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As Big Techs e o conflito Rússia vs Ucrânia: o domínio informacional

Publicado: Sexta, 25 de Março de 2022, 02h01 | Última atualização em Sexta, 25 de Março de 2022, 10h13 | Acessos: 1102

 

Marlos de Mendonça Corrêa

Tenente-Coronel

 

O mundo tem a sua atenção voltada para o conflito deflagrado entre a Rússia e a Ucrânia. Empresas tradicionais de jornalismo como o The Washington Post1 , The Guardian2 e Le Monde3 têm páginas dedicadas à cobertura dos combates com atualizações quase em tempo real. No Facebook e outras redes sociais pululam postagens sobre o conflito, quase sempre evocando os sucessos da resistência ucraniana e o despreparo das forças russas. A maioria do que é veiculado apresenta uma visão geral similar, uma Ucrânia que resiste bravamente e uma Rússia incapaz de se impor militarmente.

O site Sputiniknews4 , contudo, traça um perfil diferente, destacando êxitos russos e denunciando ações supostamente ilegais da Ucrânia, visando à responsabilização das forças russas. O site Geopolítica.ru5 repercute um suposto apoio à causa russa vindo da República Centro Africana, Mali e Etiópia. O citado site destaca as palavras de Kemi Seba, líder da Resistência Pan-Africana ao Neocolonialismo Ocidental, que condena a postura do Ocidente e da mídia em geral: “A Ucrânia tornou-se um instrumento da oligarquia Neoliberal Ocidental”.

Esse embate de versões, não é novidade, mas a forma como está ocorrendo merece reflexão. Em que pese a barreira linguística, há que se considerar que a versão russa do conflito praticamente não existe na mídia ocidental. Não se trata de fazer juízo de valor sobre quem está certo ou errado, mas sim de se identificar como é possível haver tamanha convergência num terreno reconhecidamente pouco regulado como é a internet.

Para compreender essa situação deve-se primeiro compreender como o fluxo de informações está ocorrendo. A época na qual a informação era veiculada diretamente da fonte para o consumidor parece ter sido ultrapassada. Atualmente, esse fluxo se dá, principalmente, por meio das redes sociais, que funcionam ao mesmo tempo como plataforma de veiculação e câmara de reverberação. Por isso, não é possível se dissociar a lógica do fluxo de informações, da lógica que rege tais redes, o que leva inevitavelmente às Big Techs.

A literatura internacional registra a expressão Big Tech como se referindo à Alphabet (Google, YouTube), Meta (Facebook, WhatsApp, Instagram), Apple, Microsoft e Amazon, que são as empresas dominantes e com maior prestígio na área de tecnologia da informação (“Big Tech”, [S.d.]). Essas empresas têm muito em comum, mas talvez o que mais se destaque para os fins dessa análise sejam a popularidade e o poder econômico.

Segundo o site Statista, o Facebook tem aproximadamente 2,9 bilhões de usuários em todo o mundo. O YouTube, pertencente à Alphabet, contabiliza aproximadamente 2,5 bilhões de usuários. WhatsApp e Instagram, ambas controladas pela Meta, possuem cerca de 2 bilhões e 1,4 bilhão de usuários respectivamente. Facebook, YouTube, WhastApp e Instagram ocupam, nessa ordem, as 4 primeiras posições dentre as redes sociais mais populares do mundo (STATISTA RESEARCH DEPARTMENT, 2022).

Do ponto de vista econômico, as Big Techs somam, em valor de mercado, aproximadamente 9,3 trilhões de dólares. O lucro da Apple em um trimestre de 2021 foi de 21.7 bilhões de dólares. A Google teve no mesmo ano, 50 bilhões de dólares em receitas no período de abril a junho (OVIDE, 2021). A Meta, por sua vez, reportou uma receita de cerca de 118 bilhões de dólares em 2021 (META PLATFORMS, 2022).

Esses números dão uma ideia do poder que as Big Techs possuem, mas a verdadeira dimensão só é revelada, quando se observa o impacto de suas ações em eventos de grande importância como, por exemplo, eleições ou conflitos armados. A influência que as Big Techs têm nesses eventos é intuitiva, mas sua extensão pode surpreender. Em 2010, o Facebook decidiu enviar lembretes para que as pessoas fossem votar nas eleições para o Congresso dos EUA. Ao todo foram enviados avisos para 61 milhões de usuários. Em 2012, um relatório mostrou que essa pequena e simples ação levou a 340.000 novos votantes (VOU, 2020).

Mas, não é apenas por meio do disparo de mensagens que estas gigantes da tecnologia atuam. Aliás, esta talvez nem seja a maior expressão de seu poder. Essas empresas possuem políticas sobre o que pode e o que não pode ser publicado em suas plataformas. E as violações de seus termos de uso, avaliadas por elas mesmas, levam a suspensões de contas, remoção de conteúdo, advertências e outras sanções. Em outras palavras, elas controlam quem diz o que em suas redes sociais. Com isso, controlam o fluxo de informação, o que lhes dá poder para afetar a opinião pública.

Um exemplo disso pode ser visto, atualmente, no conflito em questão. Uma vez iniciada a agressão russa, Google e Facebook decidiram suspender a monetização de canais russos. Eles também bloquearam a veiculação de anúncios por parte de canais de mídia estatais russas e impediram meios de comunicação financiados pelo Estado russo de usar sua tecnologia e gerar receitas em seus próprios sites e aplicativos (“Google e YouTube se unem a Facebook e bloqueiam anúncios de mídia estatal russa”). O governo russo protestou em vão, permanecendo silenciado nessas plataformas.

Outras medidas tomadas nos dias seguintes ao início do conflito foram ainda mais longe. A Meta anunciou que autorizaria a veiculação de mensagens que incentivassem a violência contra russos e o presidente Vladimir Putin. Dessa forma, não apenas a Meta tomou partido, mas também passou a ser conivente com a incitação à violência. A Apple suspendeu a venda de produtos na Rússia, assim como os serviços de sua loja, a Apple Store. Além disso, a Apple Store bloqueou o download dos aplicativos do Sputink6 e RT7 em todo o mundo. O Twitter, outra rede social popular, passou a rotular as postagens feitas por mídias financiadas pelo governo russo com um aviso, conforme exemplificado na figura a seguir:

Figura 1 - Twitter rotula postagem de mídias apoiadas pelo governo russo

bt fig2

Fonte: (WION, 2022).

Se for considerado o alcance que essas mídias possuem, não é de se surpreender que em praticamente todos os países ocidentais esteja prevalecendo apenas a versão ocidental do conflito. As Big Techs estão garantindo que uma enorme parcela da população ouça, veja e leia apenas o que elas consideram adequado.

Alguns outros dados tornam essa situação ainda mais grave. O site Wired8 analisou a relação das Big Techs com o cenário político dos EUA, identificando que os empregados das Big Techs e da Oracle, outra gigante da tecnologia da informação, contribuíram quase 20 vezes mais para Biden (US $ 4.787.752) do que para Trump (US $ 239.527) durante a campanha presidencial dos EUA (OBERHAUS, [S.d.]). Fato relevante, uma vez que os EUA têm papel destacado na resposta ocidental à invasão da Ucrânia pela Rússia.

Seguindo a linha do controle de informações, a Meta atendeu aos apelos de políticos e criou um centro de operações especiais, destinado a monitorar o conflito na Ucrânia e a remover conteúdos que violem suas regras. O YouTube, a seu turno, anunciou que derrubou centenas de canais e milhares de vídeos que violavam seus termos, alguns sob a alegação de desinformação (BOND, 2022).

Essas empresas, também, possuem estreita relação com o Departamento de Defesa (DoD) dos EUA, sendo beneficiárias de diversos contratos. Desde 2004, elas receberam cerca de US $ 43,8 bilhões do DoD (“Big Tech made billions during ‘war on terror’: report”, 2021). Outro dado relevante é a presença de ex-funcionários do governo em funções chaves nas Big Techs, conforme pode ser visto no site Big Tech Sells War9 .

É digno de destaque que as medidas tomadas pelas Big Techs não o foram em decorrência das sanções, mas por decisão dessas empresas que passaram, assim, a constituírem atores não-estatais no conflito. Atores não-estatais que, todavia, possuem estreita relação e afinidade com o governo dos EUA. Parece, assim, não ser coincidência que estejam contribuindo para silenciar a versão russa do conflito e impulsionar e construir a versão ocidental.

Uma das características do conflito entre Rússia e Ucrânia é o protagonismo que atores não-estatais e não envolvidos diretamente no conflito, estão tendo. No domínio informacional, as Big Techs foram capazes de calar um Estado constituído, estável e com razoável poder militar e econômico. Não se sabe se fizeram isso por determinação do governo de seu país sede (EUA), ou se fizeram por decisão de seu quadro de diretores.

Esse comportamento praticamente autárquico e independente fez pender a balança em favor da Ucrânia, por meio do significativo apoio da opinião pública mundial. Apoio esse que tem levado países como EUA, Reino Unido, França e outros a suprirem a Ucrânia com material militar e recursos financeiros. Ou seja, em última análise, as Big Techs foram capazes de afetar o desenrolar dos combates. E, ainda, que isso não seja garantia de derrota da Rússia, esse apoio tende a estender o conflito, o que se reverte em maior perda de vidas humanas e destruição.

Num contexto mais amplo, fica marcante o monopólio exercido pelas Big Techs no domínio informacional. Aliado ao poder que essas empresas possuem, fica-lhes praticamente garantido o controle da opinião pública, sendo muito difícil de se insurgir contra as narrativas impostas por elas. Situação esta que descortina o aumento de poder dos EUA, Reino Unido, França e Alemanha, diante dos demais países do resto do mundo. Esses países, por conta de seu alinhamento com os EUA, tendem a ter sempre as Big Techs a seu lado. E a pergunta inescapável que surge é: e os demais países, como ficam?

 

1 https://www.washingtonpost.com/world/2022/03/09/russia-ukraine-war-news-putin-live-updates/
2 https://www.theguardian.com/world/2022/mar/07/russia-war-ukraine-complete-guide-maps-video-and-pi ctures
3 https://www.lemonde.fr/crise-ukrainienne/
4 https://sputniknews.ru/
5 http://www.geopolitica.ru/
6 https://sputniknews.com/
7 https://www.rt.com/
8 https://www.wired.com/
9 https://bigtechsellswar.com/

 

Rio de Janeiro - RJ, 25 de março de 2022.


Como citar este documento:
Corrêa, Marlos de Mendonça. As Big Techs e o conflito Rússia vs Ucrânia: o domínio informacional. Observatório Militar da Praia Vermelha. ECEME: Rio de Janeiro. 2022.

 

Referências:

    1. BOND, Shannon. Facebook, Google and Twitter limit Russian ads. Disponível em: https://www.npr.org/2022/02/26/1083291122/russia-ukraine-facebook-google-youtube-twitter. Acesso em: 16 mar 2022.

    2. GLOBO. Google e YouTube se unem a Facebook e bloqueiam anúncios de mídia estatal russa. Disponível em: https://oglobo.globo.com/mundo/google-youtube-se-unem-facebook-bloqueiam-anuncios-de-midia-estatal-russa-1-25411904. Acesso em: 8 mar 2022.

    3. META PLATFORMS, Inc. Meta Reports Fourth Quarter and Full Year 2021 Results. [S.l: s.n.], 2022. Disponível em: https://investor.fb.com/investor-news/press-rele ase-details/2022/Meta-Reports-Fourth-Quarter-and-Full-Year-2021-Results/default.aspx. Acesso em: 13 mar 2022.

    4. OBERHAUS, K. Silicon Valley Opens Its Wallet for Joe Biden | WIRED. Disponível em: https://www.wired.com/story/silicon-valley-opens-wallet-joe-biden/. Acesso em: 16 mar 2022.

    5. OVIDE, Shira. Big Tech Has Outgrown this Planet. Disponível em: https://www.ny times.com/2021/07/29/technology/big-tech-profits.html. Acesso em: 13 mar 2022.

    6. STATISTA RESEARCH DEPARTMENT. Most used social media 2021. Disponível em: https://www.statista.com/statistics/272014/global-social-networks-ranked-by-number -of-users/. Acesso em: 13 mar 2022.

    7. TECHXPLORE. Big Tech made billions during “war on terror”: report. Disponível em: https://techxplore.com/news/2021-09-big-tech-billions-war-terror.html. Acesso em: 16 mar 2022.

    8. VOU, Andreas. How “big tech” influence electoral processes and why transparency is essential. Disponível em: https://voxeurop.eu/en/how-facebook-and-google-influence-electoral-processes-and-why-transparency-is-essential/. Acesso em: 16 mar 2022.

    9. WIKIPEDIA. Big Tech. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Big_Tech. Acesso em: 13 mar 2022.

    10. WION. (18) Gravitas Plus: Why the West is winning the Information War - YouTube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=s4Kttb1WaJE&t=2s. Acesso em: 16 mar 2022.

 

 

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