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Guerra Híbrida: Qual a importância do conceito?

Publicado: Segunda, 20 de Setembro de 2021, 01h01 | Última atualização em Quinta, 16 de Setembro de 2021, 11h54 | Acessos: 1673

Jairo Luiz Fremdling Farias Júnior

Mestre em Ciências Militares

 

 1. Introdução

 O mundo polarizado do período da Guerra Fria, fortemente influenciado, particularmente no ocidente, pela “Teoria dos Jogos”, desenvolvida com base nos pensamentos do matemático John Nash, evidenciou uma visão de segurança e defesa fortemente construída em torno de ameaças estatais. Entretanto, com o enfraquecimento da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), desde o final da década de 1970, a agenda de defesa dos EstadosNação tem sofrido modificações (WALT, 1991), sendo incorporados novos conceitos norteadores para os Policy makers.

 Assim mesmo, a ascensão de novas correntes acadêmicas, como a “Escola de Copenhague” e a “Segurança Humana”, contribuíram para que questões sociais, ambientais, econômicas e diversas outras passassem a ser incorporadas nos debates sobre a defesa dos países (BUZAN, BARRY; HANSEN, 2009). Juntamente a isso, conflitos intraestatais, com fortes conotações étnicas eclodiram na África e na Europa, trazendo novos questionamentos aos legisladores e decisores de diferentes níveis. Tais conjunturas, contribuíram para que a organização e o emprego das Forças Armadas passassem a ser debatido e, muitas vezes, revisados.

 A partir do início do século XXI, eventos como os ataques terroristas ocorridos no dia 11 de setembro de 2001, em território estadunidense, bem como as interferências cibernéticas executadas contra a Estônia, no ano de 2007, parecem ter contribuído para consolidar a percepção de que agentes não-estatais ou híbridos, passariam a assumir maior protagonismo na ameaça às estruturas de governo.

 Entretanto, com a eclosão da Guerra da Crimeia, o termo “Guerra Híbrida” começou a ganhar holofotes nas agendas de defesa internacionais, trazendo impactos diretos nas estruturas de diversas Forças Armadas ao redor do globo.

 O presente ensaio pretende demonstrar a importância da definição do conceito de “Guerra Híbrida”, observando-se modelos adotados por nações e organizações ocidentais, bem como pela Federação Russa. O material possui sua relevância em buscar trazer à tona debates sobre a formulação dessa importante terminologia na área de segurança e defesa.

 2. A Teorização Histórica e a Quarta Geração da Guerra

 O conceito de Guerra Híbrida, para muitos autores, não comporta ineditismo teórico. Dentre esses, pode-se destacar a importante contribuição de Williamson Murray e Peter R. Mansoor, contida na obra intitulada “Hybrid Warfare: Fighting Complex Opponents From The Ancient World To The Present”.

 Publicada originalmente em 2012, essa obra busca apresentar uma visão histórica do conceito de “Guerra Híbrida”, por meio dos estudos de casos históricos, como o esforço romano para a destruição de povos bárbaros germânicos, bem como a atuação do exército prussiano, durante a Guerra FrancoPrussiana, no século XIX. No livro, toda a argumentação dos autores busca confirmar a hipótese de que o conceito de “Guerra Híbrida”, entendida como o uso misto de forças convencionais e não convencionais, de forma sincronizada, sempre fez parte das histórias dos conflitos armados. Ainda que pareça muito conectada com uma perspectiva historiográfica, o material pode indicar caminhos relevantes para uma definição conceitual.

 Outra importante visão teórica sobre o tema, é atribuída ao americano William S. Lind, principalmente por meio de seu artigo “The Changing Face of War: Into the Fourth Generation”, publicado em 1989 (LIND, 2004). Nessa publicação, Lind propõe a classificação dos conflitos bélicos em quatro gerações, de acordo com sua conjuntura temporal e espacial.

Ainda que esse autor não trate diretamente do termo “Guerra Híbrida”, sua leitura das gerações dos conflitos e a projeção de uma “Guerra de Quarta Geração”, evidenciam a expectativa por uma maior preponderância de atores não estatais nas agressões às estruturas de governo e ao povo, como as evidências recentes parecem confirmar. Importante destacar, ainda, que a ótica proposta por Lind, para os conflitos de Quarta Geração, apresentam a possibilidade do uso de ações de terror, bem como atuações em campos não tradicionalmente militares, como o econômico e o social.

 Ambas as concepções teóricas parecem prover lentes para formulação de agendas de defesa de diferentes Estados, particularmente no ocidente mundial, conforme é observado em seguimento.

 3. A Visão Ocidental

 Conforme Lawson (2021) apresenta, a definição conceitual de “Guerra Híbrida” não é consensual para os policy makers, no âmbito do hemisfério ocidental. Ademais, as ameaças crescentes promovidas pela política externa de Estados fora do eixo alinhado com os Estados Unidos, como a Federação Russa e a China, exercem importantes papéis na construção desses termos.

 Nesse contexto, por exemplo, observa-se que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), apresenta, ainda segundo Lawson (2021), a seguinte perspectiva:

 Ameaças híbridas combinam meios militares e não militares, bem como meios secretos e abertos, incluindo desinformação, ataques cibernéticos, pressão econômica, implantação de grupos armados irregulares e uso de forças regulares. Métodos híbridos são usados para confundir os limites entre guerra e paz e tentar semear dúvidas nas mentes das populações-alvo (tradução livre, grifo do autor).

 Além da OTAN, o European Centre of Excellence for Countering Hybrid Threats, sediado na Finlândia, define que “o termo ameaça híbrida se refere a uma ação conduzida por atores estatais ou não estatais, cujo objetivo é minar ou prejudicar um alvo combinando meios militares e não militares abertos e encobertos (tradução livre, grifo do autor).”

 Outro conceito correlato é provido pelo Training Circular 7-100 (TC 7-100), publicado pelo U.S. Army Training and Doctrine Command (TRADOC), do Exército dos Estados Unidos da América (US ARMY, 2010), que afirmam que “uma ameaça híbrida é a combinação diversa e dinâmica de forças regulares, forças irregulares e/ ou elementos criminosos, todos unificados para alcançar efeitos mutuamente benéficos (tradução livre, grifo do autor).”

 Ainda lançando vistas para os Estados Unidos, nota-se que a administração de Biden, em nível federal, parece não evidenciar grandes preocupações com o uso do termo “Guerra Híbrida”, especialmente quando se observa sua proposta de Estratégia Nacional de Defesa, preferindo o uso da expressão “Grey Zone1 ” (LAWSON, 2021). Entretanto, a mesma observação não pode ser estendida para a percepção das Forças Armadas estadunidenses.

 Acusando a Rússia de empregar a mescla de forças não-tradicionais para desestabilizar regiões de interesse norte-americanas, particularmente na Ucrânia e na Líbia, no ano de 2018, por meio de uma publicação do Exército, intitulada “The U.S. Army in Multi-Domain Operations 2028”, os Estados Unidos apresentaram uma nova concepção de emprego de seu vetor militar. Essa nova filosofia se preocupa em fornecer ferramentas para que comandantes em diferentes níveis possam planejar o emprego de forças em diferentes domínios, sendo capazes de “obter vantagens físicas e psicológicas, bem como influenciar e controlar o ambiente operacional” (tradução livre).

 Ainda que o ocidente pareça insistir em acusar as forças de Vladimir Putin de conduzirem a “guerra híbrida”, o antigo Secretário-Geral da OTAN Jens Stoltenberg, em discurso proferido no ano de 2015, evidenciou que o uso de elementos de dimensões amplas, não somente militares, se faz presente em campanhas da instituição, ainda que com finalidades diferentes: “Hibridismo é o reflexo sombrio de nossa abordagem abrangente. Nós usamos uma combinação de meios militares e não militares para estabilizar os países. Outros usam essa mesma combinação para desestabilizá-los (tradução livre, grifo do autor).”

 Em síntese, todas as ideias acima apresentadas, atinentes a visão ocidental, parecem corroborar com os conceitos apresentados por Lind e Mansoor, principalmente no tocante ao emprego de vetores regulares e irregulares. Ademais, conforme pode-se notar nos Estados Unidos da América, a definição adotada para o conceito de “Guerra Híbrida” serve como parâmetro para o desenvolvimento de uma filosofia de emprego do Exército estadunidense, consubstanciada com a criação do Multi-Domain Operations.

 4. A Visão Russa

 Em 2013, em artigo intitulado “The Value of Science Is in the Foresight: New Challenges Demand Rethinking the Forms and Methods of Carrying out Combat Operations”, traduzido para o inglês por Robert Coalson, veiculado no periódico MilitaryIndustrial Kurier, em fevereiro de 2013, o Chefe do Comando-Geral das Forças Armadas da Rússia, Valery Gerasimov afirmou, ao observar o fenômeno da Primavera Árabe, que “as próprias regras da guerra mudaram. O papel de meios não militares de alcançar políticas e objetivos estratégicos cresceram e, em muitos casos, excederam o poder da força das armas em sua eficácia” (tradução livre, grifo do autor).

 O mesmo general russo, no ano de 2014, durante a Conferência de Moscou sobre Segurança Internacional, apresentou o conceito de “abordagem adaptativa”. Nessa oportunidade, o general teorizou que o emprego de forças não-militares poderia permitir a desestabilização de um Estado, contribuindo para um posterior emprego de elementos militares convencionais, instruídos a restabelecer a ordem local (KORYBKO, 2018). Em sua argumentação, Gerasimov constantemente embasa sua construção teórica observando as chamadas “Revoluções Coloridas” e a Primavera Árabe, exemplos de guerras híbridas conduzidas, segundo ele, pelos Estados Unidos da América. Interessante ressaltar, ainda, que essa visão parece debruçar-se sobre a argumentação de que os Estados Unidos estariam empregando tais estratégias desestabilizadoras como forma de reafirmar um “cordão sanitário” ao redor do vasto território liderado por Vladimir Putin.

 As palavras de Gerasimov, alinhada com a crescente ameaça russa ao ocidente, particularmente alinhavada com a anexação da Crimeia e as disputas territoriais existentes nas proximidades da região de Donetsk, na Ucrânia, parecem ter trazido certo receio aos vizinhos europeus da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). As ideias apresentadas pelo General russo passaram a ser rotuladas como “Doutrina Gerasimov” e personificaram, pela visão ocidental, a forma de atuação da Federação Russa, em sua política internacional.

 Ainda que grande atenção tenha sido dada para a questão ucraniana, desde 2014, a percepção do uso do hibridismo russo também foi fortemente vinculada às possíveis interferências nas eleições presidenciais estadunidenses, no ano de 2016 (LAWSON, 2021), trazendo o campo informacional ao amplo cabedal de possibilidades de atuação de agentes não-estatais, supostamente financiados por governos legalmente constituídos.

 Assim, pode-se inferir que a visão russa se constrói com base nas ideias da “abordagem adaptativa”, concebidas pelo General Gerasimov.

 Semelhantemente com a visão ocidental, ela também se baseia no emprego sincronizado de meios militares e não militares. Relevante ressaltar, ainda, que assim como a visão ocidental constrói seu conceito baseado em uma resposta à Rússia, a nação liderada por Putin baseia sua teoria como forma de contraponto à estratégia estadunidense.

 3. Conclusão

 Desde o enfraquecimento da URSS, já na década de 1970, a agenda de defesa dos Estados passou a incorporar temas que, não necessariamente, estavam conectados com a perspectiva tradicional de segurança e defesa típicas da Guerra Fria. Entretanto, a partir da virada do século, diversos eventos conduzidos por elementos não-estatais, supostamente apoiados por atores estatais, aprofundaram os debates ainda mais esses debates e corroboraram para a formulação de conceitos de “Guerra Híbrida”.

 Os conceitos de “Guerra Híbrida”, ainda que não se possam considerar academicamente consolidados, possuem fatores importantes de conexão, mesmo entre atores concorrentes. Essas interseções são particularmente visíveis quando se observa a concepção de emprego de forças regulares e irregulares, de forma sincronizada, para atingir um objetivo estratégico maior.

 Retomando o objetivo do ensaio de demonstrar a importância da definição do conceito de “Guerra Híbrida”, percebe-se que a delimitação conceitual do termo permite que seja formulada filosofia de emprego de forças. Essa argumentação se reflete nas ideias de “abordagem adaptativa” e de “Multi-Domain Operations”, desenvolvidas por atores concorrentes, evidenciando a importância do debate sobre esse conceito.

 Ainda mais, é importante entender que a teorização sobre a “Guerra Híbrida” permite a incorporação de uma ampla gama de ameaças nas agendas de defesa. Conforme Lawson (2021) observou, essa abrangente apropriação pode converter-se em uma armadilha, já que tudo pode ser objeto de defesa, dificultando a formulação de estratégias eficazes.

 Ao debruçar-se sobre os atuais Documentos de Defesa do Brasil, nota-se que algumas ameaças híbridas são abordadas, em especial a cibernética. Entretanto, não é observada qualquer alusão que busque definir o conceito de “guerra híbrida”. Essa nota se faz relevante, uma vez que denota um óbice conceitual importante, no âmbito das Forças Armadas do Brasil.

 Finalmente, ainda que debates conceituais muitas vezes possam ser considerados pesados e desinteressantes, eles podem definir caminhos importantes para os policy makers. No campo da defesa isso não é diferente. As formulações teóricas da Federação Russa e do Exército dos Estados Unidos se projetaram no desenvolvimento de filosofias de emprego de forças. Nesse ínterim, é fundamental que mais debates sobre esse conceito sejam estimulados nas estruturas de defesa do país, como forma de auxiliar o planejamento estratégico das Forças Armadas brasileiras.

 

1 Esse termo, com tradução livre de “zona cinza”, segundo Lawson (2021), também pode se confundir com a expressão “Guerra Híbrida”.

 

 Rio de Janeiro - RJ, 20 de setembro de 2021.


Como citar este documento:
FARIAS JÚNIOR, Jairo Luiz Fremdling. Guerra Híbrida: Qual a importância do conceito?. Observatório Militar da Praia Vermelha. ECEME: Rio de Janeiro. 2021.

 

Referência:

  1. BUZAN, BARRY; HANSEN, Lene. The evolution of International Security Studies. New York: Cambridge University Press, 2009.
  2. EUROPEAN CENTRE OF EXCELLENCE FOR COUNTERING HYBRID THREATS. Hybrid Threats. In: Hybrid Threats. [S. l.]. Disponível em: https://www.hybridcoe.fi/hybrid-threats/. Acesso em: 18 ago. 2021.
  3. GERASIMOV, Valery. The Value of Science Is in the Foresight - Rethinking the Forms and Methods of Carrying out Combat Operations. Military review (Oprinnelig publisert i Voyenno-Promyshlennyy Kurier 27. februar 2013. Oversatt til engelsk av Robert Coalson), [S. l.], n. January-February, p. 23–29, 2016. Disponível em: http://www.vpk-news.ru/articles/14632.
  4. NATO, U. Remarks. In: By NATO Secretary General Jens Stoltenberg at the Inauguration of the Helsinki Centre of Excellence for Countering Hybrid Threats, with EU High Representative Federica Mogherini. [S. l.], 2 out. 2017. Disponível em: https://www.nato.int/cps/en/natohq/opinions_147499.htm. Acesso em: 18 ago. 2021.
  5. LAWSON, Ewan. We Need to Talk About Hybrid. The RUSI Journal, [S. l.], p. 1–9, 2021. DOI:10.1080/03071847.2021.1950330.
  6. LIND, William S. Understanding Fourth Generation War. Military Riview, [S. l.], n. October, 2004.
  7. US ARMY. Hybrid Threat TC 7-10. Washington: Department of the Army, 2010.
  8. US ARMY. The U.S. Army in Multi-Domain Operations 2028. [S. l.]: TRADOC, 2018.
  9. WALT, Stephen M. Mershon Series: Research Programs and Debates; The Renaissance of Security Studies; by The Renaissance of Security Studies.
  10. International Studies Quarterly, [S. l.], v. 35, n. 2, p. 211–239, 1991. Disponível em: https://academic.oup.com/isq/article-abstract/35/2/211/1792023.

 

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