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Origens da Defesa Química, Biológica, Radiológica e Nuclear no Exército Brasileiro

Publicado: Terça, 18 de Outubro de 2022, 04h01 | Última atualização em Segunda, 17 de Outubro de 2022, 15h49 | Acessos: 1206

 

Luiz Rodrigues dos Santos Junior
Major do Exército Brasileiro e aluno da ECEME

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1. Introdução

A Defesa Química, Biológica, Radiológica e Nuclear (DQBRN) pode ser definida como o conjunto de atividades relacionadas ao reconhecimento, à detecção e à identificação de agentes químicos, biológicos, radiológicos e nucleares (QBRN) e à descontaminação de pessoal e material expostos (BRASIL, 2017).

O manual de campanha EB70-MC-10.234 (DQBRN NAS OPERAÇÕES) afirma: “A existência de arma de destruição em massa é uma ameaça potencial em diferentes áreas do mundo”. Nesse contexto, entende-se como armas de destruição em massa todo artefato capaz de liberar agentes químicos, biológicos ou radiológicos ou de produzir uma detonação nuclear.

A possibilidade de se empregar armas químicas em massa concretizou-se nos campos de batalha pela primeira vez em 22 de abril de 1915, na localidade de Yprès (Bélgica), durante a I Guerra Mundial (I GM), quando o Exército alemão desencadeou um ataque contra tropas francesas, utilizando 180 toneladas de gás cloro. Estava inaugurada a guerra química[1] moderna.

Da Batalha de Yprès ao final da I GM, os contendores lançaram-se a uma corrida armamentista, desenvolvendo novos agentes químicos, como sufocantes e vesicantes, bem como meios de proteção correspondentes, em uma busca incessante pela superioridade de meios sobre o adversário.

Tropas especializadas em guerra química foram criadas pelas principais potências oponentes no conflito, a exemplo do Chemical Warfare Service no Exército dos Estados Unidos da América (EUA). A experiência proporcionada por esse cenário veio a se consolidar nas doutrinas militares dos beligerantes na I GM, vislumbrando como permanente a ameaça química.

O presente artigo tem por objetivo apresentar os eventos históricos relacionados à origem da doutrina de Guerra Química no Exército Brasileiro (EB), entre as décadas de 1920 e 1940.

2. Os Primórdios da Guerra Química no Exército Brasileiro

Em janeiro de 1916, a Revista Marítima Brasileira publicou uma nota intitulada Os Gazes Asphyxiantes, de autoria do capitão-tenente Álvaro Porto, acerca dos “novos métodos” de guerra proporcionados pelo uso de agentes químicos, sob o aspecto jurídico, à luz da Primeira Conferência Internacional de Haia[2] (1899). Naquele ano, a edição de junho da Revista A Defesa Nacional trouxe o artigo A Guerra Actual Perante o Direito Internacional, com o intuito de analisar a legalidade dos métodos de combate então empregados na I GM. Na literatura especializada militar, essas foram as primeiras menções à inovação trazida pelo uso de gases de combate no teatro de operações europeu.

Após o término da I GM em 1918, houve o regresso de uma comissão de 28 oficiais do EB, enviados no ano anterior para uma missão de estudos junto ao Exército francês, na ocasião em que o Brasil ingressou como país beligerante no conflito (McCANN, 2009). A experiência colhida por esses oficiais na Grande Guerra ratificou a necessidade de modernização do Exército, evidenciada alguns anos antes, pelo baixo desempenho das tropas federais na Guerra do Contestado, em 1912 (VELÔZO, 2022).

Dessa forma, o Brasil contratou, por meio do decreto nº 3.741, de 28 de maio de 1919, a Missão Militar Francesa (MMF), que contribuiu para reestruturar o EB, por meio da reformulação do sistema de ensino e de instrução militar, trazendo as lições aprendidas durante a I GM, incluindo a ameaça química (BELLINTANI, 2009). Nessa quadra da história militar brasileira, a DQBRN teve a sua gênese.

Em 1922, foi realizado o 1º Congresso Nacional de Química, no qual o tenente-coronel Álvaro de Bittencourt Carvalho, professor do Colégio Militar do Ceará, apresentou a tese A Chimica: Nova Arma de Guerra. Esse foi o primeiro trabalho científico oriundo da linha de ensino militar-bélica do EB acerca do tema, apresentando considerações sobre o desenvolvimento da capacidade de guerra química para a manutenção da soberania nacional.

Em 1926, foi criado o Curso Provisório de Química, no Laboratório Químico-Farmacêutico Militar[3], por influência da MMF, a fim de capacitar oficiais químicos e de saúde na química de guerra. A exemplo do que se deu na França, os médicos e farmacêuticos militares tiveram relevante papel no aprofundamento do estudo científico da guerra química no EB ao longo das décadas de 1920 e 1930.

Foi criada em 1933, no Rio de Janeiro (RJ), a Fábrica de Material Contra Gases, na estrutura do Ministério da Guerra. Inicialmente, esse estabelecimento fabril era destinado à fabricação de meios de proteção química e agentes lacrimogêneos e vomitivos, conforme registrado pelo Relatório do Ministro da Guerra de 1934. No ano seguinte, a Fábrica de Material Contra Gases iria adquirir a capacidade de produzir agentes sufocantes e vesicantes e fazer seu carregamento em munição de artilharia.

Indícios de um ensino formal da guerra química em escolas do EB aparecem em 1934. O artigo Reconhecimento de Grupo, publicado em junho daquele ano na Revista A Defesa Nacional, documenta que a proteção contra gases de combate foi ministrada aos alunos da Escola de Artilharia[4], destinada à formação de sargentos, naquele período. Por sua vez, o Concurso de Admissão à Escola de Estado-Maior[5] daquele ano previu a Guerra Química em seu programa de matérias exigidas, sinalizando uma permeabilidade do tema em todos os escalões da Força.

Ainda em 1934, foi contratada pelo governo brasileiro a Missão de Instrução de Artilharia de Costa (MIAC), junto aos EUA. A MIAC teria a seu encargo, além dos assuntos ligados à Defesa de Costa, conduzir o curso de Guerra Química na Escola Técnica do Exército[6] (RODRIGUES, 2018). A contribuição da MIAC para o robustecimento da doutrina de guerra química no EB ficaria, ainda, materializada pelo Manual de Guerra Química, produzido sob sua orientação, no Centro de Instrução de Artilharia de Costa[7], em 1937.

Registra-se que o Regulamento para a Instrução dos Quadros e da Tropa, aprovado em 1938, normatizou a proteção contra gases como parte integrante da instrução técnica que deveria ser ministrada na formação básica do militar. Dessa forma, consolidou-se a presença permanente do tema da guerra química na doutrina militar terrestre brasileira.

3. Considerações Finais

Em 1942, após sucessivos ataques alemães à Marinha Mercante brasileira, o Brasil ingressou na II Guerra Mundial (II GM) – iniciada em 1939, vindo a alinhar-se e a estreitar laços de cooperação militar com os EUA. No ano seguinte, foi constituída a Força Expedicionária Brasileira (FEB), para atuação combinada com as forças norte-americanas no teatro de operações europeu. Esse fato ensejou a adoção da matriz doutrinária norte-americana para a organização e o adestramento da FEB.

O Centro de Instrução Especializada (CIE)[8] foi criado em 1943, para a formação de especialistas que compuseram os quadros da FEB. O Departamento de Guerra Química do CIE formou oficiais e praças nessa especialidade para atender as necessidades das unidades expedicionárias, adequando-as ao modelo doutrinário norte-americano.

Na historiografia militar nacional, é corrente estabelecer a criação do CIE como o marco embrionário da DQBRN no Brasil. Contudo, verifica-se, pelos registros históricos existentes, que as origens da DQBRN no EB datam do Período Entreguerras (1919-1939), tendo a MMF e a MIAC como precursoras da doutrina de guerra química no âmbito da Força.

A MIAC permaneceu em atividade no Brasil até 1939. Já a MMF encerrou-se em 1940, motivada pela ocupação da França pela Alemanha, no contexto da II GM. Os alicerces da doutrina de guerra química no EB, então lançados, possibilitaram o seu posterior desenvolvimento quando da entrada do Brasil na II GM.

Observa-se que a MMF introduziu e influenciou o estudo científico sobre a guerra química no âmbito do EB, contribuindo decisivamente para o surgimento e os primeiros passos da doutrina de guerra química no EB. A MIAC, por sua vez, serviu para consolidar o trabalho desenvolvido pela MMF ao longo das décadas de 1920 e 1930, robustecendo a doutrina militar terrestre acerca da guerra química.

Por fim, independente do marco temporal que seja adotado para determinar o “ponto zero” da guerra química no Brasil, o EB foi o precursor da capacidade militar brasileira em DQBRN. O pioneirismo terrestre nessa fundamental atividade, mais do que proeminência, impõe a responsabilidade em ser uma força indutora no desenvolvimento da DQBRN para o fortalecimento da expressão militar do poder nacional. 

 

[1] Na historiografia nacional, tornou-se corrente o uso do termo “guerra química” para designar as tarefas relacionadas à DQBRN, particularmente entre as décadas de 1920 e 1980. A transformação da Companhia-Escola de Guerra Química (Cia-Es G Q) em Companhia de Defesa Química, Biológica e Nuclear (Cia DQBN), em 1987, contribuiu para a obsolescência do termo “guerra química”. No presente artigo, empregar-se-ão os termos “guerra química” e “DQBRN” como equivalentes.

[2] A Primeira Conferência Internacional de Haia (1899) constituiu-se em um tratado internacional, firmado por 26 países por ocasião de sua realização, com o intuito de disciplinar juridicamente o uso da força nos conflitos bélicos.

[3] Atual Laboratório Químico-Farmacêutico do Exército (LQFEx).

[4] Nesse período, a formação de sargentos era descentralizada entre as Escolas das Armas, na guarnição do Rio de Janeiro (RJ). Em 1936, esses estabelecimentos de ensino seriam absorvidos pela Escola das Armas, que, posteriormente, se transformaria na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (EsAO).

[5] Atual Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME).

[6] Atual Instituto Militar de Engenharia (IME).

[7] Atual Escola de Artilharia de Costa e Antiaérea (EsACosAAe).

[8] Atual Escola de Instrução Especializada (EsIE).

 

    

 Referências Bibliográficas: 

  1. BELLINTANI, A. I. O Exército Brasileiro e a Missão Militar Francesa: instrução, doutrina, organização, modernidade e profissionalismo (1920-1940). Tese de Doutorado na UNB. Brasília: UNB, 2009. Disponível em: https://repositorio.unb.br/handl e/10482/3811. Acesso em: 7 de setembro de 2022.

  2. BRASIL. Ministério da Guerra. Programa de Certas Matérias Exigidas para o Concurso de Admissão da Escola de Estado-Maior. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 24 de setembro de 1934. Disponível em: http://biblioteca.in.gov.br/documents/2771518/580016/DO_1_19340924_222.PDF/f01c6de8-fa4c-3d10-ac0c-012ee298a488?t=1 575057680960&download=true. Acesso em: 7 de setembro de 2022.

  3. BRASIL. Ministério da Guerra. Relatório apresentado ao presidente da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, 1935. Disponível em: http://memoria.bn.br/pd f/720950/per720950_1934_00001.pdf. Acesso em: 7 de setembro de 2022.

  4. BRASIL. Decreto nº 3.408, de 5 de dezembro de 1938 - Aprova o Regulamento para a Instrução dos Quadros e da Tropa. Coleção das Leis do Brasil, Rio de Janeiro, 31 de dezembro de 1938. Disponível em: https://www.diariodasleis.com.br/legislacao/federal/1 49543-aprova-o-regulamento-para-a-instruuuo-dos-quadros-e-da-tropa.html. Acesso em: 7 de setembro de 2022.

  5. BRASIL. Ministério da Defesa. Exército Brasileiro. Manual de campanha EB70-MC-10.234: defesa química, biológica, radiológica e nuclear nas operações. Brasília: Exército Brasileiro, 2017.

  6. CARVALHO, A. B. Organização da Arma Chimica Entre Nós. Revista A Defesa Nacional, Vol. 10, nº 110/111, 1922. Disponível em: http://www.ebrevist as.eb.mil.br/AD N/article/view/3528/2882. Acesso em: 7 de setembro de 2022.

  7. FERRAZ, P. A Guerra Actual Perante o Direito Internacional. Revista A Defesa Nacional, jun. 1916. Disponível em: http://www.ebrevistas.eb.mil.br/ADN/article/view/3 460/2824. Acesso em: 7 de setembro de 2022.

  8. McCANN, F. Soldados da pátria: história do Exército Brasileiro, 1889-1937. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

  9. PORTO, A. Os gazes asphyxiantes. Revista Maritima Brazileira, jan. 1916. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/008567/36525. Acesso em: 7 de setembro de 2022.

  10. REVISTA A DEFESA NACIONAL. Curso Provisorio de Chimica. Revista A Defesa Nacional, Vol. 13, nº 153, 1926. Disponível em: http://www.ebrevistas.eb.mil.br/ADN/art icle/view/3558/2912. Acesso em: 7 de setembro de 2022.

  11. RICARD, E. P. Reconhecimento de Grupo: trabalho de um comandante de grupo de artilharia divisionária. Tradução de H. B. Fortes. Revista A Defesa Nacional, Vol. 21, n° 241, 134. Disponível em: http://www.ebrevistas.eb.mil.br/ADN/article/view/3632/298 4. Acesso em: 7 de setembro de 2022.

  12. RODRIGUES, F. S. A Política Militar Brasileira: da Missão de Instrução de Artilharia de Costa à Comissão Conjunta Brasil-EUA (1934-1945). Análise Estratégica, Vol. 9, nº 3, 2018. Disponível em: http://ebrevistas.eb.mil.br/CEEEx/AE/arti cle/view/1638. Acesso em: 7 de setembro de 2022.

  13. VELÔZO, F. Síntese histórica do Exército Brasileiro: do alvorecer da República à Era da Missão Militar Francesa. Rio de Janeiro, 27 mai. 2022. Apresentação em pdf. 58 slides, color. Aula da disciplina História Militar da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército.

 

Rio de Janeiro - RJ, 18 de outubro de 2022.


Como citar este documento:
Santos Junior, Luiz Rodrigues dos. Origens da Defesa Química, Biológica, Radiológica e Nuclear no Exército Brasileiro. Observatório Militar da Praia Vermelha. ECEME: Rio de Janeiro. 2022.  

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