência, a proteção de civis, o monitoramento dos direitos humanos e a garantia das condições de assistência humanitária adequadas (ONU, 2023a). Tudo isso para que o país ficasse preparado para a realização de eleições livres, inclusivas e pacíficas.

Contexto Histórico da Missão e o Mandato Inicial

Antes da MINUSMA, o Mali recebeu a intervenção de outra missão internacional no país. Trata-se da Missão de Apoio Internacional liderada pela África no Mali (AFISMA), que foi desdobrada a pedido do governo malinês. O mandato da AFISMA previa a recuperação de regiões controladas pelos rebeldes no norte do país e a restauração da unidade territorial. A AFISMA foi a primeira missão militarmente armada autorizada pelo Conselho de Segurança da ONU, sob o capítulo VII, a atuar no país. A missão destacou-se pela sua atuação direta contra grupos extremistas, terroristas e grupos armados como a Al-Qaeda no Magreb Islâmico (AQIM), o Movimento para a Unidade e a Jihad no África Ocidental (MOJWA) e Ansar Eddine (CHARBONNEAU, 2016).

A conjuntura na qual a AFISMA foi desdobrada era de grave crise no campo político, no setor da segurança, nas áreas humanitárias e também na economia. Originária de longa data, tais problemáticas intensificaram-se em meados de 2012, quando grupos armados islâmicos, em conjunto com o movimento liderado pelos Tuaregues, o Mouvement national pour la libération de l'Azawad (MNLA), iniciaram ataques contra as forças oficiais do país. Como resultado, ocorreu um golpe de estado militar, provocando o colapso do Estado na região norte e a proclamação da independência de Azawad[1].

Os chefes de Estado e de Governo da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) nomearam um primeiro-ministro interino para mediar a crise, que solicitou assistência das Nações Unidas para lidar com a transição política no país. Dessa forma, a AFISMA foi autorizada a contribuir com as autoridades malinesas na recuperação do território situado ao norte do país e que estava sob controle dos grupos terroristas, realizando atividades de estabilização política e auxiliando na proteção da população (ONU, 2023a).

Diante da contínua deterioração da conjuntura e do avanço de grupos terroristas como Ansar Dine, apoiados pela Al-Qaeda do Magrebe Islâmico, a França foi convidada a participar da proteção do país, instaurando a operação Serval em apoio às forças de segurança e defesa do Mali. Vale destacar que a pronta resposta francesa reflete um histórico colonial e de interesses estratégicos na região, levando à dissuasão dos grupos terroristas da região para garantir a estabilidade do país. Nesta perspectiva, “[...] a França se torna não tanto um fornecedor de segurança e estabilidade, mas um fator de instabilidade, medo, subdesenvolvimento e dependência” (CHARBONNEAU, 2016, p. 50, tradução própria). Após alcançar significativos sucessos na estabilização das partes mais afetadas do país, o presidente inteirinho do Mali solicitou que a AFISMA se transformasse em uma operação de estabilização e manutenção das Nações Unidas. E assim, a MINUSMA foi autorizada e assumiu o mandato de estabilização do país (KARLSRUD, 2015).

Desafios enfrentados pela MINUSMA e o Pedido de Retirada

Desde o início da missão de estabilização, os peacekeepers da MINUSMA e as demais forças de paz atuantes no Mali, como as forças de segurança nacionais e internacionais das Nações Unidas, incluindo a força de defesa malinesa, o G5 do Sahel, as tropas francesas e a Missão de Treinamento da União Europeia no Mali, foram alvos diretos de ataques dos grupos extremistas presentes na região. Em diversas resoluções e relatórios do Conselho de Segurança da ONU é possível identificar relatos de contínua preocupação com a deterioração política, securitária e humanitária no Mali, bem como a persistência dos ataques terroristas, especialmente na parte norte e central do país, escalonando a extrema violência, afetando os direitos humanos.

Dentre os principais desafios enfrentados pela MINUSMA, estão a proteção de civis e a promoção dos direitos humanos em um ambiente extremamente volátil. A missão procurou apoiar o governo do Mali, facilitando a implementação de um acordo de paz e a reconciliação. O acordo ficou conhecido como acordo de Argel, tendo sido assinado em 2015 entre o governo malinês e as coalizões de grupos armados (ONU, 2024). No entanto, os esforços empenhados pela MINUSMA não foram suficientes para garantir a estabilidade no país, nem mesmo para reduzir significativamente às ameaças à população civil.

Em junho de 2023, foi solicitada a retirada imediata da MINUSMA pelo governo de transição do Mali, alegando que a missão havia se tornado ineficaz e que também era parte do problema. Em resposta, o Conselho de Segurança da ONU emitiu a Resolução nº  2690 (2023), que previu a retirada completa das forças multidimensionais até 31 de dezembro de 2023 (ONU, 2023b). A decisão foi baseada em uma avaliação mista: se por um lado, havia o reconhecimento dos avanços de segurança e dos progressos políticos estabelecidos mesmo longe do esperado; por outro lado, os objetivos iniciais da missão ainda estavam longe de serem plenamente cumpridos, gerando enorme insatisfação no governo de Mali, que a expressou por meio de um memorando lançado como resposta ao relatório trimestral do Secretário-Geral das Nações Unidas sobre a situação do país. No documento, foram feitas críticas à MINUSMA e às investigações realizadas sobre a má conduta das forças de segurança do Mali. Contudo, a insatisfação apresentada não sugeria um resultado como este.

Considerações Finais

Embora o governo de transição do Mali tenha solicitado a retirada da MINUSMA até o final do ano passado, a Resolução nº 2690 (2023), do Conselho de Segurança da ONU, destacou que a situação do país permanece sendo uma ameaça para paz e segurança internacional. Para garantir o cumprimento do compromisso assumido pelas Nações Unidas com a soberania dos países e o desdobramento de missões apenas com consentimento das partes, após a solicitação do país, foi determinada a retirada da missão (ONU, 2023b).

Espera-se que o Mali continue a proteger os civis em seu território, uma responsabilidade primária do governo. Portanto, as forças nacionais devem cumprir esse papel de forma eficaz e o governo de transição deve manter seu comprometimento com a realização de eleições presidenciais justas e livres no país.

O Conselho de Segurança das Nações Unidas, por meio da Resolução nº 2690 (2023), decidiu encerrar o mandato da MINUSMA. Contudo, a MINUSMA está autorizada a responder às ameaças iminentes de violência contra civis e a prestar assistência humanitária até 30 de setembro de 2024. A citada resolução também contém diversas recomendações e esclarecimentos que ressaltam os pontos críticos que assolam o Mali e intensificam a instabilidade do país, reafirmando que a situação continua a representar uma ameaça à paz e à segurança internacionais (ONU, 2023b).

Dessa forma, entende-se que a retirada da MINUSMA marca o fim de uma década de esforços internacionais para estabilizar o Mali. Embora a missão tenha obtido alguns sucessos na redução da violência e na promoção de processos políticos, muitos dos desafios subjacentes não foram superados e ainda continuam a existir no país.

A transição para a segurança nacional de Mali e a implementação de um governo democrático inclusivo serão cruciais para o futuro do país. Desta forma, a comunidade internacional deve continuar monitorando a situação no Mali e apoiar o governo de transição em seus esforços para manter a paz e a segurança, sobretudo porque a retirada da MINUSMA pode abrir caminho para novas dinâmicas, que podem ser tanto promissoras quanto desafiadoras.

 

[1] Azawad é uma área do deserto do Saara e da zona do Sahel

 

 

 

 Referências Bibliográficas: 

  1. CHARBONNEAU, Bruno. France and the New Imperialism: Security Policy in Sub-Saharan Africa. Londres: Routledge, 2016.

  2. KARLSRUD, J. The UN at war: examining the consequences of peace enforcement mandates for the UN peacekeeping operations in the CAR, the DRC and Mali. Third World Quarterly, Vol. 36, nº 1, p. 40-54, 2015.

  3. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Resolução nº 2100 (2023), do Conselho de Segurança da ONU. ONU, 2023a. Disponível em: https://bit.ly/3RlrtLD. Acesso em: 29 de maio de 2024.

  4. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Resolução nº 2690 (2023), do Conselho de Segurança da ONU. ONU, 2023b. Disponível em: https://www.securitycouncilreport.org/atf/cf/ %7B65BFCF9B-6D27-4E9C-8CD3-CF6E4FF96FF9%7D/s_res_2690.pdf. Acesso em: 29 de maio de 2024.

  5. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. United Nations Multidimensional Integrated Stabilization Mission in Mall. ONU, 2024. Disponível em: https://minusma.unmissions.org/en. Acesso em: 3 de maio de 2024.

 

Rio de Janeiro - RJ, 04 de julho 2024.


Como citar este documento:
Neves, Nicole Ribeiro. Uma década de MINUSMA: análise panorâmica da Missão. Observatório Militar da Praia Vermelha. ECEME: Rio de Janeiro. 2024.  

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