Ir direto para menu de acessibilidade.
Portal do Governo Brasileiro
Início do conteúdo da página

A logística do conflito russo-ucraniano: possíveis lições aprendidas para o Exército Brasileiro

Publicado: Quarta, 19 de Julho de 2023, 01h01 | Última atualização em Quarta, 19 de Julho de 2023, 09h47 | Acessos: 1177

 

Jonathas da Costa Jardim
 Tenente-Coronel do Exército Brasileiro e  
Mestre pela Universidade de Madras (República da Índia)
.

.

1. Introdução

O antigo satélite da ex-União Soviética (ex-URSS), a Ucrânia, após o colapso do império soviético, envidou esforços para ser mais autônoma em relação a Moscou, postura que acirrou ânimos e aumentou a frequência de disputas territoriais. Um dos conflitos mais prolongados ocorridos na Europa contemporânea vem sendo a guerra russo-ucraniana.

O conflito russo-ucraniano, iniciado em fevereiro de 2022, tornou vivo conceitos que pareciam em desuso, como a guerra regular e a mobilização nacional. Ainda, intensificou outros, como a conhecida tríade de Clausewitz (2021) e sua célebre teoria de que a guerra é a continuação da política por outros meios. Em seu transcurso, nota-se que as implicações logísticas têm se mostrado significativas para russos e ucranianos.

Em dessa realidade e da importância da logística num esforço de guerra, este artigo se propões a examinar os aspectos logísticos desse conflito e destacar possíveis lições aprendidas para que o Exército Brasileiro possa melhor compreender a logística e aprimorar suas técnicas, táticas e procedimentos em combate.

2. Logística do conflito russo-ucraniano: lições para o Exército Brasileiro

Com erros e acertos operacionais ocorrendo dia após dia e em ambos os lados, o conflito russo-ucraniano vem nos apresentando diversas lições, particularmente sob o ponto de vista das capacidades logísticas dos dois países.

Com relação ao poder militar terrestre ucraniano, inicialmente percebeu-se a adoção de um fluxo logístico com características defensivas, maior centralização dos recursos, descentralização seletiva de meios aos elementos de emprego em primeiro escalão, medidas ativas e medidas passivas de proteção dos recursos logísticos.

Pelo lado russo, as tropas foram mobilizadas de forma mais rígida devido à manutenção da cadeia de abastecimento, que vem sofrendo dispendiosos reveses causados pela contestação ucraniana, baseada em medidas de "Antiacesso e Negação de Área" (também conhecido como "A2/AD", sigla em inglês), o que vem exigindo maior seletividade de ações, planejamento minucioso e antecipação de necessidades nos locais mais prováveis de ocorrência de atividades, além do estabelecimento de níveis de serviços diferenciados.

O processo de planejamento russo começou em março de 2021, quando as forças russas iniciaram um aumento dos seus níveis de tropas e equipamentos perto das fronteiras da Ucrânia e da Crimeia. Foi a maior mobilização desde a sua anexação, em 2014. Seguiu-se com uma retirada parcial em junho de 2021, na sequência da conclusão do exercício Zapad entre as Forças Armadas da Federação da Rússia e da Bielorrússia, que ocorreu de 10 de outubro a 15 de outubro de 2021.

Em outubro de 2021, uma segunda mobilização levou a cabo mais de 100.000 soldados russos, que ficaram estacionados perto da fronteira ucraniana. As autoridades russas negaram repetidamente qualquer intenção de invadir a Ucrânia. No entanto, exigiam um acordo declarando que a Ucrânia não aderiria à OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) e uma redução do seu pessoal e equipamento nos países da Europa oriental (GLOBAL CONFLICT TRACKER, 2022).

Os russos, apesar dessa preparação, vêm lutando para manter seus suprimentos em áreas mais próximas de suas tropas. O avanço em direção à capital ucraniana - Kiev - e ao centro administrativo de Chernihiv, expôs limitações da capacidade militar russa em apoiar suas tropas, trazendo à tona sérios problemas logísticos que foram ignorados no planejamento e manifestados à medida que a guerra avançou.

Desta feita, o presente recorte analítico passará a delinear, por meio da análise de diversos fatores relacionados a logística no conflito, apresentando aquilo que pode ser considerado como lições aprendidas para o Exército Brasileiro.

Ponto Culminante: após o início da ofensiva russa, foi observado um comboio russo com mais de 60 quilômetros de extensão próximo a Kiev. Tal comboio foi alvo diuturno de ataques aéreos ucranianos dentro de suas ações de A2/AD, gerando sérios problemas para as tropas russas em primeiro escalão, que ficaram estacionadas por falta de combustíveis e munição. Assim, deixar de integrar os aspectos logísticos durante a fase de planejamento da missão com a manobra, acarretou numa execução desconexa com as reais necessidades, particularmente com relação aos menores escalões. Nesse momento, a logística deixou de ter capacidade para responder, efetivamente, às necessidades da força apoiada limitando a sua liberdade de ação (BRASIL, 2020), caracterizando o atingimento do ponto culminante logístico das forças russas na frente Norte. Dessa feita, é lícito supor que, partindo-se de tal princípio, a logística não conseguiu acompanhar o ritmo operacional exigido, incorrendo no atingimento do seu ponto culminante antes do esperado, momento em que as forças russas em combate deixam de ter a capacidade para continuar as operações com sucesso (BRASIL, 2020).

Uma lição aprendida que pode ser sugerida ao Exército Brasileiro está voltada para os comandantes em todos os níveis, os quais devem exigir que o planejamento das operações esteja devidamente integrado ao planejamento logístico. Para tanto, é imprescindível que as estimativas logísticas sejam calculadas com base nas reais necessidades, a fim de que a praticabilidade da linha de ação seja completamente factível e tenha flexibilidade capaz de absorver as nuances do combate.

Figura 1 - Comboio Russo nos arredores de Kiev

 logistica conflito russo ucraniano possiveis licoes aprendidas exercito brasileiro fig1

Fonte: BBC, 2022.

Pausa Operativa: para o cumprimento da missão, devem ser planejadas pausas operacionais, a fim de que não ocorra a falta de recursos para atingir o estado final desejado. Durante o conflito pôde-se observar, após consideráveis consequências ocasionadas pelo atingimento do ponto culminante logístico das forças russas na frente norte em março de 2022, uma pausa operativa (planejada) em julho de 2022, na região de Donbas, quando ocorreu uma diminuição do ritmo das operações.

Flexibilidade: os movimentos russos foram obstruídos nos estágios iniciais da guerra pela paralisação da infraestrutura rodoferroviária, principalmente quando os ucranianos passaram a atacar pontes sobre rios, como a Antonovsky, sobre o rio Dnieper, em Kherson, a Moshchun em Hostomel e a localizada sobre o rio Dnipro (SAHA, 2023), impedindo e/ou limitando o avanço russo sobre tais cidades. A negação do acesso ao sistema ferroviário aumentou a distância máxima de apoio entre os depósitos e as unidades táticas, resultando em um ritmo operacional mais lento. Tendo em vista que os russos não dispunham de veículos de transporte dedicados para a logística em número adequado, sentiu-se a necessidade de um aumento de viagens e, assim, uma maior exposição dos comboios logísticos (JARDIM, 2022). Levando-se em consideração de que o princípio da flexibilidade é caracterizado pela adoção de soluções alternativas ante a mudança de circunstâncias e de que o apoio logístico deve ser preditivo, adaptável e suficientemente reativo para que o objetivo fixado possa ser atingido (BRASIL, 2016), verifica-se que a não existência de opções para o deslocamento do grosso de sua cauda logística após a impossibilidade de utilização do modal ferroviário foi crucial para o insucesso do cumprimento de seu estado final desejado.

Outa lição aprendida que pode ser sugerida ao Exército Brasileiro é que a instituição envide esforços para desenvolver e estimular o incremento da aplicação da doutrina de transportes envolvendo modais de transporte alternativos ao tradicional modal rodoviário a fim de que, em caso da necessidade de emprego, as medidas de A2/AD não restrinjam a liberdade de manobra e garanta o fluxo logístico contínuo e ininterrupto durante as operações.

Adoção de medidas especiais de proteção da logística: o sucesso das operações A2/AD ucranianas que limitaram a capacidade logística russa, em grande parte, foram proporcionadas pelo uso de um suporte essencial para o atingimento desse ponto de decisão, que infringiu aos russos pesadas baixas, fazendo com que o “OODA Loop” (observar, orientar, decidir e agir) ucraniano girasse com muito mais velocidade.

Seja por seu baixo custo, seja por proporcionar surpresa e flexibilidade no movimento tático no espaço de batalha moderno, nota-se uma proliferação de sensores UAV/UCAV (Unmanned Combat Aerial Vehicle, sigla em inglês) nos conflitos modernos. Por conta disso, é imprescindível que as técnicas, táticas e procedimentos logísticas sejam adequadas para contrapor tal ameaça, sob pena de ocorrer uma interrupção do fluxo e o atingimento do ponto culminante das tropas em combate.

Uma lição aprendida que pode ser apresentada ao Exército Brasileiro está voltada para o planejamento dos locais e instalações que serão priorizados e contemplados com os meios de proteção antiaérea. Em suma, sugere-se que as principais estruturas logísticas sejam contempladas com o nível de prioridade mais elevado de proteção aérea. Para tanto, sugere-se a previsão de recursos operacionais para o incremento da proteção dos comboios contra a ação de armas anticarro, como os misseis norte-americanos Javelin e os suecos AT4. 

Efeito das Condições Meteorológicas sobre a logística:  a “Rasputitsa” é um fenômeno recorrente na região de operações e que não deveria ter sido negligenciado. A limitação das ações, caso bem planejadas, poderiam coincidir com uma pausa operativa dentro do contexto dos combates, proporcionando tempo para reagrupar tropas e recompletamento dos níveis de suprimento, elevando o poder de combate dos contendores.

Outra lição aprendida que este artigo intenciona apresentar ao Exército Brasileiro é voltada para o estudo minucioso do terreno e das condições meteorológicas. Com o Brasil possui uma grande extensão territorial, redobra a importância do estudo do terreno e as condições meteorológicas, tendo em vista seu poder de influenciar toda a cadeia de abastecimento. As chuvas torrenciais que normalmente acontecem entre os meses de janeiro e março na região sudeste é um exemplo disso, uma vez que costumam ocasionar desabamentos de terra, limitando os deslocamentos, tornando-se impeditivos ao fluxo logístico em caso de conflito, já que grande parte da produção industrial do país é produzida nessa região e/ou utiliza esses eixos para a distribuição.

Figura 2 - Veículos militares russos destruídos pelas forças ucranianas em Kharkiv

 logistica conflito russo ucraniano possiveis licoes aprendidas exercito brasileiro fig2

Fonte: Holly Ellyatt, por CNBC, Getty Images (2022)

Hubs logísticos: a mobilização russa utilizou cidades com infraestrutura adequada dentro de sua zona de administração para servirem como base para apoiar em tempo oportuno a zona de combate com os meios necessários e volume adequados para o início de sua ofensiva. Para tanto, os russos basearam suas ações no modal ferroviário, cuja expertise é amplamente disseminada dentro da doutrina militar de Moscou. Para o desdobramento das áreas de concentração estratégicas, a Rússia empregou 10 (dez) Brigadas Ferroviárias. As localidades selecionadas possuíam ligação rodoferroviária e se encontravam em “hubs” que tem condições de proporcionar o devido suporte logístico para sustentação das tropas (RAIL TARGET, 2023).

Uma lição aprendida que este artigo sugere para o Exército Brasileiro é focada na importância dos hubs logísticos em território nacional. Devido a grande extensão territorial, torna-se vital desenvolver os hubs logísticos no interior do país, na medida em que integram a indústria nacional de defesa e possibilitam o alcance da prontidão logística.

Integração das capacidades nacionais: em conformidade com o que prescreve os hubs logísticos, é desejável que a integração das capacidades nacionais deva ser estimulada desde os tempos de paz, a fim de materializar o poder de combate de uma nação. A prontidão logística e a manutenção do poder de combate só podem ser alcançados se a estrutura industrial for adequada para colocar na frente do campo de batalha as demandas estimadas para o combate.

Em vista dessas considerações, outra lição aprendida que este artigo sugere para o Exército Brasileiro é no sentido de envidar esforços para aprimorar e desenvolver a doutrina, a organização, o adestramento, a gestão das informações, a efetividade do ciclo logístico, a capacitação continuada do capital humano, bem como intensificar a parceria com a Academia e com a Indústria, particularmente a nacional.

Multiplicidade de meios: os diversos tipos de blindados recebidos pela Ucrânia geraram grandes impactos em suas funções logísticas, criando uma imensa cauda logística de suporte, composta por uma infinidade de itens e de sobressalentes de manutenção. Essa enorme variedade de itens e sobressalentes ocasiona dispendiosos custos para manter as tropas em condições de combater.

Para o Brasil, é cediço que a padronização dos itens gera uma diminuição dos encargos logísticos, além da diminuição de custos. Em vista disso, este artigo sugere, como lição aprendida, que o Exército Brasileiro busque diversificar o arsenal bélico desde os tempos de paz, pois permite o domínio do conhecimento da administração e do ciclo de vida dos materiais, além de proporcionar flexibilidade quanto ao emprego. É certo, ainda, que durante os conflitos, novas tecnologias surgirão, como ocorreu ne Ucrânia e sua posse deve ser estimulada a fim de que tais capacidades proporcionem vantagem no campo de batalha.

5. Conclusão

A logística tem sido o fiel da balança e a que afiança a liberdade de ação necessária ao sucesso das missões no conflito russo-ucraniano.

Em síntese, verifica-se que o planejamento militar deve sempre integrar, de forma realística e utilizando-se estimativas logísticas coerentes e factíveis, a praticabilidade de uma operação. O limite alcançado pelo poder de fogo das armas deve ser o mesmo dos domínios logísticos, sob pena de que as batalhas incorram em insucesso. Por outro lado, isso não pode significar inflexibilidade no planejamento logístico, ao ponto de que o mesmo não suporte os infortúnios do combate moderno.

A guerra tem mostrado que a logística é a chave para o sucesso das operações de combate em larga escala. Portanto, é essencial que as manobras levem em consideração a logística como um componente fundamental para o sucesso.

Por fim, como reflexão final, fica a questão sobre a hora de trazer a logística de volta às discussões sobre operações de combate em larga escala. “A sustentação deve ser elevada a um princípio de guerra, para enfatizar a importância estratégica da logística e fornecer um imperativo para uma melhor integração da base industrial de defesa nas estratégias de dissuasão e defesa” (ECHEVARRIA, 2021).  O futuro das operações de combate em larga escala obviamente depende do futuro da sustentação estratégica e operacional.

 

 Referências Bibliográficas: 

  1. BBC. Guerra na Ucrânia: por que comboio russo de 64 km parou de avançar perto de Kiev. BBC, 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60 607115. Acesso em: 18 de Março de 2023.

  2. BRASIL. Ministério da Defesa. Doutrina de Logística Militar - MD42-M-02. Brasília: Ministério da Defesa, 2016.

  3. BRASIL. Exército Brasileiro. Manual de Campanha EB70-MC-10.357 - Grupamento Logístico. Brasília: Exército Brasileiro, 2020.

  4. CLAUSEWITZ, Carl von. On War. J.J. Graham (Traduzido do alemão para o inglês). Londres: Project Gutenberg License, 2021.

  5. ECHEVARRIA, Antulio J. War’s Logic: Strategic Thought and the American Way of War. Cambridge: Cambridge University Press. 2021.

  6. GLOBAL CONFLICT TRACKER. War in Ukraine. Global Conflict Tracker, 2022. Disponível em: https://www.cfr.org/global-conflict-tracker/conflict/conflict-ukraine. Acesso em: 20 de Março de 2023.

  7. JARDIM, Jonathas da Costa. A logística russa no contexto do conflito com a Ucrânia: alguns apontamentos. A Defesa Nacional, Vol. 848, nº 2, p. 18-25, 2022.

  8. RAIL TARGET. Deutsche Bahn and Ukrzalisnytsia may set up a joint venture. Rail Target, 2023. Disponível em: https://www.railtarget.eu/technologies-and-infrastructure/ war-in-ukraine-railway-monitoring-1888.html. Acesso em: 21 de Março de 2023.

  9. SAHA, Bidisha. Build, destroy, repeat - battle over bridges and runways in Ukraine.  India Today, 2023. Disponível em: https://www.indiatoday.in/world/story/bui ld-destroy-repeat-battle-over-bridges-and-runways-in-ukraine-russia-war-putin-zelensky y-2338140-2023-02-22. Acesso em: 17 de Março de 2023.

 

Rio de Janeiro - RJ, 19 de julho de 2023.


Como citar este documento:
Jardim, Jonathas da Costa. A logística do conflito russo-ucraniano: possíveis lições aprendidas para o Exército Brasileiro. Observatório Militar da Praia Vermelha. ECEME: Rio de Janeiro. 2023.  

.

Fim do conteúdo da página