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A Previsibilidade de Agressão nos Conflitos Armados: uma análise da Guerra Russo-Ucraniana

Publicado: Terça, 11 de Outubro de 2022, 04h01 | Última atualização em Terça, 11 de Outubro de 2022, 10h35 | Acessos: 863

 

Thiago Britto de Albuquerque
Major do Exército Brasileiro e Mestrando em Ciências Militares na ECEME

Leandro Leite de Almeida
Major do Exército Brasileiro e Mestrando em Ciências Militares na ECEME

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1. Introdução

A previsibilidade de ameaças externas é uma preocupação constante dos serviços de inteligência ao redor do mundo. O alerta oportuno pode impactar de forma significativa o resultado do conflito, pois permite em tempo hábil a concentração estratégica das forças militares e a obtenção de uma vantagem decisiva sobre o oponente. Os analistas de inteligência se dedicam a prever tempestivamente as intenções de uma ameaça antes que se tornem em ações num ambiente cada vez mais incerto, complexo, difuso e ambíguo.

No final da década de 1970, temendo um novo conflito mundial durante a Guerra Fria, o governo britânico encomendou um estudo metodológico que, por meio de um método eficaz, se propunha avisar as autoridades políticas e militares face a um ataque externo que pudesse causar danos aos objetivos vitais da Grã-Bretanha. À época, coube ao analista de inteligência Doug Nicoll, do Joint Intelligence Committe (JIC), órgão de inteligência consultivo do Ministro da Defesa britânico, realizar esse trabalho (GOODMAN, 2007).

O Relatório Nicoll, como ficou conhecido, foi elaborado em 1982 e demonstrou a análise detalhada de sete ataques externos: as invasões soviéticas na Tchecoslováquia (1982), no Vietnã (1979), no Irã (1979) e na Polônia (1980); o ataque da Coalização Árabe em Israel (1972); o ataque da China ao Vietnã (1979); e a invasão do Iraque ao Irã (1980). A partir dessas agressões, foram levantadas cinco tendências comuns preexistentes a um ataque: 1) existência de um objetivo político-militar; 2) vontade e intenção política; 3) capacidade militar para conquistar esse objetivo; 4) estabelecimento de um processo decisório; e 5) preparação, mobilização e deslocamento de tropas (GOODMAN, 2007).

Desde então, os países mundo afora passaram antever possíveis cenários em suas áreas de influência e de interesse. Para tanto, por meio de suas Forças Armadas e órgãos consultivos, tais países têm realizado estudos prospectivos com vistas a mitigar ou até neutralizar possíveis ameaças ou danos que podem ocorrer. Em vista dessa realidade e considerando a relevância da guerra russo-ucraniana, este artigo tem por objetivo analisar a previsibilidade de agressão nos conflitos armados, tomando como base as cinco tendências levantadas no relatório Nicoll, selecionando a guerra russo-ucraniana como estudo de caso.           

2. A existência de um Objetivo Político-Militar

O emprego pleno das expressões do poder de um país, com preponderância militar, justifica-se pela designação de um objetivo. Nos casos estudados, os relatórios do JIC revelaram que os potenciais agressores justificaram o emprego das capacidades militares pela imposição de um objetivo nítido para legitimar as ações e obter apoio antes do conflito. Como exemplo, há o caso da ex-União Soviética que, devido à desaprovação da opinião pública mundial e a falta de legitimidade de suas ações, adiou os planos de invadir a Tchecoslováquia entre março e agosto de 1968, até encontrar um objetivo que garantisse o apoio interno para a invasão.

Nos dias atuais, percebe-se que a Ucrânia representa para os russos mais do que uma disputa por independência das regiões separatistas. Crimeia, Donbas, Luhansk e Donetsk são áreas ligadas historicamente à nacionalidade e à cultura de Moscou. Por esse fato, o governo russo adota uma postura oficial de proteger os direitos e os interesses de nacionais no exterior, amparada na Estratégia de Segurança Nacional e na Política Externa do país. Além disso, o território ucraniano representa um objetivo fundamental para a geopolítica russa, pois mantém os europeus ocidentais e as influências norte-americanas longe de suas fronteiras.

Localizado literalmente entre o Ocidente e o Oriente, o território ucraniano possui extensas planícies e é carente de obstáculos naturais de vulto, aspectos que o tornam de fácil locomoção e transposição. Não custa lembrar que foram através desses terrenos pouco acidentados que as tropas alemãs invadiram a Rússia na Primeira e na Segunda Guerra Mundial. Manter a Ucrânia sob a sua esfera de influência é um objetivo militar permanente para os russos, pois os assegura uma profundidade estratégica em relação à Europa, no caso de uma nova ofensiva contra o seu território. Ademais, é através destas províncias que Moscou mantém acesso terrestre à Crimeia e a sua principal base naval de Sebastopol. O controle dessa região permite aos russos o acesso às águas quentes do Mar Negro e do Mar de Azov, únicas navegáveis durante todas as estações do ano e fundamentais para o comércio exterior russo.

Assim, pode-se inferir, parcialmente, que Moscou estabeleceu um objetivo político em relação à Ucrânia e iniciou a conquista deste a partir da anexação da Crimeia, em 2014.

3. Vontade e Intenção Política

Conforme consta no Relatório de Nicoll, a vontade e a intenção política podem ser descritas e representadas pelos atos de um líder ou presidente do país. Em agosto de 1973, os chefes do Egito e da Síria aprovaram e intensificaram os planos para invasão de Israel. Anwar al-Sadat, presidente do Egito na época, determinou a redução do tempo de preparação do ataque a fim de atacar os israelenses antes de qualquer possibilidade de uma mobilização plena. Essa decisão unilateral política causou a falta de sincronização do ataque da Liga Árabe. A guerra, em sua essência, é um ato político (CLAUSEWITZ, 1983). A vontade e a intenção do presidente egípcio, além de iniciar o conflito, foi determinante para os resultados da guerra.

No conflito russo-ucraniano, está claro que Vladmir Putin representa a liderança máxima no governo russo. Desde 1999 no poder, Putin tem se revezado no cargo de Presidente e Primeiro-Ministro. Para Vladmir Putin, a maior tragédia geopolítica do século XXI foi o colapso soviético. Em 2008, quando a Ucrânia manifestou a intenção de aprofundar os laços de integração com a União Europeia e com a OTAN, o líder russo se pronunciou dizendo que, caso isso acontecesse, a Rússia lutaria para anexar o leste do território ucraniano.

Pelo exposto, pode-se inferir parcialmente que a vontade e a intenção de Vladimir Putin em manter a Ucrânia sob a esfera de influência russa está sendo determinante para o projeto de poder russo. A Rússia tem buscado reconstruir um projeto de segurança nacional, viável aos seus interesses no continente europeu, sendo a Ucrânia uma peça fundamental para isso (BRZEZINSKI, 1997; KARAGANOV, 2022).      

4. Capacidade Militar

A capacidade militar, conforme definido no relatório Nicoll, reflete a necessidade de uma capacidade militar para conquistar objetivos definidos. A geração de capacidades envolve o desenvolvimento de um conjunto de aptidões de uma força militar e se caracteriza pelo aprimoramento da doutrina, organização, adestramento, material, educação, pessoal e infraestrutura (BRASIL, 2015).

Os países agressores procuram aprimorar a capacidade operativa de suas tropas, como ocorreu no ataque soviético à Tchecoslováquia e ao Afeganistão, em que foram dedicados cerca de 4 a 5 meses de estudos, discussões e treinamento preparando as forças. As forças chinesas levaram mais de 3 meses se preparando para a invasão do Vietnã, que foi precedida por intensos estudos sobre as forças dos vietnamitas. Para a Guerra de Yom Kippur, a Liga Árabe se preparou por 9 meses para estar pronta.

Nesse ínterim, a Federação Russa aumentou os investimentos em defesa, promovendo o desenvolvimento de tecnologias sensíveis, como a cibernética, e a modernização dos equipamentos militares, a exemplo de mísseis balísticos. Os exercícios militares se tornaram cada vez mais frequentes, com o intuito de aperfeiçoar o adestramento da tropa, como visto em 2013, quando os russos simularam um ataque nuclear contra a Suécia. A presença militar russa na fronteira ucraniana foi sendo sistematicamente expandida, principalmente no Mar Negro, com a incorporação de novos submarinos e fragatas, equipados com mísseis de cruzeiro de longo alcance.

Dessa maneira, verifica-se, de forma parcial, que a Rússia aumentou suas capacidades militares a fim de atingir os objetivos políticos-militares a que se destina, a partir do desenvolvimento de novas tecnologias e do domínio de capacidades que poderão obter um efeito decisivo no campo de batalha.

5. Estabelecimento de um Processo Decisório

O processo decisório se inicia antes da agressão. Doug Nicoll aduziu que essa fase pode ser observada pela autorização de planos e ordens para a execução do ataque pelas autoridades máximas de um país. A intervenção soviética na Tchecoslováquia em 1968, e no Afeganistão em 1979, foram autorizadas pessoalmente pelo presidente Brezhnev, o qual se envolveu de forma crítica em todas as fases do processo decisório. Além disso, o próprio Brezhnev, possivelmente, tomou a decisão para autorizar a mobilização de reservistas em 1968. Esses fatos demonstram o estabelecimento de um processo decisório que envolve, desde a concepção e a determinação dos planos no nível político, até as ordens de desencadear o ataque.

Os planos que conduzem a um ataque, geralmente, são de caráter sigiloso. Pode-se ter como indício do processo decisório russo a divulgação da proposta de acordo com a OTAN, cujo objetivo era “garantir a segurança da Federação Russa e dos Estados-membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte”, em 17 de dezembro de 2021. A intenção de Moscou era basicamente reaver a situação do Ato de Relações Mútuas, Cooperação e Segurança, assinado em 1997, entre a OTAN e a Rússia. Além disso, ainda no decorrer desse processo, houve a grande diminuição de diplomatas russos em Kiev, capital da Ucrânia, o que pode ratificar, mais uma vez, a execução de um plano e a escalada da crise.

Nesse diapasão, infere-se que a Federação Russa estabeleceu um processo decisório, observando a reação da comunidade internacional em adotar ou não as suas exigências e que evoluiu de forma gradual, de uma situação de crise para uma situação de conflito.

6. Preparação, Mobilização e Adestramento

O comitê de inteligência afirmou que é possível observar essa fase a partir da concentração de tropas em regiões estratégicas. Cobrir 27 divisões soviéticas nas fronteiras com a Tchecoslováquia em 1968, era algo praticamente impossível. A ex-União Soviética anunciou, então, a ocorrência de um exercício logístico, denominado Neman, seguido de outra atividade militar operacional. A concentração estratégica permite ao atacante obter superioridade inicial e a iniciativa no combate, o que podem ser determinantes para o resultado decisivo do conflito armado.

A Federação Russa realizou, em 14 de janeiro de 2021, uma série de manobras junto à Bielorússia, na fronteira norte da Ucrânia. Ainda, ocorreu um grande exercício naval, envolvendo cerca de 140 navios, 60 aviões e 10.000 militares, nos Mares Mediterrâneo, Norte e de Okhotsk. Em março e abril de 2021, houve outro grande exercício militar no Distrito Militar do Sul, ao término do qual, não foram desmobilizados os meios. Após esse exercício, houve uma nova concentração de tropas nos Distritos Militares do Centro e Oeste, o que configurou a maior mobilização de forças militares desde a anexação da Crimeia. Ao todo, mais de 100 mil soldados e um conjunto de aparatos militares, como carros de combates e veículos blindados, estavam presentes na fronteira com a Ucrânia, além da concentração de tropas da Marinha no Mar Negro.

Essa tática de concentração de tropas dissimuladas por meio da execução de exercícios militares já havia sido alertada no Relatório de Nicoll, o qual reportou como óbvio que exercícios repetidos reiteradamente visam aos governos obter posições de vantagem estratégica para o emprego do poder militar sem alertar ao oponente, como percebido na invasão turca ao Chipre, em 1974.

Assim, verifica-se que a Rússia utilizou a referida técnica, mobilizando um grande efetivo militar junto à fronteira com a Ucrânia, concentrando o maior efetivo militar naquela região desde o final de Guerra Fria.           

7. Conclusão

Por fim, pode-se observar que, em que pese as nações estarem inseridas em um mundo cada vez mais complexo, com ameaças de atores estatais e não estatais, o Relatório de Nicoll ainda se apresenta como uma ferramenta oportuna para alertar as autoridades políticas e militares quanto à iminência de um ataque externo, conforme constatado ao longo do texto por ocasião da guerra russo-ucraniana.  

 

 Referências Bibliográficas: 

  1. BRASIL. Ministério da Defesa. MD35_G01 - Glossário das Forças Armas, 5ª ed. Brasília: Ministério da Defesa, 2015.

  2. _______. Exército Brasileiro. EB70-D-10.002 - Concepção de Preparo e Emprego da Força Terrestre, 2ª ed. Brasília: Exército Brasileiro, 2019.

  3. BRZEZINSKI, Z. K. The grand chessboard: American primacy and its geostrategic imperatives. New York: Basic Books, 1997.

  4. BROWN, David. Ukraine conflict: Where are Russia's troops? BBC News, 23 de fevereiro de 2022. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-europe-60158694. Acesso em: 02 de junho de 2022.

  5. FARIAS, Hélio Caetano. Geopolítica e Guerra na Ucrânia: algumas considerações.  Observatório Militar da Praia Vermelha. Rio de Janeiro: ECEME, 2022.

  6. GOODMAN, S. Michael. The Dog That Didn´t Bark: The Joint Intelligence Committee and Warning Aggression. Cold War History, Vol. 7, nº 4, p. 529-551, 2007.

  7. KARAGANOV, Sergei. It Is Not About Ukraine. Russia in Global Affairs, 07 de fevereiro de 2022. Disponível em: https://eng.globalaffairs.ru/articles/it-is-not-about-ukraine/. Acesso em: 01 de junho de 2022.

  8. MOITA, Sandro Teixeira. Análise de Situação - Crise na Ucrânia. Observatório Militar da Praia Vermelha. Rio de Janeiro: ECEME, 2022.

 

Rio de Janeiro - RJ, 11 de outubro de 2022.


Como citar este documento:
Albuquerque, Thiago Britto de; Almeida, Leandro Leite de. A Previsibilidade de Agressão nos Conflitos Armados: uma análise da Guerra Russo-Ucraniana. Observatório Militar da Praia Vermelha. ECEME: Rio de Janeiro. 2022.  

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