Ir direto para menu de acessibilidade.
Portal do Governo Brasileiro
Início do conteúdo da página

O novo raiar do Sol? A evolução na política de defesa do Japão e as transformações geopolíticas do Leste Asiático

Publicado: Quarta, 31 de Mai de 2023, 01h01 | Última atualização em Quarta, 31 de Mai de 2023, 08h59 | Acessos: 573

 

Alana Camoça Gonçalves de Oliveira
 Doutora em Economia Política Internacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Pós-Doutoranda em Relações Internacionais na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Vice-Coordenadora do LabChina (UFRJ) e Especialista Residente no ObservaChina

.

Em 2022, o governo japonês lançou a revisão de documentos estratégicos que reforçam o debate sobre as percepções do Japão acerca das transformações no seu entorno próximo e a necessidade de maior autonomia em relação à sua segurança, o que tem fortalecido os ímpetos em prol de uma maior militarização do arquipélago. Os três novos documentos estratégicos lançados em dezembro de 2022 foram: (a) a Estratégia de Segurança Nacional (NSS)[1], (b) a Estratégia de Defesa Nacional[2] (NDS) e (c) Defense Buildup Program (DBP)[3]. Tais documentos somam-se às publicações anuais do Livro Branco (Defesa) e Azul (Diplomático) do país em referência aos anos de 2021-2022, onde estão expressas as preocupações nipônicas com o seu entorno regional, considerado cada vez mais severo.

Os documentos oficiais e de defesa do Japão refletem preocupações compartilhadas pelo país diante das mudanças no equilíbrio de poder global. No Livro Branco de 2022, Kishi Nobuo, então Ministro da Defesa, expressa que a “desobediência à ordem internacional não é apenas um problema da Europa. À medida que a competição estratégica entre nações se torna mais evidente em meio às mudanças no equilíbrio de poder global, a ordem existente está sendo exposta a sérios desafios, especialmente na região do Indo-Pacífico, que está no centro dessa competição” (MOD, 2022, p.3, tradução nossa).

Ademais, ressaltam-se as preocupações nipônicas acerca das ações chinesas nos mares próximos, em relação à Taiwan e também com a Coreia do Norte, com o teste de mísseis, e a ação russa na Ucrânia, com a continuidade da guerra na Eurasia.

Nesse sentido, a intensificação de tensões e mudanças na balança ofensiva-defensiva dos países internacionalmente vem transformando, ou melhor, acelerando as mudanças japonesas no que tange às suas capacidades de defesa (GREEN, 2003; PYLE, 2008). De fato, desde o fim da Guerra Fria, em meio a uma multipolaridade emergente no tabuleiro regional do Leste Asiático, criaram-se expectativas de que o Japão abraçaria por completo o seu status de potência, o que consequentemente o levaria a aumentar suas capacidades militares (WALTZ, 1993). Em certa medida, por mais que a evolução das capacidades de defesa do Japão tenham se desenvolvido, mesmo que lentamente desde o fim da ocupação das Forças Aliadas (1945-1951), os anos 1990s foram cruciais para, talvez, a realização das primeiras grandes transformações na política de defesa do Japão em sua dimensão externa.

Na Guerra do Golfo (1990-1991), o Japão foi pressionado por países do sistema internacional para que ajudasse com os custos e com o possível envio de recursos humanos na guerra. Entretanto, o que os países e, inclusive, seu aliado preferencial, os Estados Unidos observaram foi um Japão executor de uma “diplomacia de pagamentos”, sem o envio de tropas e recursos humanos efetivos (TOGO, 2005). O Japão foi criticado pela comunidade internacional, pois esperava-se que a segunda maior economia do mundo arcasse de forma mais ampla com os custos de uma “ordem mundial” mais estável e pacífica.

Dessa forma, a pressão internacional, sobretudo, do seu aliado estratégico, os Estados Unidos, impactou para que nos anos seguintes gradativamente o Japão aprovasse leis que flexibilizaram o envio de recursos humanos para fins pacíficos, por exemplo, operações de Paz. As Forças de Autodefesa (FAD) do Japão passaram a ter um maior papel na arena internacional e somente na década de 1990 participaram em missões de paz no Camboja, Timor-Leste e nas Colinas de Golan (TOGO, 2005).

No início do século XXI, também houve uma guinada no desenvolvimento na política de defesa e segurança japonesa, durante o governo do primeiro-ministro Koizumi Junichiro (HUGHES, 2017), em um momento de tensões com a Coreia do Norte. Um exemplo desse recrudescimento militar ocorreu em 2003, quando o gabinete emitiu uma declaração afirmando que havia decidido desenvolver um sistema de defesa de mísseis balísticos como uma medida defensiva contra as ameaças norte coreanas (TOGO, 2005; PYLE, 2008). Com o Ballistic Missile Defense (BMD), o Japão precisou reavaliar a sua posição a respeito do uso do espaço e da exportação de tecnologia militar.

Na segunda década do século XXI, a ascensão de Shinzo Abe (2012-2020) ao poder evidenciou o recrudescimento militar japonês, na medida em que a liderança japonesa passou a entoar a necessidade de uma maior participação do país internacionalmente, discursar acerca de uma possível flexibilização da Constituição e da necessidade de modificar interpretações para que o país pudesse agir mais prontamente em caso de riscos à sua sobrevivência (e, em certa medida, para proteção de seus aliados) (HUGHES, 2016).

A ascensão ao poder de Shinzo Abe, figura nacionalista e com fortes laços com o debate em relação ao poder militar, deve ser analisada também em meio à um cenário crescente de percepção de ameaças em relação aos seus vizinhos e, principalmente, aos receios quanto à confiabilidade da aliança com os Estados Unidos. Em relação aos Estados Unidos, as preocupações do Japão com a aliança são centrais. Historicamente, o arquipélago atuou como aliado estratégico de Washington na Ásia durante a Guerra Fria e até hoje o Japão é o principal país receptor de bases e tropas estadunidenses em território nacional.

Figura 1 - Presença dos Estados Unidos pelo mundo

 novo raiar sol evolucao politica defesa japao transformacoes geopoliticas leste asiatico fig1

Fonte: AL JAZEERA, 2021.

A aliança nipo-americana tem sua origem no fim da ocupação das Forças Aliadas em 1951 e no Tratado de Paz de São Francisco de 1951, sendo revisado no Tratado de Segurança Mútua em 1960. O tratado estabelece uma aliança de segurança entre os dois países, comprometendo-se a se consultarem e a cooperarem em caso de ameaças à paz e à segurança. O Japão é dependente dessa aliança para a sua proteção, sendo acusado constantemente de estar sob proteção demasiada do guarda chuva estadunidense. Não por acaso, ações dos Estados Unidos reivindicando maiores ações japonesas em relação à aliança e possíveis crises no país norte-americano trazem receios à confiança e à própria manutenção do tratado. Desde 2012 essa preocupação está mais visível em um cenário de intensa competição e, até mesmo, de transição internacional. Os temores de ser abandonado por Washington têm crescido cada vez mais, especialmente desde o segundo mandato da administração Obama e os resultados da política do Pivô para a Ásia, bem como com a maior assertividade da China em tabuleiros marítimos próximos, indicando transformações na distribuição de poder e no status quo regional (GREEN, 2017; HUGHES, 2017).

A militarização japonesa tornou-se ainda mais evidente após a campanha presidencial de Donald Trump, quando ele afirmou que a aliança nipo-americana é "muito cara"[4] e após as críticas de Trump sobre o custo da aliança antes da cúpula do G20. Naquela ocasião, Trump disse que quase todos os países do mundo se aproveitavam dos Estados Unidos. Nominalmente citou o Japão e o Tratado de 1960, assimétrico, em que o Japão caso fosse atacado, os Estados Unidos deveriam lutar “Terceira Guerra Mundial”. Mas no caso contrário, Tóquio poderia não auxiliar Washington[5]. De fato, essas declarações frequentes de Donald Trump em relação à aliança e às exigências para que o Japão comprasse mais equipamentos militares dos Estados Unidos pressionaram Tóquio a aumentar suas capacidades militares.

Correlacionado, em 2015, Shinzo Abe impulsionou leis de segurança e reinterpretou o direito à defesa coletiva por parte do Japão. Em resumo, a legislação de Paz e Segurança implementada empoderou o Japão a exercer a autodefesa coletiva caso ocorra um ataque armado contra um aliado do Japão e represente uma clara ameaça ao país. Um dos objetivos da lei era fortalecer o compromisso do Japão com os Estados Unidos, na medida em que a reinterpretação permitiu que o arquipélago pudesse agir em apoio a um aliado em caso de percepção de ameaça à sua própria sobrevivência (SALTZMAN, 2015).

Também nesse cenário, o Japão buscou promover uma política externa mais ativa, intitulada "Contribuição Pró-ativa para a Paz". Essa política externa é amplamente atribuída à percepção do Japão sobre a geopolítica da Ásia-Pacífico e o interesse por ampliar suas relações com países da região, sobretudo aqueles que enfrentam disputas territoriais com a China. Não por acaso, nos últimos anos, o Japão tem procurado estreitar laços com países do Sudeste Asiático (INOGUCHI; PANDA, 2018) em matéria de cooperação em defesa e por meio da realização, por exemplo, de treinamentos militares. Além disso, é possível notar a emergência na região de ações que visam a demonstração de poder e o aumento da vigilância. Em relação a esse último ponto, as reuniões e treinamentos promovidos pelos países do QUAD (composto por Japão, Índia, Austrália e Estados Unidos).

Tais pontos estão relacionados à estratégia de um Indo-Pacífico livre e aberto (‘Free and Open Indo-Pacific Strategy’) promovido pelo governo japonês. A visão de FOIP (na sigla em inglês) é baseada no conceito de garantir a paz e a prosperidade de toda a região do Indo-Pacífico e, consequentemente, do mundo, por meio da realização de uma ordem livre e aberta baseada no Estado de direito na região (MOD, 2022). O aumento do ativismo japonês também pode ser observado recentemente com a notícia de que o Ministro das Relações Exteriores do Japão, Yoshimasa Hayashi, confirmou que existem planos para a abertura de um escritório da OTAN no Japão[6], o que representa o interesse do arquipélago em aliar-se com os países da União Europeia e com os Estados Unidos em meio ao aumento de tensões na Eurásia. Além disso, existem indícios de aproximação do Japão com a Coreia do Sul, a despeito dos problemas históricos entre os dois[7].

Portanto, é evidente que à medida que as tensões no Leste Asiático e no mundo crescem, o Japão tem se empenhado em fortalecer suas capacidades de defesa, como se pode observar durante o governo de Fumio Kishida. Como apresentado nas primeiras linhas do presente ensaio, a renovação de documentos de defesa do Japão indicam que o país está disposto a perseguir um caminho de recrudescimento militar e tem como principal, mas não única, a preocupação com a China. A NSS descreve a China como sendo o maior desafio estratégico (‘greatest strategic challenge’) para o arquipélago e para a comunidade internacional, assim como Coreia do Norte e Rússia.

Para ilustrar o entorno, abaixo é possível notar: (i) o mapeamento das incursões chinesas nas proximidades das ilhas Senkaku/Diaoyu (figura - 2), (ii) a comparação dos gastos militares dos principais países entre 2000 e 2020 (figura - 3), onde é possível observar o aumento dos gastos chineses, e (iii) o lançamento de testes de mísseis norte coreanos (figura - 4). Todos eles impactam a percepção do Japão sobre sua necessidade em desenvolver capacidades defensivas. Não por acaso, destaca-se o desejo ambicioso do Japão em romper o limite tradicional de gastos de até 1% do PIB em seu orçamento de defesa. Sob a administração Kishida, há a intenção de aumentar o orçamento de defesa para 2% do PIB nos próximos cinco anos[8]. Esses aspectos apontam para uma maior militarização do Japão, visando o fortalecimento de suas capacidades de contra-ataque e defesa, tanto em âmbito marítimo quanto aéreo.

Figura 2 - Atividades realizadas pela Guarda Costeira da China próximo às ilhas Senkaku

novo raiar sol evolucao politica defesa japao transformacoes geopoliticas leste asiatico fig2

Fonte: MOD, 2022.

 

Figura 3 - Gastos de defesa entre 2000 e 2020 em USD milhões (países selecionados)

novo raiar sol evolucao politica defesa japao transformacoes geopoliticas leste asiatico fig3 

Fonte: SIPRI, 2022.

 

Figura 4 - Testes nucleares norte-coreanos no século XXI

novo raiar sol evolucao politica defesa japao transformacoes geopoliticas leste asiatico fig4

Fonte: MOD, 2022.

 

Por fim, cabe ressaltar que evidenciar o aumento das capacidades militares japonesas não significa a volta de um “militarismo”, como ocorrido durante o passado imperial japonês, mas demonstra que o país tem agido de forma realista em um cenário internacional e, sobretudo, regional em crescente tensão. As transformações políticas de defesa do Japão refletem a evolução da geopolítica asiática e têm importantes implicações para o futuro não somente da região, como do mundo.

O Japão tem buscado maior autonomia e alternativas para a sua defesa e segurança, por isso Tóquio tem fortalecido suas capacidades militares, buscado parcerias estratégicas com outros países e reafirmado seu compromisso com a aliança com os Estados Unidos. Ainda assim, o futuro da geopolítica asiática permanece incerto. Nesse cenário dinâmico do Leste Asiático, o Japão terá que continuar adaptando suas políticas de defesa e abraçando o seu, relativamente “sonolento”, realismo.

 

[1] Ministério da Defesa do Japão. "National Security Strategy of Japan - 2022”. Disponível em: https://ww w.cas.go.jp/jp/siryou/221216anzenhoshou/nss-e.pdf. Acesso em: 22 de maio de 2023.

[2] Ministério da Defesa do Japão. "National Defense Strategy - 2022”. Disponível em: https://www. mod.go.jp/j/approach/agenda/guideline/strategy/pdf/strategy_en.pdf. Acesso em: 22 de maio de 2023.

[3] Ministério da Defesa do Japão. “Defense Buildup Program - 2022”. Disponível em: https://www.mod.go. jp/j/approach/agenda/guideline/plan/pdf/program_en.pdf. Acesso em: 22 de maio de 2023.

[4] Disponível em: https://www.japantimes.co.jp/news/2016/08/06/national/politics-diplomacy/trump-rips-u-s-defense-japan-one-sided-expensive/. Acesso em: 22 de maio de 2023.

[5] Disponível em: https://www.reuters.com/article/us-g20-summit-trump-japan-idUSKCN1TS057. Acesso em: 22 de maio de 2023.

[6] Disponível em: https://edition.cnn.com/2023/05/10/asia/japan-foreign-minister-hayashi-nato-intl-hnk/ind ex.html. Acesso em: 22 de maio de 2023.

[7] Disponível em em: https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2023/05/premie-do-japao-lamenta-violencia-hi stori ca-contra-sul-coreanos-em-busca-de-alianca-anti-china.shtml. Acesso em: 22 de maio de 2023.

[8] Disponível em: https://www.japantimes.co.jp/news/2022/11/29/national/japan-kishida-defense-spending-gdp/. Acesso em: 22 de maio de 2023..

 

 

 Referências Bibliográficas: 

  1. AL JAZEERA. Infographic: US military presence around the world. Al Jazeera, 2021. Disponível em: https://www.aljazeera.com/news/2021/9/10/infographic-us-military -prese nce-around-the-world-interactive. Acesso em: 10 de janeiro de 2022.

  2. GREEN, Michael J. Japan’s Reluctant Realism - Foreign Policy Challenges in an Era of Uncertain Power. Nova Iorque: Palgrave, 2003.

  3. GREEN, Michael J. By More than Providence: Grand Strategy and American Power in the Asia – Pacific Since 1783. Nova Iorque: Columbia University Press, 2017.

  4. HUGHES, Christopher. Japan’s ‘Resentful Realism’ and Balancing China’s Rise. The Chinese Journal of International Politics, Vol. 9, nº.1, p. 109-150, 2016.

  5. HUGHES, Christopher. Japan's Grand Strategic Shift. From the Yoshida Doctrine to an Abe Doctrine? In: TELLIS, Ashley et al. Power, ideas, and military strategy in the Asia-Pacific - Strategic Asia 2017-18, p.73-105, 2017. Washington: National Bureau of Asian Research, 2017.

  6. INOGUCHI, Takashi; PANDA, Ankit. Japan’s Grand Strategy in the South China Sea. Principled Pragmatism. In: CORR, Anders. Great Powers, Grand Strategies: The New Game in the South China Sea, Cap 7, 2018. Annapolis: Naval Institute Press, 2018.

  7. MOD. Ministério da Defesa. Livro Branco de Defesa do Japão - 2022. Tóquio: Ministério da Defesa do Japão, 2022.

  8. PYLE, Kenneth B. Japan Rising: the resurgence of Japanese power and purpose. Nova Iorque: PublicAffairs, 2008.

  9. SALTZMAN, Ilai. Growing Pains: Neoclassical Realism and Japan's Security Policy Emancipation. Contemporary Security Policy, Vol. 36, nº 3, p. 498-527, 2015.

  10. TOGO, Kazuhiko. Japan’s Foreign Policy, 1945-2003 - The Quest for a Proactive Policy. Leiden: Brill Academic Pub, 2005.

  11. WALTZ, Kenneth N. The New World Order. Millennium. Journal of International Studies, Vol. 22, n° 2, p.187-195, 1993.

 

Rio de Janeiro - RJ, 31 de maio de 2023.


Como citar este documento:
Oliveira, Alana Camoça Gonçalves de. O novo raiar do Sol? A evolução na política de defesa do Japão e as transformações geopolíticas do Leste Asiático. Observatório Militar da Praia Vermelha. ECEME: Rio de Janeiro. 2023.  

.

Fim do conteúdo da página