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Crise Rússia e Ucrânia e os impactos na saúde

Publicado: Quarta, 15 de Março de 2023, 01h01 | Última atualização em Quarta, 15 de Março de 2023, 10h32 | Acessos: 2049

 

Paulo César dos Santos Faria
 Tenente-Coronel do Exército Brasileiro

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 1 . Introdução

A invasão da Ucrânia pela Rússia, iniciada em 24 de fevereiro de 2022, representou um duro golpe no entendimento do sistema interestatal westfaliano. Desde o final Segunda Guerra Mundial não ocorria na Europa um conflito de tamanha magnitude, envolvendo dois Estados relevantes no tabuleiro geopolítico regional e global (LOUREIRO, 2022).

Conflito deflagrado em decorrência da traumática dissolução da ex-URSS para os russos (MIELNICZUK, 2006), que sepultou o status geopolítico da Rússia na década de 1990, a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, após 12 meses de intensos combates dentro e fora do campo de batalha, está distante de uma conclusão. Em meio à destruição de cidades e mortes de militares e civis, outra questão surge com a permanência do conflito: Quais os impactos sobre a saúde de ambos os países envolvidos?

Diante dessa indagação, este artigo objetiva descrever os efeitos da atual crise no Leste Europeu na assistência médica desses Estados. Para tal, este artigo está dividido em sete seções. A introdução lança a pergunta que norteia o esforço desse trabalho. Na sequência, realiza-se uma revisão histórica que tem por finalidade trazer elementos sobre a Rússia e Ucrânia. A seguir, são apresentados o sistema de saúde ucraniano e a situação sanitária atual da Ucrânia. Após, são apresentados o sistema de saúde russo e os impactos do conflito sobre a saúde pública na Rússia. Na parte final, são realizadas algumas considerações sobre a saúde com base no que foi descrito. 

2. Histórico

A relação entre russos e ucranianos não é recente, pelo contrário, ela é antiga. Com um histórico repleto de idas e vindas, aproximações e distanciamentos, os dois países guardam um antepassado cultural em comum: a Rússia de Kiev, que pode ser entendida como sendo uma confederação de tribos eslavas do Leste Europeu, que vigorou do século IX ao século XIII.

A República Nacional da Ucrânia foi declarada em 23 de junho de 1917, ano do colapso do Império Russo e da Revolução Russa, permanecendo independente por poucos anos, sendo posteriormente incorporada à  ex-URSS em 1922. Entre os anos de 1931 e 1933, durante o regime de Josef Stalin, os ucranianos sofreram o Holomodor, ou a Grande Fome, que vitimou mais de 20% da população ucraniana, o equivalente a 14 milhões de cidadãos (BRASIL, 2022).

Em 1991, em decorrência do desmantelamento da ex-URSS, aflorou o sentimento de autodeterminação dos povos nas antigas repúblicas socialistas soviéticas. Com a Ucrânia não foi diferente e em 1991, por meio de um referendo realizado na Ucrânia, 90% da população votou pela independência, fato que possibilitou os ucranianos puderam finalmente constituírem o seu Estado soberano (NOVO, 2022).

Um importante momento pós-independência foi a assinatura do Memorando de Budapeste sobre garantias de segurança, ocorrido em 5 de dezembro de 1994. Neste acordo, a Ucrânia se desfez do seu expressivo arsenal de armas nucleares. Em contrapartida, teve a garantia de que as potências que assinaram tal acordo (Estados Unidos da América, Rússia e Reino Unido) não violariam a integridade territorial e a independência política da Ucrânia (BRASIL, 2022).

Na virada do século XX para o século XXI, a Ucrânia começou a demonstrar a intenção de estreitar seus laços com o Ocidente. O sucesso alcançado pela União Europeia e a satisfação da população dos recém ingressos na aliança, despertaram o desejo da população ucraniana em se juntar ao capitalismo pulsante do ocidente. Todavia, em 2013, o então presidente ucraniano Víktor Yanukóvytch (pró-Rússia), retrocedeu nos entendimentos com a União Europeia, postura que motivou enormes protestos que culminaram na sua deposição e na ascensão de um governo pró-Ocidente (NOVO, 2022).

A reviravolta no poder político da Ucrânia gerou uma reação imediata oriunda de Moscou. Aproveitando-se da fragilidade estrutural do país, a Rússia anexou a península da Crimeia ao seu território. Para Moscou, a Criméia não faz parte do território ucraniano, tendo em vista que somente em 1954, por um gesto de amizade de Nikita Khrushchov ao povo ucraniano, a região passou a ser controlada pela Ucrânia. Com forte presença étnica e linguística russa, em março de 2014 foi realizado um referendo, cujo resultado apontou para 95.5% dos eleitores optando pela união da Crimeia à Rússia. Após este fato, Vladimir Putin enviou tropas para assegurar o controle da região, violando os acordos assinados nos anos 1990 (APARECIDO, 2022).

No Leste da Ucrânia, a guerra na região do Donbass, também chamada de rebelião pró-russa, é um conflito armado na região da Bacia do Donets. Desde 2014, o controle territorial de partes das repúblicas ucranianas de Donetsk e Lugansk é mantido por grupos separatistas armados e financiados pela Rússia. Em fevereiro de 2022, o Presidente Vladimir Putin reconheceu oficialmente a independência dessas duas repúblicas, como sendo uma retaliação às negociações entre a Ucrânia e a OTAN (NOVO, 2022). Não pelo acaso, em 24 de fevereiro de 2022, a Rússia deflagrou operações militares em larga escala no território ucraniano, postura que marcou o recrudescimento de um conflito que começou em 2014, impactando sobremaneira a balança de poder mundial.

Do exposto, compreende-se que a escalada da crise atingiu seu auge em 24 de fevereiro de 2022, após um aumento nas tensões entre os dois países, que compartilham raízes tanto no passado histórico quanto nas relações territorial, cultural e política. Este cenário no Leste Europeu tem como principal motivação a aproximação da Ucrânia com a OTAN e a União Europeia, que sob à ótica russa tal movimento é visto como uma ameaça a sua segurança.

3. O Sistema de Saúde ucraniano

O sistema de saúde na Ucrânia se baseia em um sistema herdeiro da estrutura de saúde soviética, onde os cuidados são disponibilizados de forma gratuita para todos os cidadãos. No entanto, na prática, tais serviços gratuitos cobrem apenas o fornecimento básico e os pacientes muitas vezes pagam pelo custo da maioria dos cuidados, inclusive o uso de equipamentos especializados (TREATMENT ABROAD, 2022).

O sistema de saúde ucraniano obteve melhoras significativas, graças aos recentes esforços voltados para melhorar sua credibilidade junto aos usuários e para o combate à corrupção, uma prática frequente no país, dado o baixo financiamento estatal e os baixos salários pagos aos profissionais de saúde. A reforma gradual tinha como objetivo introduzir um sistema baseado em seguros de saúde, com a contribuição por parte dos cidadãos para o financiamento do sistema (INTERFAX-UKRAINE, 2009).

Em questão de semanas, a invasão russa colocou em risco o progresso desses esforços, interrompendo os programas de vigilância, imunização e tratamento de doenças, sob o risco de uma eclosão de surtos de doenças infeciosas. As interrupções nos cuidados para doenças crônicas degenerativas e nos serviços de saúde de rotina ameaçam aumentar a mortalidade e diminuir a expectativa de vida, que é de 71 anos no país, relativamente baixa para os padrões europeus (SIMONEAU et al, 2022).

A interrupção não foi total, contudo os danos na infraestrutura de saúde se tornaram mais aparentes conforme o transcorrer dos combates, ainda assim sendo difícil para as autoridades avaliarem a real dimensão da destruição. Em contrapartida, os programas de entidades civis provaram ser resilientes e algumas áreas do país conseguiram manter os serviços de rotina. Entende-se que, neste momento, a prioridade fundamental para o sistema de saúde deva ser a proteção e a segurança. Estima-se que cerca de 1.000 estabelecimentos de saúde na Ucrânia estejam próximos a áreas de conflito ou em território contestado. Até agosto de 2022 foram registrados mais de 269 ataques a estabelecimentos de saúde, como o ocorrido em 09 de março de 2022, a uma maternidade localizada em Mariupol (RFI, 2022).

Embora a Rússia insista que seus alvos sejam legítimos, não é isso que se percebe nesse conflito. Destruir ou causar danos a infraestrutura civil, particularmente a infraestrutura de saúde, pode ser encarado como uma forma calculada de submissão destinada a aterrorizar e forçar a fuga da população, haja vista que os profissionais, os estabelecimentos e veículos de saúde são protegidos especificamente pelo Direito Internacional Humanitário (DIH) (CICV, 2022).

Em relação à necessidade de material de saúde e se tratando de um conflito armado, as maiores prioridades são para os suprimentos cirúrgicos, medicações anestésicas, sangue, kits de transfusão, equipamentos de terapia intensiva, além de medicamentos essenciais. Organizações civis adquiriram veículos blindados para o transporte desses materiais para as zonas de conflito. Devido à vulnerabilidade dos sistemas de Tecnologia da Informação (TI), a Ucrânia tem dificuldade em fornecer os serviços de saúde, especialmente porque os ataques cibernéticos afetaram estes sistemas. Esses ataques incluem negação de serviço distribuído (DDoS), malware, ransomware e desconfiguração de sites (PARTIDA, 2022).

Diante do exposto, conclui-se parcialmente que a invasão da Ucrânia causou significativo impacto no sistema de saúde do país, que, diga-se de passagem, já era deficiente antes do conflito. Dentre os vários problemas existentes, toma destaque a corrupção, a qual é causada pelos baixos salários. A perda da infraestrutura de atendimento, em maior intensidade nas áreas conflagradas, é uma situação que representa uma grave ameaça para milhões de ucranianos.

4. Situação Sanitária na Ucrânia

Na história da humanidade, as doenças e as epidemias surgiram em momentos de paz, como em momentos de guerra. O conflito entre Rússia e Ucrânia não é diferente. As consequências para a saúde da população ucraniana vão muito além dos bombardeios às suas estruturas hospitalares (MANDAVILLI, 2022).

Duas semanas antes do início da guerra, por volta do dia 10 de fevereiro de 2022, a Ucrânia havia registrado sua maior taxa diária de casos de covid-19. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), menos de 40% da população da Ucrânia estava vacinada contra a doença. Em Kiev, a taxa de vacinação era de 65%, enquanto em algumas regiões do país chegava a 20%. As aglomerações em abrigos antiaéreos durante os ataques e nas passagens de fronteira enquanto a população fugia do país, criou as condições propícias para a propagação do coronavírus (VARELLA, 2022). Dados da OMS indicam que em 2016, apenas 31% das crianças ucranianas estavam totalmente imunizadas contra o sarampo. A baixa taxa de vacinação contribuiu para um surto iniciado em 2017 e que até 2020 já havia registrado 115 mil casos. Infelizmente, apesar dos serviços de saúde terem se esforçado para imunizar quase 82% da população, não foi possível interromper a disseminação de um vírus altamente contagioso. Na busca por lugares mais seguros, habitantes da cidade de Kharkiv, onde a cobertura vacinal está abaixo de 50%, levam com eles o risco de surtos epidêmicos (VARELLA, 2022).

Os terríveis impactos da invasão russa na saúde materna e neonatal foram registrados em uma foto de uma mulher sendo evacuada de uma maternidade na cidade ucraniana de Mariupol, atualmente ocupada pela Rússia. Mais de 4.300 bebês nasceram na Ucrânia entre 24 de fevereiro e 13 de março, muitos deles em abrigos antiaéreos. Cerca de 80 mil mulheres ucranianas devem ter dado a luz no primeiro semestre deste ano, provavelmente sem pré-natal, parto seguro ou consultas de acompanhamento com uma equipe de saúde. A Organização Mundial da Saúde estimou que 15% das gestações necessitariam de cuidados médicos especializados, contudo o oxigênio e os medicamentos seriam escassos. Dos 70 centros especializados de cuidados perinatais, pelo menos 15 haviam suspendido os serviços nos primeiros meses de conflito (INTERNATIONAL RESCUE COMMITTEE, 2022).

Outro grande problema de saúde pública na Ucrânia é a tuberculose. Segundo Leslie Roberts (2022), em artigo publicado na revista Nature, o país tem uma das mais altas taxas de incidência de tuberculose resistente a múltiplas drogas. Apesar de nem todos os infectados com a bactéria da tuberculose desenvolvam a doença, a cada ano cerca de 32 mil pessoas desenvolvem tuberculose ativa, com um terço dos casos resistentes aos medicamentos. Na Ucrânia, a tuberculose é a principal causa de morte entre os pacientes com HIV/Aids e outro dado preocupante se deve ao fato de um em cada cinco pacientes também é HIV positivo. A transmissão do bacilo da tuberculose se dá pela via aérea, a partir da inalação de aerossóis eliminadas pela tosse e pela respiração, sendo um risco em potencial para os que vivem em ambientes insalubres e com aglomerações (ROBERTS, 2022).

A Ucrânia, com aproximadamente 1% de sua população infectada com HIV ou Aids, tem a segunda maior taxa de HIV/Aids da Europa. As taxas de infecção são especialmente pronunciadas em grupos como usuários de drogas intravenosas e homens que fazem sexo com homens. A guerra dificultará ainda mais para os pacientes ucranianos identificarem seu diagnóstico de HIV e o acesso ao tratamento (INTERNATIONAL RESCUE COMMITTEE, 2022).

Quando a guerra eclodiu em 24 de fevereiro de 2022, a Ucrânia estava sofrendo um surto de poliomielite. Em outubro de 2021, o país havia registrado o primeiro caso de poliomielite na Europa em cinco anos (RIZZOLO, 2022). O vírus da poliomielite é altamente contagioso e afeta principalmente as crianças menores de 5 anos de idade, podendo atingir a medula espinhal, causando paralisia e até a morte. As vacinas podem impedir a transmissão do vírus de pessoa para pessoa, porém as taxas de vacinação contra a poliomielite estão abaixo de 50% em algumas áreas da Ucrânia, incluindo sua segunda maior cidade, Kharkiv. A doença estava se aproximando da erradicação na maior parte do mundo, sendo fonte de grande preocupação para especialistas em saúde pública em todo o mundo.

Em vista disso, pode-se depreender que a situação da saúde na Ucrânia caminha pra uma grave crise sanitária. O conflito interrompeu campanhas vacinais e programas de assistência a doenças infectocontagiosas, dentre elas a covid-19. Por ser um país com baixas taxas de cobertura vacinal, isto torna a situação ainda mais grave, além dos surtos recentes de tuberculose multirresistente, sarampo e poliomielite, sendo os deslocados e refugiados aqueles que correm maior risco.

5. O Sistema de Saúde Russo

O sistema de saúde russo já foi considerado um dos melhores sistemas de saúde do mundo, porém, na atualidade, a Rússia oferece um atendimento de saúde razoável. O índice de cuidados de saúde de 2021 (Health Care Index) classificou o sistema russo como o 59º melhor de 89 países mensurados, com uma pontuação muito baixa em qualidade de infraestrutura (NUMBEO, 2022).

Um relatório emitido pela Bloomberg classificou os serviços de saúde russos em último entre os 55 países desenvolvidos, com base na eficiência dos sistemas estatais de saúde. Esta é uma grave queda para um país que já foi considerado um dos mais inovadores e cientificamente adiantados do mundo. Embora existam alguns pontos importantes de progresso, o sistema de saúde da Rússia ainda enfrenta desafios significativos (INTERNATIONAL CITIZENS INSURANCE, 2022).

Desde 1996, a constituição russa assegura aos seus cidadãos o direito à saúde de forma gratuita. O serviço é fornecido por meio do Fundo Federal de Saúde Obrigatório, capitalizado por descontos salariais de 2 a 3%, porém os cuidados de saúde na Rússia são subfinanciados. O país gasta entre 5% e 6% de seu PIB anual na saúde. Estes valores estão muito abaixo da média global, que são geralmente cerca de 10%, e coloca a Rússia próxima da última colocação entre todos os países europeus (INTERNATIONAL CITIZENS INSURANCE, 2022).

Como na Ucrânia, subornos e corrupção não são incomuns, e são encarados até de forma corriqueira, uma vez que os pacientes anseiam por atendimento em meio aos recursos limitados. Existem relatos de problemas de pagamento de médicos e enfermeiros que não recebem os seus salários por vários meses e o fato de que esses salários são alarmantemente baixos (RFI, 2022). Nas últimas décadas, a Rússia busca estabelecer reformas estruturais do seu sistema de saúde, como a implementação de um sistema de seguros, como na Ucrânia, com a participação dos cidadãos no financiamento da assistência, porém tem alcançados resultados de forma lenta (KOEN, 2022).

Como conclusão parcial, nota-se que o sistema de saúde russo se assemelha ao sistema de saúde ucraniano, tendo o Estado como provedor único da assistência. O que no passado esteve como referência de atendimento, na atualidade se destaca como sendo um dos piores sistemas de saúde da Europa. Assim como na Ucrânia, reformas foram iniciadas para implementar um novo tipo de modelo de assistência, porém com o advento do conflito, estas mudanças permeneceram estagnadas.

6. Impactos na assistência médica na Rússia

Após a invasão da Ucrânia, a União Europeia adotou vários pacotes de sanções contra a Rússia com o objetivo de provocar o máximo de dificuldades ao país e tentar minar a sua capacidade de prosseguir com o conflito. Dentre o rol de sanções implementadas, há medidas restritivas específicas (sanções individuais), sanções econômicas e medidas diplomáticas (LEON, 2022).

Empresas multinacionais e associações profissionais, inclusive da área médica, também adotaram medidas suspendendo suas relações com a Rússia. A intenção dessas atitudes tem como objetivo pressionar ainda mais o presidente Vladimir Putin, porém também estão tendo efeitos significativos no atendimento médico prestado aos pacientes (BMJ, 2022). A comunidade científica e seus membros foram praticamente excluídos da academia mundial. As colaborações de países mais desenvolvidos foram interrompidas, mesmo aquelas para as quais já haviam sido concedidos subsídios e os trabalhos clínicos já haviam começado (BMJ, 2022). Pesquisadores russos se lamentam devido à grande dificuldade de publicar seus trabalhos em periódicos internacionais que são revisados por pares, uma vez que esses cobram altos valores e os cartões de crédito internacionais na Rússia estão bloqueados. Situação semelhante ocorreu em relação à assinatura de periódicos estrangeiros (KOONIN, 2022).

Métodos mais modernos de diagnóstico por imagem, como tomografia computadorizada (TC), ressonância magnética (RM), tomografia por emissão de pósitrons (PET), entre outros, estão sob risco de não serem mais realizados, uma vez que dependem de componentes importados que neste momento estão cada vez mais difíceis de serem obtidos, especialmente de forma rápida. O rastreamento para câncer de mama também não foi realizado em 2022, pois os filmes radiográficos que são utilizados para a mamografia são produzidos apenas na Bélgica (BORISSOVA, 2022).

Embora medicamentos, aparelhos e equipamentos médicos sejam considerados necessários por razões humanitárias e excluídos das sanções, diversas empresas tomaram medidas independentemente das sanções. A farmacêutica americana Eli Lilly and Company informou que enviaria medicamentos para doenças como câncer e diabetes, que constituem emergências médicas. Além de não iniciar nenhum novo ensaio clínico na Rússia, a empresa suspendeu as vendas de "medicamentos não essenciais” (BORISSOVA, 2022).

Em virtude do que foi mencionado, verifica-se que a saúde na Federação Russa vem sofren-do efeitos pela ação contra a Ucrânia. Diferentemente da Ucrânia, que arcou com severos danos a sua infraestrutura, as sanções aplicadas contra a Rússia visam comprometer a sua logística, trazendo grande incerteza quanto ao prosseguimento de tratamentos e no desfecho de doenças.

7. Considerações Finais

Considerando o objetivo proposto, entende-se que a assistência médica na Rússia e na Ucrânia, moldada de várias maneiras por um passado soviético comum, depende em grande parte do financiamento do governo. Antes do conflito, ambos os países enfrentavam grandes dificuldades para fornecer atendimento de saúde com uma qualidade satisfatória para seus cidadãos, quer seja pelo baixo investimento na área da saúde, quer seja pela baixa remuneração de seus servidores, quer seja até pela corrupção, que é relatada como uma rotina dentro dos sistemas. Outro ponto de convergência, é a implementação de reformas estruturais com a adoção do sistema de seguridade social, onde existe a contribuição por parte dos usuários para os custos da saúde, mas que seguem ainda de forma lenta.

Além disso, é importante destacar que o conflito ocorre na vigência da primeira pandemia do século XXI, pegando a Ucrânia com baixas taxas de vacinação para a covid-19. Apesar das principais causas de morte na Ucrânia serem as doenças não transmissíveis (DNT), os recentes surtos de poliomielite e sarampo ameaçam a saúde infantil e a prevalência de HIV e tuberculose multirresistente se encontram entre as mais altas da Europa, o que tornam as doenças infecciosas motivo de grande preocupação. O sistema de saúde ucraniano, apesar da escassez de medicamentos e suprimentos médicos, além da falta de manutenção de equipamentos, necessita manter o atendimento a essas enfermidades e a atenção à saúde materna (BUSS, 2022).

Até meados de 2022, mais de 6,8 milhões de pessoas deixaram o país, segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), sendo mais de 3,6 milhões para a Polônia, e o restante para países como a Romênia, Rússia, Hungria, Moldávia, Eslováquia e Bielorrússia. Milhares dessas pessoas não permaneceram nesses países, mas continuaram sua jornada para outros Estados, especialmente os países europeus, sobrecarregando os sistemas de saúde e agravando a possibilidade de disseminação de surtos de doenças (ROA, 2022).

Do outro lado, a Rússia vem sofrendo com sanções impostas pela comunidade internacional. Embora a União Europeia ratifique que todas as sanções estão em plena conformidade com as obrigações decorrentes do direito internacional, respeitando simultaneamente os direitos humanos e as liberdades fundamentais, é no mínimo discutível o comprometimento causado junto à logística de saúde e da produção científica às margens do embate em curso.

Por fim, o conflito entre Ucrânia e Rússia é mais um exemplo de que as guerras atuais tem se tornado cada vez mais guerras contra civis. De um lado, os efeitos são mais perceptíveis e alardeados por canais de notícias internacionais, porém há um outro pouco conhecido por grande parte da grande mídia, porém não menos implacável, uma vez que também se impede o atendimento para aqueles de necessitam de socorro. Pelo que se pode perceber, até o momento só há perdedores.

 

 

 Referências Bibliográficas: 

  1. APARECIDO, Julia Mori; AGUILAR, Sérgio Luiz Cruz. A Guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Série Conflitos Internacionais, Vol. 9, nº 1, 2022. Disponível em: https://www.marilia.unesp.br/ Home/Extensao/observatoriodeconflitosinternacionais/v.-9-n.-1fev.-2022.pdf. Acesso em: 27 de maio de 2022.

  2. BMJ. Russia’s war in Ukraine is killing cancer care in both countries. BMJ, 2022. Disponível em: https://www.bmj.com/content/bmj/376/bmj.o701.full.pdf. Acesso em: 26 de maio de 2022.

  3. BORISSOVA, Alexandra. Sanções e boicotes comprometem assistência médica na Rússia. Medscape, 2022. Disponível em: https://portugues.medscape.com/verartigo/6507795. Acesso em: 18 de agosto de 2022.

  4. BRASIL. Escola Superior de Guerra. Cadernos de Estudos Estratégicos, Vol. 1, p. 1-50, 2022.

  5. BUSS, P. M. et al. A guerra na Ucrânia, as outras e a saúde global. Le Monde Diplomatique, 2022. Disponível em: https://diplomatique.org.br/a-guerra-na-ucrania-as-outras-e-a-saude-global/ Acesso em: 24 de maio de 2022.

  6. CICV. Mesmo a guerra tem limites: profissionais e estabelecimentos de saúde devem ser protegidos. CICV, 2022. Disponível em: https://www.icrc.org/pt/document/mesmo-guerra-tem-limites-profissionais-e-estabelecimentos-de-saude-devem-ser-protegidos. Acesso em: 29 de agosto de 2022.

  7. INTERFAX-UKRAINE. Ukraine to start introducing insurance-based healthcare system in spring of 2010. Kyiv Post, 2009. Disponível em: https://www.kyivpost.com/article/content/ukrai ne-politics/ukraine-to-start-introducing-insurance-based-healt-53483.html. Acesso em: 28 de agosto de 2022.

  8. INTERNATIONAL CITIZENS INSURANCE. Understanding Russia’s Healthcare System. International Citizens Insurance, 2022. Disponível em: https://www.internationalinsurance.com/ health/systems/russia.php. Acesso em: 18 de agosto de 2022.

  9. INTERNATIONAL RESCUE COMMITTEE. 5 health crises that endanger Ukrainian lives as the war continues. International Rescue Committee, 2022. Disponível em: https://www.rescue. org/article/5-health-crises-endanger-ukrainian-lives-war-continues. Acesso em: 18 de agosto de 2022.

  10. KOEHN, Jodi. Russian Health Care Crisis. Wilson Center, 2022. Disponível em: https://www .wilsoncenter.org/publication/russian-health-care-crisis. Acesso em: 18 de agosto de 2022.

  11. KOONIN, E. V. Science in times of war: oppose Russian aggression but support Russian scientists. EMBO reports, Vol. 23, nº 4, 2022. Disponível em: https://www.embopress.org/doi/e pdf/10.15252/embr.202254988. Acesso em: 27 de maio de 2022.

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  13. LOUREIRO, Felipe. A Guerra na Ucrânia: significados e perspectivas. CEBRI, 2022. Disponível em: https://cebri.org/revista/br/artigo/27/a-guerra-na-ucrania-significados-e-perspecti vas. Acesso em: 27 de maio de 2022.

  14. MANDAVILLI, A. Public Health Catastrophe Looms in Ukraine, Experts Warn. The New York Times, 2022. Disponível em: https://www.nytimes.com/2022/03/26/health/ukraine-health-tb-hiv.html. Acesso em: 18 de agosto de 2022.

  15. MIELNICZUK, F. Identidade como fonte de conflito: Ucrânia e Rússia no pós-URSS. Contexto Internacional, Vol. 28, nº 1, p. 223–258, 2006. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ cint/a/5KxWrYnRR4XNzqqhwxKyDkB/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 28 de agosto de 2022.

  16. NOVO. Rússia e Ucrânia: um resumo da história e do conflito. Novo, 2022. Disponível em: https://novo.org.br/explica/russia-e-ucrania-um-resumo-da-historia-e-do-conflito/. Acesso em: 27 de maio de 2022.

  17. NUMBEO. Health Care Index by Country 2019 Mid-Year. Numbeo, 2022. Disponível em: https://www.numbeo.com/health-care/rankings_by_country.jsp. Acesso em: 29 de agosto de 2022.

  18. PARTIDA, Devin. How Healthcare Is Impacted by the Russia-Ukraine Conflict. BioSpectrum, 2022. Disponível em: https://www.biospectrumasia.com/news/90/19905/how-heal thcare-is-impacted-by-the-russia-ukraine-conflict.html. Acesso em: 18 de agosto de 2022.

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  20. RIZZOLO, Fernando. Guerra na Ucrânia e saúde pública. Diário do Comércio, 2022. Disponível em: https://diariodocomercio.com.br/opiniao/guerra-na-ucrania-e-saude-publica/. Acesso em: 16 de maio de 2022.

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Rio de Janeiro - RJ, 15 de março de 2023.


Como citar este documento:
FARIA, PAULO CÉSAR DOS SANTOS. Crise Rússia e Ucrânia e os impactos na saúde. Observatório Militar da Praia Vermelha. ECEME: Rio de Janeiro. 2022.  

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