A energia verde como meio para a Arábia Saudita expandir sua influência no Cazaquistão e Uzbequistão
Jonathan Christian Dias dos Santos
Mestre em Geografia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
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1. Introdução
Em dezembro de 2015, foi realizada na França a 21ª conferência das Nações Unidas sobre as mudanças climáticas: COP-21. Nesse encontro, foram firmados os acordos de Paris, que dentre os objetivos estabelecidos, havia um que buscava conter os efeitos das mudanças climáticas e limitar o aumento da temperatura terrestre a 1,5º C, abaixo dos 2º C definidos na COP-15, ocorrida em 2009 na Dinamarca (ROVERE, 2016).
Para alcançar essa meta, é necessário que as principais potências reduzam o uso dos combustíveis fósseis, considerado como um dos principais responsáveis pela emissão dos gases que contribuem para o efeito estufa (Dióxido de Carbono, Metano, Óxido Nitroso e Clorofluorcarbonetos). Contudo, o que se tem visto é uma transição global lenta das fontes de energia baseadas no carbono (STRATEGIC COMENTS, 2022).
Nos países da península arábica, cujas economias são centradas na produção e exportação de petróleo (Petrostates), a mudança no paradigma econômico-energético tem gerado desafios e oportunidades de toda ordem. O maior produtor da região é a Arábia Saudita, que em 2021, produziu 10.954 barris por dia (BRITISH PETROLEUM, 2022). Como se não bastasse, o país ainda possui os custos de extração mais baixos e a maior capacidade de produção excedente de petróleo bruto de todos os membros da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) (RAZEK & MCQUINN, 2021).
Tabela 1 - Produção de petróleo no Oriente Médio em 2021
Países do Oriente Médio |
Produção em milhares de barris por dia |
Arábia Saudita |
10.954 |
Iraque |
4.102 |
Emirados Árabes Unidos |
3.668 |
Irã |
3.620 |
Kuwait |
2.741 |
Catar |
1.746 |
Omã |
971 |
Fonte: BRITISH PETROLEUM, 2022.
Os sauditas, atentos às mudanças na agenda política do clima provenientes dos acordos de Paris, aprovaram em junho de 2016 o Programa Nacional de Transformação. Também conhecido como Saudi Vision 2030, o referido programa visa diversificar a economia saudita por meio de atividades e alternativas comerciais. O foco do programa está centrado na possibilidade do país se tornar um hub logístico e econômico entre a Ásia, Europa e África. Para tanto, a Arábia Saudita tem privatizado importantes setores públicos, da mesma forma que também tem envidado esforços no sentido de atrair investimentos de diversas partes do mundo. Tudo isso com a finalidade de aumentar o papel do setor privado em sua economia (BRADSHAW et al., 2019)[1].
Além da ideia central em tornar a economia saudita cada vez mais independente do petróleo e de fontes de energia não-renováveis, o Saudi Vision 2030 também prepara o país para uma transição energética e econômica mais sustentável. Dessa maneira, empresas do ramo de energia na Arábia Saudita ganham apoio financeiro para o desenvolvimento de projetos de energia verde em escala nacional e internacional, postura que tem permitido a Arábia Saudita expandir sua influência para setores que trabalham em fontes de energia não-renováveis.
Em vista disso, este artigo busca analisar o comportamento da Arábia Saudita no cenário de transição da matriz energética global e como o Cazaquistão e o Uzbequistão, dois países da Ásia Central, têm sido utilizados como plataformas para projeção de poder e influência dos sauditas nesse recente movimento de mudança. Desta forma, o presente artigo está estruturado da seguinte maneira: primeiro, são apresentados os caminhos pelos quais a Arábia Saudita financia projetos de energias verdes. Em seguida, é apresentada a atuação de Riade no financiamento de projetos de infraestrutura energética renovável, com foco no Cazaquistão e no Uzbequistão.
2. “Follow the Money”: qual é a origem do dinheiro que financia a transição energética na Arábia Saudita?
A Arábia Saudita, desde meados do século XX, é o maior e mais importante ator geopolítico do Oriente Médio e um dos mais importantes atores do mundo. Em uma economia mundial delineada pela indústria e com alto consumo de recursos naturais não-renováveis, como o petróleo, a Arábia Saudita sempre manteve grande prestígio em escala global devido às suas vastas reservas petrolíferas - aproximadamente 21% das reservas de petróleo cru do mundo estão localizadas em território saudita (ORGANIZATION OF THE PETROLEUM EXPORTING COUNTRIES, 2023).
A exploração de petróleo na Arábia Saudita começou em 1923, através da empresa britânica Eastern and General Syndicate Ltd. Anos depois, em 1938, o país descobriu reservas em quantidade o suficiente para serem comercializadas. Na década de 1970, o Produto Interno Bruto (PIB) saudita chegou a ser 64% composto pelas vendas desse combustível fóssil (HITTI; ABED, 1974). A importância do petróleo na economia do país se sucedeu ao longo dos anos, com uma queda no começo do século XXI[2], como pode ser visto no gráfico a seguir:
Gráfico 1 - Participação percentual da renda do petróleo no PIB saudita (1970-2020)
Fonte: THE WORLD BANK, 2023.
Com os altos rendimentos provenientes da venda de petróleo, os Petrostates criaram fundos soberanos para acumular os lucros obtidos através de ativos econômicos controlados pelos Estados. A principal premissa desses fundos é de que o capital acumulado seja utilizado em prol das gerações futuras, com foco voltado para o financiamento de projetos de desenvolvimento elaborado pelos governos e/ou para ser utilizado como reserva monetária dos países em momentos de crise econômica.
Apesar dos períodos de flutuação econômica ocasionados pela volatilidade do mercado energético, resultante de conflitos regionais, procura e demanda, e sanções econômicas, a Arábia Saudita criou seu fundo soberano em 1971: o Fundo de Investimento Público. Segundo o Allocation And Impact Report, o fundo soberano saudita é o principal meio que tem sido utilizado para financiar iniciativas e parcerias estratégicas, tanto na Arábia Saudita, quanto em outros países (PUBLIC INVESTMENT FUND, 2023).
A partir de 2014, o Fundo de Investimento Público saudita gradativamente tornou-se uma importante ferramenta para implementar os projetos de transformação nacional, em especial o Saudi Vision 2030. Segundo o documento citado no parágrafo anterior, até setembro de 2023, o fundo saudita tinha uma carteira verde avaliada em pouco mais de US$ 11 bilhões de dólares com projetos em construção e questões operacionais. Ou seja, nota-se que os proventos obtidos com o petróleo ao longo dos anos são importantes para os sauditas alcançarem dois objetivos: a) financiar as ambições econômicas, sociais e iniciativas ambientais do Saudi Vision 2030, incluindo a meta de zerar as emissões de gases de efeito estufa até 2060; e b) subsidiar as estratégias geopolíticas da Arábia Saudita, diante da crescente conjuntura da energia verde e na mudança da matriz energética mundial.
No trecho a seguir, será apresentado como o financiamento do Fundo de Investimento Público da Arábia Saudita tem sido empregado para amplificar a influência geopolítica do país no segmento da energia verde, adotando como estudo de caso a atuação saudita em dois países da Ásia Central: o Cazaquistão e o Uzbequistão.
3. A Arábia Saudita e o desenvolvimento da energia verde no Cazaquistão e Uzbequistão
O Cazaquistão e o Uzbequistão, os maiores países em termos econômicos, populacionais e territoriais da Ásia Central, têm vastas reservas de recursos naturais não-renováveis. No Uzbequistão, por exemplo, está localizada Muruntau, a segunda maior mina de ouro do mundo. O Cazaquistão, por sua vez, detém grandes reservas de petróleo e gás, além de ser o maior produtor de urânio do Mundo[3].
Dessa maneira, uzbeques e cazaques têm se tornado alternativas para o fornecimento de recursos com o propósito de gerar energia para países como França (fornecimento de urânio após as tensões geopolíticas nas antigas colônias francesas no continente africano) e Alemanha (fornecimento de petróleo cazaque para os alemães).
Os sauditas, por outro lado, não estão interessados exclusivamente nos recursos não-renováveis. O Fundo de Investimento Público da Arábia Saudita tem firmado acordos de investimento e cooperação para o desenvolvimento da capacidade de geração de energia verde no Cazaquistão e Uzbequistão.
A ACWA Power, empresa privada com 50% de participação do Fundo de Investimento Público saudita, tem realizado investimentos bilionários no Cazaquistão e no Uzbequistão. Os projetos da empresa estão voltados para o desenvolvimento de parques eólicos, usinas de hidrogênio verde e energia solar.
Em 2023, a ACWA Power investiu US$ 88 milhões no Uzbequistão para a construção de uma usina destinada à produção de hidrogênio verde em Chirchik, próximo à Tashkent. A usina será administrada pela joint venture ACWA-UKS GH2, com a ACWA detendo 80% da participação e a estatal uzbeque Uzkimyosanoat, os 20% restantes. Além disso, a ACWA Power alocou também US$ 2,4 bilhões para a construção do parque eólico de Nukus, na região do Caracalpaquistão - Uzbequistão, que deve gerar 1.500 megawatts de energia elétrica, capaz de suprir 1,65 milhão de residências, compensando 2,4 milhões de toneladas de emissões de carbono por ano. O governo uzbeque e a ACWA Power firmaram um acordo de 25 anos pela compra de energia anual, o desenvolvimento, a construção e operação do parque.
Já no Cazaquistão, a ACWA Power estreou no país com um investimento de US$ 1,5 bilhão para o desenvolvimento de construção de um parque eólico. O acordo foi assinado em março de 2023. Contudo, a construção do parque, a princípio na região de Zhetysu, será iniciada apenas em 2025 e finalizada em 2029. A ideia é a de que esse projeto possa gerar 1 gigawatt de energia elétrica para o país. Além disso, já no apagar das luzes de 2023, a comissão intragovernamental cazaque-saudita se reuniu em Riade para discutir um possível investimento de US$ 10 bilhões em projetos de energia limpa no Cazaquistão. As conversas devem se desenvolver ao longo de 2024 entre os dois países.
4. Conclusão
Segundo a Agencia Internacional de Energia (AIE), o uso do petróleo para o transporte deverá entrar em declínio após 2026. Entretanto, a sua utilização em outros setores industriais poderá atingir o seu pico em 2028. Contudo, a energia limpa tem crescido rapidamente desde o período pós-pandêmico (IEA, 2023).
Os sauditas não querem perder sua influência e também os seus lucros oriundos dos recursos naturais. Mesmo que as atuais tendências não apontem para a desvalorização da energia “suja” nas próximas décadas, os sauditas precisarão ter um plano b como fonte de renda. Dessa forma, tem se notado que a Arábia Saudita está orientando os recursos financeiros obtidos do petróleo para investir e estabelecer novas influências no setor de energia limpa, por meio de parcerias estratégicas e grandes investimentos, tanto internos, quanto externos, como observado nos casos do Cazaquistão e do Uzbequistão.
Com isso, percebe-se que a intenção de Riade é aumentar de forma progressiva os investimentos não apenas nestes dois países, mas na região de forma geral, para fazer frente à empresa Masdar, dos Emirados Árabes Unidos, que tem uma atuação mais ampla e capilarizada na Ásia Central. E assim, os sauditas utilizam a mesma tática para expandir a sua influência no continente africano, como na África do Sul e Senegal, e em outras partes da Ásia, como na Tailândia, Filipinas e Indonésia
[1] A diversificação da economia saudita não é exatamente uma novidade. Ao longo dos planos de desenvolvimento econômico propostos pelo governo desde os anos 1970, a diversificação econômica do país surge como o principal objetivo (ALBASSAM, 2015).
[2] A partir do século XXI, outras atividades passaram a ter grande importância para a economia saudita. Setores como a construção, transporte, finanças e turismo começaram a compor o PIB do país. Por isso, observa-se uma diversificação e uma redução percentual do petróleo na série histórica (GENERAL AUTHORITY FOR STATISTICS, 2022).
[3] Disponível em: https://www.bloomberg.com/news/articles/2023-09-29/kazakhstan-world-s-top-uranium-producerw ins-partial-victory-at-regulator. Acesso em: 30 de dezembro de 2023.
Referências Bibliográficas:
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ALBASSAM, Bassam A. Economic diversification in Saudi Arabia: Myth or reality? Resources Policy, Vol. 44, p. 112-117, 2015.
-
BRADSHAW, M. et al. Preparing for the new oil order? Saudi Arabia and Russia. Energy Strategy Reviews, Vol. 26, p.1 -12, 2019.
-
BRITISH PETROLEUM. BP STATISTICAL REVIEW OF WORLD ENERGY. Disponível em: www.bp.com/content/dam/bp/business-sites/en/global/corporate/pdfs/energy-economics/statistica l-review/bp-stats-review-2022-full-report.pdf. Acesso em: 28 de dezembro de 2023.
-
GENERAL AUTHORITY FOR STATISTICS. Gross Domestic Product Fourth Quarter of 2022. General Authority for Statistics, 2022. Disponível em: www.stats.gov.sa/sites/default/files /GDP%20Q042022E_1.pdf. Acesso em: 29 de dezembro de 2023.
-
HITTI, Said; ABED, George T. The Economy and Finances of Saudi Arabia. IMF Staff papers, Vol. 21, nº. 2, p. 247-306, 1974.
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INTERNATIONAL ENERGY AGENCY - IEA. Global Energy Transitions Stocktake: Tracking progress toward the Paris Agreement. IEA, 2023. Disponível em: www.iea.org/topic s/global-energy-transitions-stocktake?gad_source=1&gclid=CjwKCAiAnL-BhBnEiwAJRGigi3A MD4tqHq1bZAp9TpctkEMssff1ZzC1T0G1KbkQZwkUXIiBAn5OhoCRjwQAvD_BwE. Acesso em: 30 de dezembro de 2023.
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ORGANIZATION OF THE PETROLEUM EXPORTING COUNTRIES. OPEC Share of World Crude Oil Reserves - 2022. Organization of the Petroleum Exporting Countries, 2023. Disponível em: www.opec.org/opec_web/en/data_graphs/330.htm. Acesso em: 30 de dezembro de 2023.
-
PUBLIC INVESTMENT FUND. Allocation and Impact Report, 2023. Public Investment Fund, 2023. Disponível em: www.pif.gov.sa/CPM%20Files%20EN/PIF%20Allocation%20and% 20Impact%20Report.pdf. Acesso em: 29 de dezembro de 2023.
-
RAZEK, H.H.A.; MCQUINN, B. Saudi Arabia's currency misalignment and international competitiveness, accounting for geopolitical risks and the super-contango oil market. Resources Policy, Vol. 72, p. 1-28, 2021.
-
ROVERE, E. L.L. O Brasil e a COP-21. In: VICENTE, M.. Cadernos Adenauer XVII, nº 2. Mudanças climáticas: o desafio do século, p. 7-8, 2016. Rio de Janeiro: Fundação Konrad Adenauer, 2016.
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STRATEGIC COMMENTS. The Arab Gulf states and the geopolitics of the energy transition. International Institute for Strategic Studies, 2022. Disponível em: https://www.iiss.or g/publications/strategic-comments/2022/the-arab-gulf-states-and-the-geopolitics-of-the-energy-tr ansition/. Acesso em: 29 de dezembro de 2023.
-
THE WORLD BANK. Oil rents (% of GDP) - Saudi Arabia. The World Bank, 2023. Disponível em: https://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.PETR.RT.ZS?locations=SA. Acesso em: 28 de dezembro de 2023
Rio de Janeiro - RJ, 01 de fevereiro 2024.
Como citar este documento:
Santos, Jonathan Christian Dias dos. A energia verde como meio para a Arábia Saudita expandir sua influência no Cazaquistão e Uzbequistão. Observatório Militar da Praia Vermelha. ECEME: Rio de Janeiro. 2024.
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