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Conflito russo-ucraniano: uma guerra em solo europeu

Publicado: Quarta, 17 de Mai de 2023, 01h01 | Última atualização em Quarta, 17 de Mai de 2023, 08h17 | Acessos: 802

 

 

Esley Rodrigues de Jesus Teixeira
 Capitão de Corveta da Marinha do Brasil e
doutorando em Ciências Militares da ECEME

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Há mais de um ano a Europa passa por um dos maiores conflitos em seu próprio território desde a Segunda Guerra Mundial. O ceticismo quanto a impossibilidade de guerras entre democracias, ou a crença em que o desenvolvimento levaria a um mundo de paz perpétua, contribuiu para o despreparo relativo. Cálculos mal realizados e falta de informações plenamente confiáveis acabaram também por levar a um conflito hoje longe de parecer terminar.

A guerra russo-ucraniana é decorrente de um concerto que já se desenha desde a ex-União Soviética e que se acelerou nos últimos anos. A Rússia, ávida por controlar a passagem das estepes europeias ao seu território, se viu ameaçada com o discurso, e as ações, de aproximação entre o governo ucraniano e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Detendo arsenais nucleares e convencionais superiores, além de maior capacidade industrial e de manutenção de seus estoques de gêneros alimentícios e energéticos, a Rússia não parece sentir o ataque conjunto do ocidente, tampouco o peso das sanções a ela estipuladas.

O conflito entre Rússia e Ucrânia, por si só, não se tornaria manchete de jornal se não fosse o grande impulso das mídias norte-americanas e europeias na formação da informação e da opinião. Na percepção das mídias norte-americanas e europeias, tal conflito é compreendido como guerra, entendimento que não se observa em outros conflitos (por vezes muito mais sanguinolentos e, sem dúvida, muito mais longevos) que ocorrem na África e no Oriente Médio. O poder dado aos elementos de comunicação social e a facilidade com que conseguem hoje compartilhar suas convicções é impressionante, e, às vezes, aterrorizante. A ideia de que a Rússia passa para os norte-americanos e europeus é de que é um país que tem voraz apetite por territórios estratégicos.

O fardo do homem branco ainda parece sobressair na conjugação de pesos da balança do que é ou não relevante. Da mesma forma, a escolha do que é ou não real ou falso, torna o papel da mídia bastante complexo, vez que, mesmo tendo como chefe um ente apolítico, a guerra sempre é política. O próprio nome guerra na Ucrânia é uma forma de explorar a gravidade da palavra guerra. Não se fala, por exemplo, em guerra no Mali, Sudão, Congo, Timor-Leste. Ali, onde a civilização é menos influente do que a norte-americana e europeia, há no máximo, conflitos tribais (KEEGAN, 1984).

Basta que consideremos que as invasões europeias na África e na Ásia, baseadas no imperialismo europeu do século XIX, estavam chanceladas pelo sentimento civilizacional e até messiânico. A invasão dos Estados Unidos da América às Filipinas foi laureada pelo famoso The White Man’s Burden, e a expansão britânica sobre a China (momento em que o ocidente obrigou os bárbaros chineses a se viciarem em ópio) ganhou uma linda poesia chamada The Road to Mandalay, ambas de Kipling. A luta que se desenvolve em solo europeu, chocante e sangrenta como são todas as lutas, é algo horrendo demais para merecer a eternidade dos poemas e a beleza das poesias. Mas isso se vê desde os Lusíadas.

Além da mídia, outros atores fazem parte da guerra no século XXI. Longe de serem novos, tais atores constituem uma repaginação em conceitos dantes vistos, cuja natureza e substância incerta, caracterizam a névoa da guerra: incerteza, desordem, probabilidade, fricção, caos e complexidade (ELWARD, 2010). Conceito antigo que, hoje rememorado, parece esquecer a definição antiga que não permite reinvenção.

Um exemplo bem simples dessa assertiva é a guerra de Independência do Brasil e a utilização de algumas centenas de oficiais e praças norte-americanos e britânicos na tripulação (e até comando) dos navios da Armada Imperial Brasileira. Outro exemplo recai sobre Clausewitz, um oficial prussiano que lutou pelo exército czarista de Alexandre, sendo acompanhado por vários generais de diversas nacionalidades. Por certo, os serviços dantes ofertados por pessoas físicas (Thomas Cochrane, David Jewett, Pascoe Grenfell e John Taylor, por exemplo) agora são ofertados por empresas que os intermediam. Outras “inovações” desta guerra como extremistas e terroristas, forças especiais e coisas do gênero são tão antigas quanto os zelotes de Barrabás, os ataques aos comboios de pólvora franceses por Césare Bórgia e o atentado perpetrado por Gavrilo Princip contra Francisco Ferdinando. Falar em mercenários e não lembrarmos dos privateers de Elizabeth I, é um grave erro histórico.

A guerra, apesar de ser um camaleão que se adapta às características da conjuntura (CLAUSEWITZ, 1989), continua sendo utilizada para se alcançar os objetivos políticos. A Rússia possuía um objetivo claro, desde, pelo menos, as invasões napoleônicas e a criação da Santa Aliança no âmbito do concerto das nações após o congresso de Viena: manter a estabilidade política e impedir agitações que pudessem lhe ameaçar o território. Após Waterloo, o Alexandre dos Russos foi à Paris dos franceses, mas logo a devolveu. Também ajudou na restauração da Prússia e da Áustria, e não se envolveu em grandes conflitos até quase quarenta anos depois, na Criméia, onde, desde muito (1783), já havia estabelecido uma base naval (Sebastopol). Depois disso, apenas entraria em conflitos por motivos de invasões, mantendo, aliás, a tradição russa de Pedro I, o Grande, em sua batalha contra os tártaros de Azov.

Observando, portanto, as razões profundas através da história, nada comunga para o fato de se temer um expansionismo russo pelo leste europeu. Na verdade, não menos do que o expansionismo português, espanhol, francês, holandês, belga, britânico, alemão, norte-americano ou japonês, bastante presente em nossa história contemporânea. Paradoxalmente, a expansão da OTAN, da democracia e da União Europeia, o que seria o oposto do expansionismo imperialista de fins do século XIX, reascendeu o velho medo russo de perder o controle das estepes. Estava, pois, armada a armadilha de Tucídides.

A guerra, contudo, continua a aterrorizar aqueles que não conseguem compreender estas razões. Neste cômputo, os ensinamentos de Clausewitz, alinhados aos eventos históricos, nos são úteis, assim como os de guerra total de Ludenddorff. E, neste caso específico da guerra russo-ucraniana, nos são apresentados dois exemplos bem distintos: a guerra tem sido total para a Ucrânia, e limitada para a Rússia. Ela é total no lado ucraniano porque já se percebe o pleno exaurimento de suas capacidades combativas e de sobrevivência. Mesmo com o robusto apoio de diversos países ocidentais, não se divisa uma quebra do fait accompli russo. A expulsão dos cossacos parece muito improvável.

Da mesma forma, para a Rússia, manter-se em posição e não avançar é o caminho natural: não há necessidade de se avançar sobre um país em ruínas, e cujas eleições, ao que tudo indica, serão favoráveis a que se assuma uma postura bem mais comedida que a do atual presidente. Para a Rússia, apesar do que se parece, a guerra é defensiva, e não ofensiva. É uma ação preventiva contra o expansionismo otaniano, assim como foi a guerra entre Esparta e Atenas no Peloponeso. Talvez seja esse o grande problema das análises que hoje se nos apresentam: a falta de pesquisa histórica, que, per si, exigem maior reflexão das ideias do general prussiano (MOITA; FRANCHI, 2021).

Mesmo sendo um conflito eminentemente terrestre, os efeitos no comércio global se fazem sentir, particularmente no próprio continente europeu. O aumento dos gastos militares, em particular da Alemanha e o aumento do pedido de entrada na OTAN de outros países fronteiriços à Rússia, como Finlândia e Suécia, são reflexos imediatos do conflito. Outros mais preocupantes seguirão: a necessidade de deter armas nucleares e capacidade de dissuasão estratégica para evitar agressões, mesmo quando falamos de países menores ou sem protagonismo nas relações internacionais e econômicas; a necessidade de aumento nos gastos militares e de rearmamento para garantir uma dissuasão adequada, independentemente das ferramentas econômicas e financeiras existentes; e a necessidade de se investir na formação de coalizões e alianças para garantir a defesa mútua contra agressões de países mais fortes. Quanto aos reflexos econômicos, são bastante presentes até para os brasileiros: o preço do quilo do tomate, cuja cultura depende da importação de fertilizantes russos, não nos deixa mentir. A participação da Rússia na Organização dos Países Produtores de Petróleo, ademais, nos acende um alerta para como o preço dos combustíveis pode seguir no horizonte próximo.

 No decorrer deste ano de conflito europeu, o mundo pareceu relembrar de que a guerra pode, sim, ocorrer em qualquer lugar e envolver quaisquer atores. A saída desastrosa dos Estados Unidos do Afeganistão, os genocídios semanais nas guerrilhas africanas e as mazelas humanitárias na América Central pareciam estar muito longe dos norte-americanos e europeus. A guerra, contudo, continua sendo a guerra: os pressupostos de Clausewitz permanecem muito atuais e o diálogo médio nunca foi tão recente. A diferença deste conflito em particular, para os anteriores (mesmo se comparamos com a Ossétia e a Criméia bastante recentes), está na rapidez da informação, e na facilidade de moldura opinativa. As poesias de Kipling hoje, muito mais sonoras quando apresentadas como manchetes em redes de televisão e sociais, parecem possuir um poder bem maior de formar opiniões.

Infelizmente, independentemente do lado, não há poesias que possam expressar a perda dos desconhecidos soldados mortos, muito menos de um filho em uma trincheira como, aliás, foi o caso do de Kipling na Primeira Grande Guerra.

 

 

 Referências Bibliográficas: 

  1. CLAUSEWITZ, Carl Von. On War. HOWARD, Michael; PARET, Peter (Editores). Princeton: Princeton University Press, 1989.

  2. ELWARD, Sean Mikael. The Fog of War: A Necessary Component of Modern Warfare. Newport: Naval War College. 2010.

  3. KEEGAN, John. A History of Warfare. London: Vintage Books, 1984.

  4. MOITA, Sandro Teixeira; FRANCHI, Tássio. Os saberes da guerra: o pensamento de Carl von Clausewitz no Brasil (1990-2019). Revista da Escola de Guerra Naval, Vol. 27, p. 91-120, 2021.

 

Rio de Janeiro - RJ, 17 de maio de 2023.


Como citar este documento:
Teixeira, Esley Rodrigues de Jesus. Conflito russo-ucraniano: uma guerra em solo europeu. Observatório Militar da Praia Vermelha. ECEME: Rio de Janeiro. 2023.  

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