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Opinião: - A aposta norte-americana no acordo com o talibã – mais um passo na tentativa da retirada total das tropas da OTAN do Afeganistão

Publicado: Quinta, 05 de Março de 2020, 08h01 | Última atualização em Quinta, 06 de Janeiro de 2022, 13h52 | Acessos: 5571

TC ENIO Corrêa de Souza1

O secretário de Estado dos Estados Unidos, Mike Pompeo, e o Talibã assinaram um acordo, em Doha, no Catar, no último dia 29 de fevereiro de 2020. Os americanos e seus aliados da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) prometeram retirar todas as suas tropas do país num prazo de 14 meses, se os militantes da organização sustentarem o acordo de paz. Caso ocorra o recrudescimento da violência no país, o processo poderá ser interrompido. Tal pacto brota como fruto de um esforço de negociação costurado há 1 ano e meio, para terminar uma guerra que se arrasta no Afeganistão, desde o ano de 2001, como reação aos atentados terroristas ocorridos no fatídico 11 de setembro.

Vale ressaltar que o Afeganistão, desde o século XIX, tem sido palco de conflitos entre grupos antagônicos e alvo da disputa por influência e domínio das superpotências mundiais. Tropas britânicas já lutavam na região nas denominadas Primeira (1839-1842), Segunda (1878-1880) e Terceira Guerra Anglo-Afegã (1919). Com o advento da Guerra Fria, no pós-Segunda Guerra Mundial (1939-1945), foi a vez de soviéticos e norte-americanos. Nesse contexto, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) invadiu a região (Figura 1), na "Invasão Soviética do Afeganistão" ou Primeira Guerra do Afeganistão (1979-1989).

invasao afeganistaoFigura 1: A invasão do Afeganistão (dez 1979)

Disponível em: https://i2.wp.com/www.cavok.com.br/blog/wp-content/uploads/2017/01/AF-mapa.jpg. Acesso em: 29 de fev. de 2020.

Após dez anos de sangrenta presença russa, que resultou em 15.000 baixas soviéticas, como consequência da derrocada da URSS, as tropas comunistas se retiravam da região. Nesse período, os EUA promoveram intenso crescimento militar de diversos grupos afegãos contrários ao comunismo, conforme mapa, a seguir. Entretanto, esses antigos aliados, no período pós-soviético, voltaram-se contra os estado-unidenses, assim que o regime Talibã assumiu o governo afegão, em 1996. É importante ressaltar que no período pós Guerra-Fria diversos grupos passaram a atuar no Afeganistão, conforme se vê na Figura 2.

evolucao gruposafegaoFigura 2: Evolução dos grupos afegãos no pós Guerra-Fria (1992 até 2001)

Afghanistan conflict. Wikipedia, 2018. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Afghanistan_conflict_(1978%E2%80%93present)/. Acesso em: 29 de fev. de 2020.

Assim sendo, os atentados nos EUA, deflagaram a chamada Segunda Guerra do Afeganistão, uma vez que os atos terroristas foram reclamados pela Al-Qaeda, sob a coordenação de Osama bin Laden, com o apoio do regime talibã. Desse modo, os ataques norte-americanos em solo afegão se iniciaram no dia 7 de outubro de 2001, com o apoio da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), ainda sem o respaldo da Organização das Nações Unidas (ONU); o que surgiria apenas em dezembro daquele ano. Uniram-se em apoio aos EUA, os seguintes países: Reino Unido, Canadá, França, Austrália e Alemanha. Destacavam-se entre os objetivos estratégicos e operacionais das operações táticas militares, como pontos decisivos: a captura de Osama bin Laden, seus apoiadores e o término das células de recrutamento e adestramento terroristas instaladas no País, além da derrocada do regime talibã, ante aos seus laços inquestionáveis com a Al-Qaeda.

Os talibãs foram rapidamente retirados do governo do Afeganistão, porém se transformaram em uma força insurgente, que continua até hoje sendo capaz de desferir ataques mortais, para desestabilizar os governos afegãos subsequentes instaurados e apoiados pela OTAN, conforme pode-se observar na Figura 3, que mostra a situação no Afeganistão, em dezembro de 2001, após a ofensiva aliada inicial. Os talibãs foram capazes de se refugiar em terras vizinhas paquistanesas, ao mesmo tempo em que mantiveram uma forte presença no território afegão. Os combates, desde então, têm sido intensos e danosos, resultando em milhares de baixas, dentre as quais, pelo menos 2400 são do lado norte-americano, de um total de 3500 mortes nas tropas aliadas (OTAN). As perdas afegãs são ainda mais numerosas, principalmente entre os civis, com estimativas que vão de 30 a mais de 50 mil mortos, dentre os 10.000 combatentes afegãos mortos, contabilizados até o momento.

situacao afeganistaoFigura 3: Situação do Afeganistão após a ofensiva aliada em dezembro de 2001

Afghanistan - Maps. Globalsecurity.org, 2018. Disponível em: https://www.globalsecurity.org/military/world/afghanistan/maps.htm. Acesso em: 29 de fev. de 2020.

Em maio de 2011, o então Presidente Barack Obama anunciava a morte de Osama bin Laden na Operação Lança de Netuno, desencadeada com sucesso por tropas de operações especiais norte-americanas no Paquistão. Entretanto, o sucesso da operação não foi capaz de ensejar o fim do esforço militar americano na região, não obstante a assinatura de um acordo estratégico entre os presidentes Obama e Hamid Karzai, em 2012, com um Plano de Segurança, que trazia em seu bojo, a retirada progressiva das tropas americanas.

Apesar da reversão de efetivos iniciada à época, não se chegou próximo a uma retirada total das tropas aliadas, que são, em sua maioria, norte-americanas, conforme tinha sido previsto no Plano, cuja aposta era pela conclusão da saída total até o ano de 2016. Os EUA, que chegaram a ter mais de 100.000 soldados desdobrados no país, ainda empregam no Afeganistão bem mais de 10.000 militares, algo em torno de 14.000.

Enquanto as animosidades persistem, a guerra permanece cobrando seu alto preço, com grande parte da população afegã morrendo pela fome ou por falta de cuidados médicos, além do sofrimento advindo da impossibilidade de recuperação da combalida infraestrutura do país. Os conflitos produziram milhares de mortes, danos irreparáveis em veteranos e mais de 750 bilhões de dólares em gastos. A guerra vem perdurando pela incapacidade do delineamento e atingimento do Estado Final Desejado (EFD) inicial, bem como pela ineficácia da estratégia empregada nos últimos 18 anos, face a complexidade dos diversos grupos e ameaças, que vem se fortalecendo na região, como, por exemplo, o recente apogeu do Estado Islâmico e as relações com o país vizinho e aliado, o Paquistão, que tem desempenhado um papel duplo e inequívoco na prevalência do Talibã.

Pelo acordo celebrado, foram feitas promessas no sentido de libertar prisioneiros políticos e de combate, por ambas as partes. Os Estados Unidos comprometeram-se a retirar sanções de membros do Talibã até agosto, que por sua vez, aceitou não permitir que a Al-Qaeda ou qualquer outro grupo extremista opere em áreas controladas por ele, aceitando inclusive combater o Estado Islâmico nos territórios sob seu controle. Para muitos, o tratado pode significar o fim do intervencionismo norte-americano e, foi costurado, em última análise, a fim de cumprir uma promessa de campanha do presidente norte-americano, Donald Trump, que se encontra na busca da reeleição no pleito eleitoral que se aproxima, em novembro deste ano.

A verdade é que, para uma parcela considerável da opinião pública norte-americana, o esforço bélico no Afeganistão já não é mais uma guerra justa e de apelo popular e emocional “contra o terror”, tal como foi idealizada no cenário logo após o 11 de setembro de 2001. Naquela época, os Estados Unidos tinham de vencer a qualquer custo e era preciso retaliar. Os vitoriosos combates táticos iniciais deram lugar a um interminável conflito de insurgência, tal como aconteceu com os britânicos e os soviéticos.

Atualmente, tal guerra se assemelha a uma pesada e incômoda mochila que, os americanos, assim como ocorreu com os britânicos e soviéticos, estão a todo custo procurando alijar. O acordo sinaliza mais um esforço nesta direção. Porém seu sucesso está ainda para ser mensurado no pretensioso objetivo futuro de concretização de um cessar-fogo permanente que reflita uma paz duradoura. Porém, isto dependerá da habilidade e vontade de um Talibã, outrora antigo aliado, mas agora uma força adversa e alienígena ao atual governo do Afeganistão.

Os americanos apostam que os talibãs serão capazes de manter um controle efetivo da região que se traduza eficazmente no fim da escalada da violência no país e que possibilite o fim do conflito. Há ainda, o receio que o esforço norte-americano se configure num interminável e incômodo pesadelo, com semelhanças ao longo e infrutífero envolvimento norte-americano na Guerra do Vietnã (1955-1975).


1 Coordenador Adjunto do Grupo Conflitos Bélicos – Observatório Militar da Praia Vermelha


Referências Bibliográficas:

Estados Unidos e Talibã selam acordo para retirar tropas do Afeganistão. Veja, São Paulo, 29 de março. de 2020. Disponível em: https://veja.abril.com.br/mundo/estados-unidos-e-taliba-assinam-acordo-de-paz/. Acesso em: 01 de mar. de 2020.

EUA e Talibã assinam acordo, e tropas americanas e da Otan sairão do Afeganistão em 14 meses. G1, Rio de Janeiro, 29 de março. de 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/02/29/eua-e-afeganistao-anunciam-termos-de-acordo-sobre-retirada-de-tropas.ghtml. Acesso em: 01 de mar. de 2020.

GIORDANI, Evandro. “GUERRA FRIA: Afeganistão, um Vietnã para a União Soviética?”, CAVOK, Bento Gonçalves, 28 de janeiro de 2017. Disponível em https://www.cavok.com.br/blog/guerra-fria-afeganistao-um-vietna-para-a-uniao-sovietica/. Acesso em: 01 de março de 2020.

SANGER, David E. “After 18 Years, Is This Afghan Peace, or Just a Way Out?”, 2020. Disponível em: https://www.nytimes.com/2020/02/29/world/asia/trump-taliban.html. Acesso em: 01 de mar. de 2020.

The First Anglo-Afghan War, 1839-1842. Military-History.org, Londres, 1º de outubro. de 2010. Disponível em: https://www.military-history.org/articles/the-first-anglo-afghan-war-1839-1842.htm. Acesso em: 01 de mar. de 2020.

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