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Pedras, foguetes e posts - o conflito entre Israel e Hamas sob a ótica da guerra irregular na era da informação

Publicado: Sexta, 20 de Outubro de 2023, 01h01 | Última atualização em Quinta, 19 de Outubro de 2023, 22h10 | Acessos: 1213

 

Frederico Chaves Salóes do Amor
Major do Exército Brasileiro. Atualmente é Instrutor da ECEME.

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1. Introdução

A história da tensão entre judeus e palestinos é tão antiga quanto a existência da guerra irregular[1]. Nos dias atuais, de um lado se encontra o Estado de Israel e de outro lado, há uma miríade de atores não estatais contrários aos israelenses. Dentre tantas definições sobre guerra irregular, talvez a do general alemão Friedrich August Freiherr von der Heydte, que se traduz em uma forma arcaica de condução da guerra, contextualize bem o hodierno conflito entre Israel e o grupo Hamas, sobretudo pelos fatos que marcaram o antagonismo entre os dois atores (HEYDTE, 1990).

O fato é que, ainda que a guerra irregular possa ser considerada uma das formas mais antigas de se combater, a capacidade regenerativa e adaptativa do ator irregular se tornou um fator determinante na inovação das táticas, técnicas e procedimentos. Da mesma forma, a era da informação catalisou a capacidade de atuação dos atores, potencializando, de maneira integrada, ideias e opinião pública sobre fuzis e soldados.

Os aspectos que envolvem o emprego de um Exército regular numa guerra eminentemente irregular na era da informação, não tornam as ações perpetradas pela Força regular disfuncionais ou fadadas aos efeitos cinéticos de pouca expressão. Muito pelo contrário, o portfólio de ameaças ao Estado moderno, exige que cada vez mais seus soldados sejam capazes de atuar, de maneira convergente, na defesa da pátria contra qualquer ator que venha a perpetrar ataque ou tentar debilitar a sua soberania, não se restringindo aos atores estatais e suas forças armadas. Há que se levar em consideração as três dimensões do campo de batalha: dimensão física, humana e informacional, bem como os diversos domínios existentes: terrestre, naval, aéreo, espacial, cibernético e eletromagnético.

Dessa forma, o presente artigo procura analisar o conflito entre Israel e o Hamas sob a ótica da guerra irregular na era da informação. Acredita-se que assim procedendo, será possível lançar luz em alguns aspectos importantes que envolvem os dois atores nesse conflito.

2. Breve histórico do conflito entre Israel e o Hamas

A origem do conflito entre o Estado de Israel e o grupo Hamas antecede a própria criação dos dois atores que protagonizam os embates na região da faixa de Gaza. Revisitando a história, nota-se que nos primórdios civilizacionais da humanidade, os Hebreus e Filisteus ocuparam a região oeste da bacia do rio Jordão por volta de 1400 a.C. As afinidades e animosidades destes povos são relatadas no Gênesis, descrito no primeiro livro da bíblia católica, tendo como protagonistas Abraão, Sara, Hagar e Abimeleque (YOUSSEF, 2010).

Saltando na linha do tempo, quase 3000 anos depois, mais precisamente em 1916, franceses e britânicos firmaram o acordo de Sykes-Picot[2], seguido posteriormente pela declaração de Balfour, em 1917. Esses dois eventos balizaram as questões econômicas e psicossociais na região do Oriente Médio. O primeiro tratava da remodelagem das fronteiras no Oriente Médio após a derrota do Império Turco-Otomano e o segundo propunha o estabelecimento de um lar para os judeus na região da Palestina. É importante frisar que o petróleo ali existente, questões estratégicas importantes e outros interesses econômicos também balizaram tais acordos (FELDBERG, 2008).

O período que se seguiu após esses acordos, particularmente o compreendido entre a década de 1910 e a criação do Estado de Israel em 1948, ficou marcado por uma série de conflitos de baixa intensidade entre atores não estatais. As tribos árabes e os grupos que formavam a autodefesa dos assentamentos judaicos combatiam entre si por questões oriundas das decisões políticas estabelecidas pelas grandes potências vitoriosas da 1ª e 2ª Guerra Mundial. Quando os assentamentos judaicos se desenvolveram e se tornaram um Estado com uma Força Armada própria, só restou aos árabes mulçumanos que habitavam a Palestina, a opção pela luta armada de maneira irregular. Neste período, a ameaça árabe de caráter irregular tinha uma importância estratégica. Com a criação do Estado de Israel, o ator irregular perdeu importância (SHAMIR; INBAR, 2016).

As décadas seguintes impuseram aos israelenses testes de sobrevivência do seu Estado recém-criado. As operações de combate em larga escala ocuparam as estratégias militares diante das múltiplas ameaças oriundas dos países árabes, resultando em guerras estatais como a guerra dos Seis Dias (1967), a guerra do Yon Kippur (1973) e a guerra do Líbano (1982). Nesses embates, Israel pôde mostrar ao mundo o robusto poderio bélico convencional contra aqueles que rejeitavam sua existência. Nesse mesmo período, como se não bastasse as guerras convencionais contra os israelenses, grupos irregulares também perpetravam ataques terroristas contra os israelenses e instalações judaicas pelo mundo. Episódios como o sequestro e posterior assassinato dos atletas israelenses nas olimpíadas de Monique (1972) e o sequestro de passageiros judeus em Entebbe (1976), davam conta de que a ameaça irregular se desenvolvia com certa liberdade de ação, uma vez que o foco das Forças de Defesa de Israel estava concentrado no emprego do seu poderio bélico convencional contra ameaças estatais.

Foi nesse ínterim que surgiram organizações como Fatah, Irmandade Mulçumana e o Hamas. Incialmente, essas organizações tinham como objetivo apoiar o povo palestino com ações que deveriam ser executadas por um Estado em setores como: saúde, educação e assistência social. Entretanto, para algumas lideranças desses grupos citados anteriormente, o Estado de Israel era a principal causa para a não existência de um Estado Palestino. E assim, essas organizações passaram a disputar poder entre si, da mesma forma que começaram a praticar a desobediência civil, realizando pequenas ações de distúrbio contra as Força de Defesa de Israel, tudo com o objetivo de despertar, unificar e mobilizar o povo palestino (CAMARGO, 2006).

O Hamas, em particular, desde sua criação em 1986, se tornou uma organização com uma vasta gama de atividades, que variavam desde ações filantrópicas para o povo palestino, especialmente na região da faixa de Gaza, até ataques terroristas (SHAMIR; INBAR, 2016). As ações de força do Hamas iniciaram em 1987, mais precisamente na 1ª Intifada, ocasião em que o grupo empregou crianças e jovens para atirar pedras em blindados israelenses. Essas ações procuravam obter o apoio da opinião pública no embate travado contra um oponente muito superior, no caso Israel. A 2ª Intifada, iniciada em 2000, registrou a adoção de ataques terroristas suicidas, forçando a retirada das Forças de Defesa de Israel na faixa de Gaza.

No século XX, com o crescimento da globalização e a popularização da internet,  essas organizações extremistas ficaram hiper conectadas, condição que propiciou ao Hamas a possibilidade de adquirir no mercado paralelo diversos tipos de armamento, em particular mísseis e foguetes, os quais passaram a ser lançados pelo grupo a partir de 2009 contra determinados alvos no território de Israel.

Em que pese os episódios ocorridos no dia 07 de outubro de 2023 não serem algo novo no histórico recente do conflito envolvendo Hamas e Israel, tais atentados estão sendo considerados pelos judeus como o seu “11 de setembro”, haja vista a complexidade dos ataques, bem como o número de judeus mortos - o maior número de judeus mortos desde o holocausto, segundo as agências de imprensa.

3. A guerra irregular na era da informação

Segundo Royal (2012), a informação, comprovada ou deformada, sempre foi uma arma extremamente eficaz. Em 1998, John Arquilla já chamava a atenção para um fenômeno denominado “social netwar”, onde aponta que a revolução da informação está favorecendo e fortalecendo as formas de organização em redes, pelo que tem gerado desafios mais complexos para as estruturas tradicionais, que são em sua grande maioria, verticais e hierarquizadas.

O crescimento das networks, especialmente as networks abertas, onde cada um de nós está diretamente conectado a todos os demais, significa que o poder está migrando para as mãos de atores não estatais, que são capazes de se adaptar dentro de redes multi organizacionais. Não pelo acaso, nota-se cada vez mais, que os conflitos têm sido travados em ambientes estruturados pelas networks, impondo em mais um desafio a ser superado pelas estruturas tradicionais.

Desde a ascensão da Al-Qaeda e, posteriormente, do Estado Islâmico, acadêmicos, especialistas e a imprensa em geral, se dedicam cada vez mais à análise dos grupos que praticam a violência extremista para conseguir seus objetivos. Em linhas geris, pode-se dizer que esses grupos possuem uma estrutura sistêmica, adaptativa e regenerativa. Isso lhes permite terem um alcance virtual e global. David Kilcullen (2007) aponta que o uso da informação na guerra irregular pelo ator não estatal é o aspecto mais importante atualmente, na medida em que a dimensão física tem se mostrado ser apenas uma ferramenta para alcançar um resultado de propaganda.

Do mesmo modo e de maneira simultânea, grandes corporações de mídia acabam por disseminarem o medo para a população em geral, na medida em que veiculam matérias voltadas para atrair a atenção do público, e não matérias voltadas para informar segundo critérios pré-estabelecidos de análise e metodologia. Se o medo se espalha nos lares daqueles que repudiam os ataques, a admiração ocupa as mentes e os corações daqueles que não tiveram suas expectativas correspondidas, que sofreram frustrações psicológicas e etc. Para este público em específico, terroristas e lideranças avessas aos valores democráticos e direitos humanos, passam a se tornar novas referências de conduta, sobretudo entre as massas de jovens que se sentem obliteradas pelos sistemas socioeconômicos estagnados.

Levando-se em consideração que um ator irregular não pode confrontar com um Estado num campo de batalha tradicional, é necessário que o ator irregular adote uma abordagem alternativa para a consecução de seus objetivos. Se no século XX, o desgaste das forças militares, por si, poderia comprometer a opinião pública, como ocorreu na guerra do Vietnã (1973). Na atualidade, pela onipresença dos meios de mídia e pelo fenômeno da hiper conectividade, a desestabilização, a fragilização psicológica, a disseminação da angústia e do medo se tornam ferramentas mais eficazes. Isso, de alguma forma, induz aos planejadores a necessidade de empregar um pensamento obtuso para enfrentar um ator assimétrico que possui menos meios e menos poder de combate, mas conta com uma rede de informações capaz de moldar a narrativa da imprensa e, por consequência, da sociedade, a seu favor (CHALMIN, 2013).

Se no passado, as pedras atiradas pelas crianças e pelos jovens palestinos contra os blindados israelenses na faixa de Gaza, uma versão remodelada do duelo de um Davi, agora palestino, contra um gigante Golias, agora Judeu, o emprego dos ataques terroristas suicidadas disseminou o medo por todo e qualquer lugar do Estado de Israel quando da movimentação das intenções do Hamas.

Atualmente, não obstante a sincronização de ações como lançamento de foguetes com atiradores ativos surgindo do céu, há também, de maneira sistemática, a disseminação de vídeos com mortes. As cenas de horror que são postadas e compartilhadas nas mídias sociais, alimentando um monstro na pisque humana, atende a dois objetivos: o primeiro é disseminar o medo e paralisar o gigante Golias (nesse caso o Estado de Israel), o segundo é fazer que Golias use sua força de maneira desproporcional, não restando outra opção a seus apoiadores, que não a de vetar e impedir a continuidade de suas ações, postura que, provavelmente, pode levar a uma derrota.

4. Considerações Finais

Diante do crescimento das ameaças proveniente de atores não estatais, especial atenção deve ser dedicada às mudanças que podem impactar os fundamentos da sociedade e sua base cultural. A resiliência passou a ser um atributo que deve ser desenvolvido por aqueles que sofrem abordagens indiretas que visam desgastar e corroer sua coesão.

A preparação das Forças Armadas em geral, seus projetos estratégicos e tudo aquilo que envolve sua cultura organizacional, não deve se resumir a dimensão física, mais precisamente contra as ameaças estatais que tentem ultrajar o território nacional. No século XXI, diante da crescente convergência e hibridização de atores, gerando um cenário marcado pelo nexo crime-terror, e este atuando, de maneira consciente ou não, como proxies de outros Estados, é necessário que os líderes (militares e civis) realizem uma compreensão holística que seja capaz de compreender diferentes visões de mundo, que construa um ambiente moldável e que proteja a sociedade dos ataques perpetrados por um ator irregular, quer seja por meios de ações no campo físico, quer seja por meio de ações no domínio informacional, tornando o Estado mais coeso. Do mesmo modo, não deve ser abandonado o perfil combativo, porém este deve ser intensamente balizado, pela legitimidade, pelo equilíbrio, por meio do entendimento dos anseios da sociedade e das intenções dos líderes civis e militares

 

[1] Guerra irregular é todo conflito armado conduzido por uma força que não dispõe de organização militar formal e, sobretudo, de legitimidade jurídica e institucional. É a guerra travada por uma força não regular. São consideradas formas de guerra irregular nesse contexto: a guerra de guerrilha; a subversão; a sabotagem; o terrorismo; e a fuga e evasão (BRASIL, 2017).

[2] O Sykes-Picot agreement foi negociado secretamente, durante a 1ª Guerra Mundial (maio de 1916) pelos diplomatas François Georges-Picot, da França, e Mark Sykes, da Grã-Bretanha, com a concordância da Rússia, ainda sob o reinado do czar Nicolau II Romanov (1894-1917). A linha de fronteira, desenhada pelos diplomatas Sykes e Picot, corria do Acre (Akko), na baía de Haifa, na costa do Mediterrâneo, até Kirkuk, na proximidade da Pérsia, e os Estados, que então nasceram, configuraram um mosaico de etnias, culturas, religiões, seitas e subseitas, clãs e tribos, grande maioria nômades, que viviam nos desertos da Arábia.

 

 

 Referências Bibliográficas: 

  1. CAMARGO, Claudio. Guerras Árabes-Israelenses. In: MAGNOLI, Demétrio. História das Guerras, Cap. 15, p. 425-452, 2013. São Paulo: Contexto, 2013

  2. FELDBERG, Samuel. Acordo Sykes-Picot (1916). In: MAGNOLI, Demétrio. História da Paz, p. 183-209, 2008. São Paulo: Contexto, 2008.

  3. HEYDTE, Friedrich August Freiherr von der. A Guerra Irregular Moderna. Rio de Janeiro: BIBLIEX, 1990

  4. KILCULLEN, David J. Out of the Mountains: The Coming Age of the Urban Guerrilla. Londres: Oxford, 2015.

  5. YOUSSEF, Mosab Hassan. O filho do Hamas: Um relato impressionante sobre terrorismo, traição, intrigas políticas e escolhas impensáveis. Rio de Janeiro: Sextante, 2023.

  6. INBAR, Efraim; SHAMIR, Eitan. Israels Counterinsurgency Experience. In: HEUSER, Beatrice; SHAMIR, Eitan. Insurgencies and Counterinsurgencies: National Styles and Strategic Cultures, Cap. 8, p. 168-190, 2016. Cambridge: Cambridge University Press, 2016.

  7. BRASIL. Exército Brasileiro. Estado-Maior do Exército. EB70-MF-10.212: Operações Especiais. Brasília: Estado-Maior do Exército, 2017.

  8. ROYAL, Benoît. A Guerra pela Opinião Pública. Rio de Janeiro: BIBLIEX. 2019.

  9. CHALMIN, Stéphane. Ainda é possível vencer uma guerra? Rio de Janeiro: BIBLIEX, 2021.

 

Rio de Janeiro - RJ, 20 de outubro de 2023.


Como citar este documento:
Amor, Frederico Chaves Salóes. Pedras, foguetes e posts - o conflito entre Israel e Hamas sob a ótica da guerra irregular na era da informação. Observatório Militar da Praia Vermelha. ECEME: Rio de Janeiro. 2023.  

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