A participação brasileira na MINUSTAH como uma ferramenta de projeção de poder
Maérson de Melo Oliveira
Major do Exército Brasileiro. Atualmente está realizando o CAEM na ECEME.
1. Introdução
Segundo a constituição brasileira de 1988, dentre os dez princípios estabelecidos nas relações internacionais brasileiras, destacam-se a defesa da paz, solução pacífica dos conflitos e a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade (BRASIL, 1988). A Política Nacional de Defesa, por sua vez, entende que o setor de Defesa deve contribuir para a estabilidade regional, para a paz e a segurança internacionais, além de colaborar a projeção do Brasil no concerto das nações e sua inserção em processos decisórios internacionais (BRASIL, 2012).
Dessa maneira, uma das formas para o Brasil atender aos seus marcos legais são as missões de paz da Organização da Nações Unidas (ONU). A participação brasileira em operações de paz tem como um de seus objetivos projetar poder, aumentar a capacidade de dissuasão e fortalecer os laços com os países em que emprega as suas tropas (ARTIFON et al., 2017). Segundo a ONU (2022), a maior contribuição brasileira em missões de paz ocorreu durante a Missão das Nações Unidas para a Estabilização no Haiti, mais conhecida como MINUSTAH, ocasião em que o Exército Brasileiro comandou o componente militar por 13 anos consecutivos, enviando cerca de 37 mil militares e policiais para a MINUSTAH.
Portanto, tomando como base essas considerações, surge a seguinte pergunta: A participação do Contingente Brasileiro (CONTBRAS) na MINUSTAH contribuiu para a projecão de poder do Brasil?
2. O Poder e sua Projeção
De acordo com o manual do Exército Brasileiro C 124-1 - Estratégia, o poder, em seu significado mais elementar, é a capacidade de impor a vontade para se chegar aos objetivos estabelecidos pela política. Tal manual ainda acrescenta que o poder manifesta-se como uma convergência de dois elementos essenciais: a vontade de agir e a capacidade dos meios para atingir os objetivos propostos (BRASIL, 2001).
Nesse viés, o poder nacional pode ser entendido como a capacidade que tem a população e os meios que formam a nação, atuando conforme a vontade nacional, de alcançar e manter os objetivos nacionais. Nesse sentido, o poder se manifesta em cinco expressões: política, econômica, psicossocial, militar e científico-tecnológica. O conjunto dessas expressões dão origem aos poderes marítimo, terrestre e aeroespacial, que, juntos, constituem a projeção do poder nacional (BRASIL, 2007).
Em vista disso, nota-se que a projeção de poder é uma das estratégias de emprego das Forças Armadas brasileiras e desenvolve-se por meio da participação militar além fronteiras, em situações que proporcionem o respeito internacional ao país. Essa participação se dá mediante sua própria iniciativa ou atendendo a pedidos provenientes de acordos externos, visando a dissuadir potenciais agressores, bem como apoiando o país no alcance dos interesses nacionais relacionados com a manutenção da paz internacional (BRASIL, 2007).
3. O Brasil e a MINUSTAH
Inicialmente, a MINUSTAH foi estabelecida para ajudar o governo de transição no estabelecimento de um ambiente seguro e estável; na cooperação da supervisão, reestruturação e reforma da Polícia Nacional do Haiti (PNH); na prestação de assistência mediante programas integrais; e no apoio ao desarmamento, desmobilização e reintegração da população haitiana (BRASIL, 2018).
Para essa missão de paz, o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), mediante a resolução da ONU nº 1529, de 2004, definiu o Brasil como líder da MINUSTAH. O contingente brasileiro no Haiti foi formado, durante a maior parte do tempo, por um Batalhão de Infantaria de Força de Paz, um Grupamento Operativo dos Fuzileiros Navais da Marinha do Brasil e por uma Companhia de Engenharia de Força de Paz. Além dessas tropas, cumpre destacar a participação de militares brasileiros em cargos importantes na missão de paz como: o comandante do componente militar (Forcer Commander) e algumas funções no Estado-Maior (Staff da missão).
O trabalho realizado pelas tropas brasileiras no Haiti pode ser dividida em três eixos, a saber: estabelecer um ambiente seguro e estável, materializado pela atuação do Batalhão de Infantaria de Força de Paz e pela atuação do Grupamento Operativo dos Fuzileiros Navais; proporcionar o apoio de engenharia para os contingentes desdobrados no Haiti e para a infraestrutura do país, realizado pela Companhia de Engenharia de Força de Paz; e prover suporte logístico Brasil-Haiti-Brasil, ação que englobou as três Forças Armadas brasileiras. A ação sinérgica desses componentes foram primordiais para o cumprimento da missão.
Ao longo de 13 anos, o Brasil enviou 26 contingentes militares. Cada contingente teve sua especificidade delineada conforme a realidade a qual o país se encontrava naquela ocasião, bem como os progressos obtidos no transcorrer da missão de paz. A figura a seguir sintetiza a participação do contingente militar brasileiro na MINUSTAH, correlacionado com a situação existente no Haiti naquela momento e com fase militar correspondida:
Figura 1 - Fases da MINUSTAH
Fase |
Situação |
Período |
Contingente brasileiro |
1ª |
Confrontos internos |
2004 a 2006 |
do 1º ao 5º |
2ª |
Estabilização da paz |
2007 a 2009 |
do 6º ao 11º |
3ª |
Terremoto, cólera e 2ª Eleição presidencial |
2010 a 2011 |
do 12 ao 14º |
4ª |
Consolidação do Plano de Opção 4.5 e eleições legislativas |
2012 a 2015 |
do 15º ao 23º |
5ª |
Furacão Mathew, 3ª eleição presidencial e desmobilização |
2016 a 2017 |
do 24º ao 26º |
Fonte: WALKER, 2018.
O desempenho do Batalhão de Infantaria de Força de Paz, bem como do Grupamento Operativo dos Fuzileiros Navais da Marinha do Brasil, contibuiu sobremaneira para a estabilização da paz, por meio de uma rápida atuação para o controle dos confrontos internos existentes nas 1ª e 2ª fases da missão. O transcurso de três pleitos eleitorais, sem nenhum incidente de maior vulto, é uma marca da atuação das tropas brasileiras que asseguraram a normalidade na realização dessas eleições.
Esse ambiente seguro e estável, proporcionado pelas tropas brasileiras, deu-se pela boa execução das tarefas recebidas, como no estabelecimento de pontos fortes, postos de bloqueios, patrulhas ostensivas e na reestruturação da Polícia Nacional do Haiti. Esse resultado foi devido, em grande parte, pela capacidade de adaptação do militar brasileiro, bem como da sinergia entre o adestramento recebido com os meios utilizados disponíveis.
Outra atuação relevante foi a da Companhia de Engenharia de Força de Paz. Além de prestar uma gama de apoios para as diversas tropas da missão, a Companhia de Engenharia de Força de Paz também realizou diversas atividades de caráter humanitário. Essas tarefas podem ser assim sintetizadas:
“Direcionada para essa concepção, a Companhia, intitulada BRAENGCOY, abrangeu uma variada gama de possibilidades, dentre as quais é possível destacar: reconhecimentos especializados de engenharia; reparação, reforma, melhoramento, adaptação e construção de instalações; reparação, conservação, melhoramento e construção de estradas, aeródromos e pontes; trabalhos de infraestrutura; destruição e neutralização de munições, explosivos e engenhos falhados; construção de bueiros e outros sistemas de drenagem; desobstrução de vias, com remoção de entulhos, escombros e carcaças; reparação e manutenção das vias de circulação, em apoio à mobilidade, à segurança das tropas da Força de Paz da ONU e às ações humanitárias; reparação, manutenção e construção de heliportos; e assistência técnica de engenharia aos contingentes da Força de Paz” (BRASIL, 2018, p.31).
O apoio à infraestrutura do país foi uma marca da Companhia de Engenharia de Força de Paz, principalmente por ocasião do terremoto, ocorrido em 2010, e pela passagem do furacão Mathew, em 2016, em que rapidamente atuou na remoção de escombros e desobstrução de vias, assim como no resgate de vítimas. A Companhia de Engenharia de Força de Paz também realizou a pavimentação de vias pública, recuperação de pontes e perfuração de poços artesinos em locais insalubres.
O emprego adequado dessas tropas só foi possível pela eficiente logística desempenhada pela ação integrada entre as forças singulares. A utilização dos navios da Marinha do Brasil, bem como dos aviões da Força Aérea brasileira, foi crucial para manter a cauda logística do contingente brasileiro, mantendo, assim, a tropa em constante estado de prontidão operacional. Essa integração permitiu o fluxo semestral de suprimentos das diversas classes, assim como possibilitou o envio de equipes de manutenção altamente especializadas, no intuito de relizarem a manutenção preventiva e sanarem as panes de manutenção de caráter complexo. Essa coesão permitiu aos contingentes brasileiros obterem uma aprovação de praticamente 100% em todas as inspeções de prontidão operacional realizada pela ONU ao longo da missão.
Outro aspecto dessa eficiência logística foi constatado após o terremoto, quando o Brasil prontamente desdobrou mais um Batalhão de Infantaria de Força de Paz e enviou para o Haiti, no intuito de prestar apoio e manter o ambiente seguro. Nessa ocasião, o país demonstrou sua capacidade de pronta resposta.
4. Conclusão
Partindo do conceito apresentado de projeção de poder, caracterizado pela expressividade de um país no concerto das nações, mediante o uso de uma de suas expressões do poder ou pelo conjunto delas, a participação brasileira na MINUSTAH de fato contribuiu para tal. A capacidade apresentada pelo Brasil em chefiar a missão durante treze anos, cumprindo todos os acordos firmados em memorando, em condições de pronto emprego e atestadas em todas as inspeções da ONU, no mínimo coadjuva com essa projeção.
O resultado obtido foi decorrente, sobretudo, da atuação das tropas brasileiras no Haiti, associado a característica própria do militar brasileiro em adaptar-se aos aspectos da missão e ao ambiente, condições que concorreram para a exelência das tarefas executadas. Com isso, o país pôde demonstrar para a comunidade internacional o profissionalismo do soldado brasileiro, bem como sua capacidade de mobilização e manutenção em meios e pessoal além de suas fronteiras.
Assim, pode-se afirmar que a participação do Brasil na MINUSTAH consolidou-se como um caso de êxito. Os resultados dessa missão proporcionaram mais visibilidade ao país em âmbito mundial.
Referências Bibliográficas:
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ARTIFON, Alberto Lucas et al. A Importância das Missões de Paz para a Estratégia de Inserção Internacional do Brasil. XIV Congresso Acadêmico sobre Defesa Nacional, 2017. Resende: AMAN, 2017.
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BRASIL. Palácio do Planalto. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Palácio do Planalto, 1988
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BRASIL. Exército Brasileiro. Estado-Maior do Exército. Estratégia - C 124-1. Brasília: Exército Brasileiro, 2001.
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BRASIL. Ministério da Defesa. Manual de Doutrina Militar de Defesa - MD51-M-04. Brasília: Ministério da Defesa, 2007.
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BRASIL. Ministério da Defesa. Política Nacional de Defesa. Brasília: Ministério da Defesa, 2012.
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BRASIL. Revista Verde Oliva. Brasil no Haiti um caso de sucesso 2004-2017. Revista Verde Oliva, nº 241, 2018.
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ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - ONU. ONU Brasil e Forças Armadas homenageiam Forças de Paz. ONU Brasil, 2022. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/184072-onu-brasil-e-forças-armadas-homenageiam-forças-de-paz. Acesso em: 21 de julho de 2023.
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WALKER, Márcio Saldanha. Evolução da Concepção Operativa do Contingente militar brasileiro na MINUSTAH: legado para a força terrestre. Revista Doutrina Militar Terrestre, Vol. 6, nº 13, p. 20-35, 2018.
Rio de Janeiro - RJ, 07 de março 2024.
Como citar este documento:
Oliveira, Maérson de Melo. A participação brasileira na MINUSTAH como uma ferramenta de projeção de poder. Observatório Militar da Praia Vermelha. ECEME: Rio de Janeiro. 2024.
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