A crise haitiana e o desafio das operações de paz no século XXI
Guilherme Moreira Dias
Professor-Doutor do Instituto Meira Mattos da ECEME
O recrudescimento da violência política e das tensões sociais no Haiti nos últimos meses, culminando com o assassinato do presidente Jovenel Moise, reforça o argumento crítico em relação a perenidade das ações de segurança empreendidas pela Organização das Nações Unidas a partir das operações de paz. O país caribenho passou cerca de 2/3 dos últimos 30 anos convivendo com a presença de missões tradicionais1, missões de suporte2, missões de transição3 e missões de estabilização4, sem que tais ações se convertessem em uma paz duradoura. A continuidade de um ciclo de instabilidade, intervenção, estabilização, desmobilização e escalada de crises sociopolíticas que levam o país de volta à instabilidade não são uma exclusividade do Haiti como é possível observar em outras regiões que foram objeto de operações de paz das Nações Unidas a partir de 1991.
O debate acerca da incapacidade de construir um padrão de estabilidade que se consolide no médio/longo prazo reflete o grande desafio das operações de paz no pós-Guerra Fria. Desde que sua ação passou a estar mais vinculada ao enfrentamento de crises intraestatais com base identitária ou com raízes conflituosas profundamente assentadas na desigualdade e na toxicicidade de legados coloniais, forjados a partir de violência, exploração e desumanização de determinados grupos de indivíduos, é possível observar reiterados movimentos de reestruturação, redefinição dos marcos normativos das operações de paz, inclusive inclinando-se a prescindir da tradicional tríade que a norteou desde sua origem: consentimento, imparcialidade e uso da força apenas em situações de extremo risco.
O desafio de manter a paz não é novo e tem se tornado cada vez mais complexo à medida em que as capacidades para gerar violência, sofrimento e morte a populações civis se difundem de modo cada vez mais célere e as feridas abertas pela desigualdade, pela pobreza e pela incapacidade (ou desinteresse) de assegurar o pleno respeito aos Direitos Humanos se acentuam. Experiências como a MINUSTAH e outras missões de estabilização ainda em funcionamento mostram que o uso das capacidades militares pode oferecer algum tipo de estabilidade temporária, reconhecido inclusive pela própria ONU ao avaliar a MINUSTAH5 como bem sucedida do ponto de vista do cumprimento do mandato estabelecido pelo Conselho de Segurança, mas, sem mecanismos que lidem com as motivações mais profundas dos conflitos e com a livre circulação dos meios que os potencializam, esta tênue estabilidade não se sustenta. O que se vê hoje pouco tempo após o encerramento das missões e o que se continuará vendo no futuro será a repetição de ciclos de instabilidade com impactos crescentes sobre vidas humanas e a gradual perda de credibilidade e relevância de um instrumento relevante de atuação multilateral em questões de segurança internacional.
1 As missões tradicionais de peacekeeping são caracterizadas por atribuições como a separação de partes em conflito e o monitoramento de acordos de cessar-fogo. A partir dos anos 1980 novas atribuições foram sendo incorporadas tais como o acompanhamento de processos eleitorais, o combate a violações de Direitos Humanos, entre outras, iniciando o processo de alargamento do escopo das operações de paz.
2 Missões de suporte dizem respeito a presença de corpo técnico das Nações Unidas para apoiar o governo local em questões específicas como a reestruturação das capacidades do poder judiciário, dos aparatos policiais, etc.
3 As missões de transição são responsáveis pelas ações de retomada da normalidade a partir do início da desmobilização dos contingentes militares e civis vinculados as operações de paz.
4 As missões de estabilização são estabelecidas para atuar em meio a conflitos em curso, com mandatos que ressaltam o papel dos capacetes azuis na proteção do governo – apoiando as autoridades locais, e da população. Ao mesmo tempo, trazem a prerrogativa de maior robustez na dimensão militar, colocando em xeque os princípios da imparcialidade e das restrições ao uso da força.
5 Entre as mais de 50 participações brasileiras em Operações de Paz destacam-se o desdobramento do “Batalhão Suez” ao abrigo da UNEF I, a MINUSTAH com o comando militar da missão e o maior contingente já enviado para uma única Operação de Paz, bem como a Força Tarefa Marítima da UNIFIL, última participação do país, concluída em 2020 (ANDRADE ET AL, 2019). As visitas de certificação das Nações Unidas no Brasil nos meses de junho e julho de 2021 reforçam o reconhecimento da contribuição brasileira para Operações de Paz e a demanda reiterada para que o país retome seu engajamento em tais atividades (GOVERNO DO BRASIL, 2021).
Rio de Janeiro - RJ, 02 de agosto de 2021.
Como citar este documento:
DIAS, Guilherme Moreira. A crise haitiana e o desafio das operações de paz no século XXI. Observatório Militar da Praia Vermelha. ECEME: Rio de Janeiro. 2021.
Referência:
- ANDRADE, I. O., HAMANN, E. P. e SOARES, M. A. A Participação do Brasil nas Operações de Paz das Nações Unidas: evolução, desafios e oportunidades. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2019.
- DE CONING, Cedric. What does ‘stabilisation’ mean in a UN Peacekeeping context? Complexity 4 Peace Operations. (Site pessoal). 19 jan., 2015. Disponível em: <https://cedricdeconing.net/2015/01/19/what-does-stabilisation-mean-in-a-un-peacekeeping-context/>. Acesso em: 28 de julho de 2021.
- GOVERNO DO BRASIL. Tropas de paz das Forças Armadas passam por inspeção da ONU. Disponível em: <https://www.gov.br/pt-br/noticias/justica-e-seguranca/2021/07/tropas-de-paz-das-forcas-armadas-passam-por-inspecao-da-onu>. Acesso em 29 de julho de 2021.
- KENKEL, K. M. Five generations of peace operations: from the thin blue line to painting a country blue. Revista Brasileira de Política Internacional, v.56, n.1, Brasília, 2013. p. 122-143.
- MAC GINTY, R. Against Stabilization. Stability, 1(1): p. 20-30, 2012.
64498.009886/2021-28