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O terrorismo ocorrido em Angola durante o século XXI

Publicado: Segunda, 02 de Agosto de 2021, 09h00 | Última atualização em Segunda, 02 de Agosto de 2021, 12h04 | Acessos: 5199

Anselmo de Oliveira Rodrigues

Doutor em Ciências Militares

Eduardo Xavier Ferreira Glaser Migon

Doutor em Ciências Militares e Doutor em Administração

 

 1. Introdução

 Decorridos quase vinte anos um dos maiores atentados terroristas da história contemporânea (11 de setembro de 2001), muitos eventos se sucederam e influenciaram a trajetória do terrorismo nesse período. Globalização, internet, Al Qaeda e Estado Islâmico são apenas alguns, dos inúmeros fatos e atores que interferiram na dinâmica da prática terrorista neste século.

 Ao analisar a evolução do terrorismo entre 2001 e 2019, verifica-se que, atualmente, o fenômeno está em declínio no mundo, trajetória que teve início em 2014, momento em que, sob a liderança dos norteamericanos, foi formada uma coalizão de Estados para combater o Estado Islâmico (RODRIGUES, 2020). Entretanto, esses dados se referem à prática terrorista ocorrida em todo o globo. Em que pese a realidade da globalização e toda a sua influência na sociedade, não necessariamente deve-se esperar que esse cenário se repita em outras partes do planeta.

 Diante dessa realidade e considerando a relevância geopolítica do continente africano para o Brasil (COSTA, 2014), analisar o terrorismo que ocorreu em Angola entre 2001 e 2019 é determinante, uma vez que Angola encontra-se situada no entorno estratégico brasileiro (MEIRA MATTOS, 2011), onde muitos fatos que ocorrem nessa região, produzem efeitos diretos no Brasil (VISENTINI; MIGON; PEREIRA, 2016).

 2. Considerações Teórico-Metodológicas

 Ao estudar a literatura que trata sobre terrorismo, percebe-se que a grande preocupação dos autores reside na busca incessante para encontrar a melhor definição sobre terrorismo. Muitas pesquisas destinaram-se somente a compreender os distintos posicionamentos existentes sobre o conceito de terrorismo. O exemplo mais clássico repousa na consagrada obra intitulada de The Routledge Handbook of Terrorism Research, na qual Schmid (2011) apresentou um estudo em que revelou a existência de mais de 100 definições acerca da prática terrorista. Ou seja, não há consenso entre Estados, Think Tanks, organizações supranacionais e a academia sobre o que venha a ser o terrorismo (RODRIGUES; SILVA, 2019).

 A importância dada à definição do conceito nas investigações sobre terrorismo fez com que as pesquisas ficassem limitadas à extensos debates conceituais, restringindo o aproveitamento desses estudos por outras instituições, entes e até pelo governo para elaborar políticas públicas. Em vista disso, nota-se que há uma lacuna na literatura acerca de uma abordagem qualitativa sobre a manifestação do terrorismo propriamente dito e as implicações do mesmo junto à sociedade.

 Com vistas a suprir essa lacuna, a presente pesquisa se propôs a analisar os atentados terroristas ocorridos em Angola entre 2001 e 2019. Os dados coletados foram obtidos na Global Terrorism Database (GTD), relatório emitido anualmente pelo National Consortium for the Study of Terrorism and Responses to Terrorism (START). Para sistematizar a análise sobre o terrorismo em Angola, essa investigação adotou o conceito de terrorismo contido na Global Terrorism Database, a qual define ataque terrorista como sendo a ameaça ou uso real de força e violência ilegais por um ator não estatal e que tem como objetivo alcançar uma meta política, econômica, religiosa ou social a partir do medo, coerção ou intimidação (GTD, 2019).

 Dessa forma, acredita-se que foi possível apresentar uma pesquisa diferente do que normalmente é encontrada na literatura e que poderá servir até de subsídios para a elaboração de políticas públicas.

 3. Resultados e discussão

 Segundo a Global Terrorism Database, entre 2001 e 2019 o planeta registrou 129.527 atentados terroristas, dos quais 22.111 localizaram-se em solo africano, continente responsável por cerca de 17,07% da prática terrorista ocorrida em todo o globo (GTD, 2021). Procurando obter uma compreensão mais pormenorizada acerca da manifestação terrorista em Angola, os incidentes terroristas foram analisados sob a perspectiva de três variáveis: 1) geopolítica; 2) autoria dos atentados; e 3) tipo de alvos.

 3.1 Geopolítica

 Sob a perspectiva geopolítica, dos 22.111 incidentes terroristas ocorridos na África entre 2001 e 2019, Angola registrou apenas 58 atentados em seu território, números que correspondem à 0,26% da atividade terrorista ocorrida no continente africano (GTD, 2021). No entanto, esses números, per si, podem levar a uma percepção equivocada ou reducionista acerca do terrorismo ocorrido naquele país durante esse período. Com vistas a proporcionar uma percepção mais adequada sobre o terrorismo em Angola, o gráfico nº 1 apresenta esses números sob a ótica temporal.

 Gráfico nº 1 - A evolução do terrorismo em Angola durante o século XXI

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 Fonte: OS AUTORES, com dados do Global Terrorism Database 2021.

 O gráfico nº 1 nos mostra que, com exceção de 2001, o terrorismo se manifestou de forma rarefeita em Angola. Com números inexpressivos, pode-se concluir que a prática terrorista se fez pouco presente em Angola após 2001.

 Ao investigar os motivos pelos quais houve forte queda da atividade terrorista a partir de 2001, constatou-se que a resposta foi obtida ao revisitar a história angolana, mais precisamente num episódio ocorrido em 2002. Trata-se da morte do líder da União Nacional para a Independência de Angola UNITA1 (Jonas Savimbi), em 22 de fevereiro de 2002, durante um confronto travado entre as tropas do governo e as forças da UNITA, na província de Moxico (RODRIGUES; MIGON, 2019).

 Os desdobramentos desse episódio resultaram no acordo de paz celebrado em abril de 2002, por meio do Memorando de Entendimento de Luena, firmado entre o governo angolano e os remanescentes da UNITA, evento considerado um divisor de águas na história angolana (RODRIGUES; MIGON, 2019). Desde então, Angola tem experimentado um período de considerável estabilidade, com a UNITA centrando seus esforços no campo político, distanciando-se da luta armada para atingir seus objetivos.

 3.2 Autoria dos atentados terroristas

Ao analisar o relatório emitido pela START sobre a autoria dos atentados terroristas ocorridos em Angola, constatou-se que a relação contém seis atores: UNITA, Frente de Libertação do Enclave de Cabinda (FLEC2 ), desconhecido, rebeldes angolanos, separatistas e pistoleiros (GTD, 2021), conforme tipificado a seguir:

Gráfico nº 2 - Autoria dos atentados terroristas

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 Fonte: OS AUTORES, com dados do Global Terrorism Database 2021.

 Conforme o gráfico nº 2, a UNITA foi responsável por cerca de 65% de toda atividade terrorista, tornando-se a maior responsável pelos incidentes terroristas em Angola, entre 2001 e 2019 (GTD, 2021). Esse fato, associado à grande quantidade de atentados terroristas ocorridos em 2001, permite inferir que a maior parte desses atentados foi decorrente da instabilidade que vigorava em Angola naquele momento, reflexo direto dos conflitos armados que sacudiam o país desde 1975, nos quais os partidos políticos angolanos recorriam às armas para conquistar o poder (RODRIGUES; MIGON, 2019).

 Passando a analisar a FLEC, sugere-se que especial atenção deve ser dada para esse grupo, que foi responsável por cerca de 15% da prática terrorista ocorrida em Angola neste século e que continua atuando no país africano (GTD, 2021). Em que pese a pouca ocorrência de atentados terroristas em Angola a partir de 2002, nota-se que o enfraquecimento da UNITA deixou uma espécie de vácuo de poder, que rapidamente foi ocupado pela FLEC, principal ator terrorista que atua em Angola nos dias atuais.

 Embora os atentados de origem desconhecida tenham uma representatividade significativa (cerca de 13% do total), observa-se que os mesmos foram desencadeados em várias cidades, característica que não permite vincular os atentados à uma determinada região ou cidade. Além disso, os atentados não se restringiram e nem tampouco ficaram concentrados num recorte temporal específico, pelo contrário, os mesmos foram realizados de forma dispersa ao longo dos anos, característica que não permite vincular os atentados à um episódio ou fato histórico.

 No grupo de atores que foram responsáveis por apenas um incidente terrorista entre 2001 e 2019 (rebeldes angolanos, separatistas e pistoleiros), verifica-se que todos os incidentes terroristas (três no total) foram desencadeados em 2001. Como Angola não registrou um atentado terrorista sequer, perpetrado por esses atores após 2001 (GTD, 2021), pode-se afirmar que esses incidentes ocorreram sob o contexto do conflito que ainda vigorava em Angola, protagonizado pelo governo angolano de um lado, e pela UNITA de outro lado (RODRIGUES; MIGON, 2019).

3.3 Tipo de alvos

 Ao analisar os 58 incidentes terroristas ocorridos em Angola entre 2001 e 2019, notou-se que os alvos selecionados pelo terrorismo ficaram categorizados da seguinte forma: cidadãos comuns, militares angolanos, propriedade privada, serviços públicos, governo angolano, policiais militares, aeroportos e instituição religiosa (GTD, 2021):

Gráfico nº 3 - Categorização dos alvos

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Fonte: OS AUTORES, com dados do Global Terrorism Database 2021.

 De acordo com o gráfico nº 3, o cidadão comum foi o tipo de alvo mais afetado pelo terrorismo em Angola nesse período. Como a maior parte dos atentados terroristas ocorreu em 2001, pode-se inferir que a instabilidade angolana que vigorava naquela época (RODRIGUES; MIGON, 2019) gerou efeitos colaterais diretos em sua população, na medida em que foi a mais vitimizada pelo terrorismo. Esse cenário não se repetiu a partir de 2002, ano em que o terrorismo priorizou outro tipo de alvo em suas ações.

 Dessa forma, especial atenção deve ser dada aos militares das Forças Armadas angolanas, principais vítimas do terrorismo em Angola a partir de 2002. Apesar da baixa ocorrência de atentados terroristas a partir de 2002, constata-se que dos seis incidentes terroristas envolvendo os militares das Forças Armadas angolanas entre 2001 e 2019, cinco ocorreram após 2002, fato que não pode ser ignorado e nem tampouco descartado pelos agentes públicos e pelas instituições de segurança e defesa.

 Em que pese a significativa representatividade da propriedade privada e dos serviços públicos no ranking de alvos do terrorismo (cinco incidentes para cada um), nota-se que todos os atentados terroristas envolvendo os dois tipos de alvos ocorreram em 2001. Da mesma forma como verificado nos cidadãos comuns, pode-se inferir que esses eventos foram desencadeados sob o contexto da instabilidade vigente em Angola naquele período (RODRIGUES; MIGON, 2019). A partir de 2002, nota-se que, tanto a propriedade privada, como os serviços públicos, deixaram de ser alvos do terrorismo.

 Com relação aos incidentes terroristas envolvendo o governo angolano e os policiais militares, vitimizados pelo terrorismo em três e duas ocasiões respectivamente, verifica-se que todos os cinco incidentes foram desencadeados em cidades distintas, fato que não permite vincular o terrorismo à uma determinada região. Além disso, todos os cinco atentados não se concentraram num recorte temporal específico, característica que inviabiliza vincular os atentados à um fato histórico.

 No que concerne aos aeroportos e à instituição religiosa, alvos do terrorismo em duas e uma ocasião respectivamente, constata-se que os três incidentes foram perpetrados em 2001, todos sob a autoria da UNITA. Ou seja, tanto os aeroportos, como a instituição religiosa, sofreram os efeitos colaterais dos conflitos internos que sacudiam Angola naquele período (RODRIGUES; MIGON, 2019).

4. Considerações Finais

Sob a perspectiva geopolítica, conclui-se que, apesar da pouca ocorrência de atentados terroristas em Angola entre 2001 e 2019, houve significativa quantidade de atentados terroristas em 2001 (40), números que indicam que o país foi bastante afetado pela atividade terrorista nesse ano, decorrente diretamente da instabilidade política. Sob a perspectiva da autoria dos atentados, conclui-se que, apesar da realidade cada vez mais premente da globalização e todos os seus efeitos e alcances junto à sociedade, a prática terrorista em Angola teve caráter estritamente regional, não sendo alvo do terrorismo internacional. Tal assertiva se justifica pelo fato de não haver registros de ataques terroristas em Angola que foram perpetrados por grupos extremistas como a Al Qaeda, Estado Islâmico e Boko Haram, que atuam de forma global e são responsáveis por grande parte dos atentados terroristas ocorridos na África atualmente.

 Por fim, sob a perspectiva do tipo de alvos, conclui-se que o cidadão comum foi a categoria mais vitimizada pelo terrorismo em Angola, motivado principalmente pela instabilidade que vigorava naquele país. Assim, cumpre salientar que o ataque terrorista perpetrado pela UNITA, junto à uma instituição religiosa em 2001, não pode ser vinculado e nem tampouco caracterizado como terrorismo religioso, por dois motivos: 1) a instabilidade que vigorava em Angola em 2001; e 2) a não ocorrência de outros ataques terroristas à instituições religiosas em Angola após 2001.

 

 ¹ Partido político criado em 1966, na cidade de Moxico, por Jonas Savimbi. A concepção inicial da UNITA era tornar o país independente de Portugal por meio do apoio popular e da mobilização das massas. Atualmente, a UNITA restringe suas atividades no campo político, sendo o segundo maior partido de Angola e o maior partido de oposição (SILVA, 2016).

² Criada em 1963, a FLEC é uma guerrilha separatista e movimento político que luta pela independência de Cabinda desde 1975. Na década de 1990, foi reformulada estruturalmente, mas manteve seu propósito original: a luta pela independência de Cabinda (MAZRUI, 1975).

 

 Rio de Janeiro - RJ, 02 de agosto de 2021.


Como citar este documento:
RODRIGUES, Anselmo de Oliveira e MIGON, Eduardo Xavier Ferreira Glaser. O terrorismo ocorrido em Angola durante o século XXI. Observatório Militar da Praia Vermelha. ECEME: Rio de Janeiro. 2021.

 

Referência:

  1. COSTA, Wanderley Messias da. Projeção do Brasil no Atlântico Sul: geopolítica e estratégia. Confins Online, nº 22, 2014. Disponível em: http://journals.openedition.org/confins/9839. Acesso em: 20 jun. 2021.
  2. GLOBAL TERRORISM DATABASE. Codebook: Inclusion Criteria and Variables. College Park: University of Maryland, 2019. Disponível em: https://www.start.umd.edu/gtd/downloads/Codebook.pdf. Acesso em: 20 jun. 2021.
  3. GLOBAL TERRORISM DATABASE. GTD - Searche The Database. College Park: University of Maryland, 2021. Disponível em: https://www.start.umd.edu/gtd/search/Results.aspx?start_yearonly=2001&end_yearonly=2019&start_year=&start_month&start_day=&end_year=&end_month=&end_day=&country=6&country=8&country=23&country=29&country=33&country=34&country=37&country=41&country=42&country=46&country=229&country=56&country=60&country=62&country=63&country=65&country=72&country=73&country=84&country=85&country=99&country=104&country=111&country=112&country=113&country=119&country=120&country=128&country=129&country=136&country=137&country=139&country=146&country=147&country=605&country=47&country=403&country=168&country=174&country=176&country=177&country=182&country=183&country=1004&country=195&country=197&country=204&country=208&country=213&country=349&country=604&country=230&country=231&asmSelect1=&dtp2=all&success=yes&casualties_type=b&casualties_max=. Acesso em: 20 jun. 2021.
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