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Um pensamento da Arte da Guerra e reflexões sobre o futuro das Operações de Paz multidimensionais

Publicado: Sexta, 09 de Abril de 2021, 09h00 | Última atualização em Segunda, 12 de Abril de 2021, 16h26 | Acessos: 1525

Alexandre Shoji

Aluno do Curso de Comando e Estado-Maior da ECEME

 

 Em cerca de 72 anos, mais de 1 milhão de homens e mulheres serviram sob a bandeira da Organização das Nações Unidas (ONU) em mais de 70 operações de manutenção da paz da ONU (ONU, 2020). Os processos de descolonização, a mudança da ordem mundial, a instabilidade nas relações de civilizações, os movimentos separatistas e de libertação, as tensões econômicas e a ameaça nuclear, são alguns dos fatores que estimulam o desenvolvimento de novas estratégias e diferentes abordagens nas relações da comunidade internacional.

 O surgimento de novos fatores que influenciam os processos de tomada da decisão, em um mundo VUCA (volátil, incerto, complexo e ambíguo), são potencializados pela velocidade de informações proporcionada pela rede mundial de computadores, a internet. Neste contexto questiona-se a aplicabilidade de conceitos de Sun Tzu, em A Arte da Guerra, para formulação de novas estratégias na condução das Operações de Manutenção da Paz Multidimensionais (OMPM) sob a égide ONU.

 Desde a primeira ação com Observadores Militares na Palestina, em 1948, as missões sob a égide da ONU experimentaram distintos ambientes e variados desafios. Missões Tradicionais, com estabelecimento de Buffer Zone e monitoramento de cessar-fogo, foram implantadas, lições foram apreendias e o conhecimento foi consolidado. A responsabilidade de conter tensões, prioritariamente territoriais, mediando o equilíbrio de forças das partes em disputa pôde ser identificada em diversas oportunidades, tais como, estabelecimento de um grupo de observadores militares para região da Caxemira, entre Índia e Paquistão (UNMOGIP), desdobrada em 1949, a Força de Manutenção da Paz no Chipre (UNFICYP) desde 1964 e a Missão da ONU para o referendo no Saara Ocidental (MINURSO).

 A segunda metade século XX teve, ainda, diversas missões de apoio e observação de retirada de combatentes de territórios livres, a exemplo da saída da força belga do Congo e das forças e influências sauditas e egípcias no Iêmen. Em Angola, em diferentes fases, com a missão de verificação (UNAVEM I, II e III), os objetivos temporais também foram atingidos e seus mandatos implementados.

 A simetria das ações e tarefas para implementação dos mandatos vem sofrendo diversas influências. O desastre de Ruanda, de Srebrenica e da Somália, trouxe novos conceitos sobre o emprego da força e a responsabilidade de proteger, alterando o formato e a condução das missões. O Relatório Brahimi1, a Doutrina Capstone2, o Relatório Hippo3, a formulação da Responsabilidade de Proteger4 e o Relatório Cruz5 são alguns dos indicativos que marcam os estímulos para as mudanças nas Operações de Paz, levando-as à um espaço multidimensional, que, por ser atual, é significativamente impactado pelo campo informacional.

 O fluxo de informações, potencializado pelas redes sociais, aplicativos de celular e pelo próprio celular, tem reflexos diretos no processo de tomada da decisão dos componentes civil, militar e policial de uma OMPM, principalmente na validação e classificação dos dados disponíveis.

 No Capítulo XIII da Arte da Guerra, de Sun Tzu, o título aborda um tema com distintas interpretações ou traduções, tais como, “Agentes Secretos”, “A Utilização de Agentes Secretos” (tradução do autor) e até “Da Arte de Semear a Discórdia”.

 No contexto atual e no ambiente ONU, essa abordagem seria alvo de duras críticas, fundamentadas na exploração de seres humanos para busca de conhecimento operacional, que, agravada pelo contexto de população em sofrimento humanitário, passa a ser uma ferramenta extremamente temerária na percepção da comunidade internacional, potencializado, ainda, por remeter a ideia de ausência de transparência e desrespeito à dignidade humana nas operações.

 A descrição dessa ferramenta foi de um general chinês, que viveu no século IV a.C. acumulou diversas vitórias e foi um profundo conhecedor das manobras militares. No linguajar do contexto da obra, a utilização de espiões é defendida como ferramenta, entre outras, de busca e coleta de informações, bem como na validação ou confirmação de informes. Tal entendimento, sobre a fonte de informação, pode ser trazido para realidade contemporânea, como forma de balizar novas estratégias no ambiente informacional das OMPM.

 A estrutura que coopera com a inteligência em OMPM possui uma diversidade considerável. Conta com vetores como Centro Conjunto de Analises da Missão (JMAC, do inglês Joint Mission Analysis Center), a Seção de Inteligência Militar do QuartelGeneral (U2) e das Unidades Militares (G2), o Centro de Operações Conjuntas (JOC, do inglês Joint Operations Center), o Departamento de Salvaguarda e Segurança das Nações Unidas (UNDSS, do inglês United Nations Department of Safety and Security), e outros, não diretamente envolvidos com informação, mas que colaboram na produção de conhecimento. O produto relativo ao campo militar é uma das principais ferramentas do processo de tomada de decisão do Force Commander, é incorporado, também, ao grupo de dados, oriundo das demais fontes, destinados ao Representante Especial do Secretário-Geral (SRSG, do inglês Special Special Representative of the Secretary-General).

 O Cruz Report (2017), do General brasileiro, Santos Cruz, Force Commander na Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti (MINUSTAH) e na Missão das Nações Unidas na República Democrática do Congo (MONUSCO), sintetizou a vulnerabilidade de membros das OMPM, quantificando fatalidades por componentes em diversas missões. Tal estatística serviu como embasamento para propor novos formatos no emprego da força nas operações de paz.

 Uma das fragilidades identificadas foi a inteligência, ponto de toque com o Capítulo XIII da Arte da Guerra. Cruz (2017) ressaltou a incapacidade da atual Inteligência em fornecer informações oportunas, afirmou que o ciclo da inteligência6 está incompleto para o fim que se destina nas operações e que a “inteligência humana é subdesenvolvida ou inexistente” (tradução do autor) (grifo nosso).

 O lapso informacional ou a desinformação na inteligência militar impede ou retarda a identificação de ameaças, maximizando incertezas e retirando do comando militar o princípio da oportunidade, o que reduz, significativamente, as chances de êxito nas operações. Destaca-se, que nas atuais OMPM, os movimentos táticos de tropa, muitas das vezes, objetivam a proteção direta ou indireta de civis, ponto nevrálgico dos mandatos contemporâneos.

 A proteção de civis (PoC, do inglês Protect of Civilians) é um dos principais vetores a serem implementados pelos mandatos nas OMPM. O componente militar, no nível tático, possui capacidade para prover tal proteção por meio de ação robusta, atuando em tempo hábil, com informação precisa, repelindo ou suprimindo ações hostis de beligerantes. Assim, pode-se refletir sobre a ampliação das capacidades de inteligência humana e a reavaliação de seu emprego pelo Departamento de Operação de Paz (DPO).

 O recrutamento de espiões no modelo proposto por Sun Tzu, espalhando-os por todo território, aliciando oficiais do exército inimigo e disseminando desinformação sobre a liderança em oposição, não é algo moralmente executável em um ambiente repleto de vulneráveis e com um viés militar de apoio à atividade humanitária. No entanto, além das variadas tecnologias de precisão que colaboram com a consciência situacional do comando, existe uma inteligência humana orgânica, muitas vezes disponíveis em escala significativa, os Observadores Militares (UNMOs, do inglês United Nations Military Observers).

 Os UNMOs atuam com capilaridade e possuem diversas das capacidades dos “espiões” de Sun Tzu. O eficiente emprego dos “olhos e ouvidos da missão”7 podem, se devidamente selecionados e capacitados, potencializar a coleta e a busca de informação, servindo de termômetro para despertar de crises e de fator de construção da confiança da população na ONU.

 Outro mecanismo, mais recentemente presente nas OMPM, são os recursos de Coordenação Civil-Militar (UN-CIMIC, do inglês United Nations Civil Military Coordination), uma função militar de interface com atores civis em campo. Agentes humanitários externos à missão e agentes de Civil Affairs8 da ONU possuem facilitado acesso, por meio de sua neutralidade, a diversos setores e lideranças locais, configurando mais uma fonte de cruzamento de informação. São dotados de grande potencial para cooperação e coordenação em atividades militares de PoC, eventualmente com acesso às áreas ainda não pacificadas, por vezes negadas ao UNMOs e demais capacetes azuis.

 Tais reflexões conduzem à percepção dos novos desafios nas OMPM. Sun Tzu, um símbolo da estratégia na guerra, destacou a relevância da exploração da rede de informações para o êxito nas operações militares, ao passo que o relatório do General Santos Cruz indicou a inexistência ou subdesenvolvimento da inteligência humana em campo. UNMOs, UN-CIMIC e tecnologia informacional podem corroborar com as demandas do ciclo da inteligência, mas talvez, ainda haja espaço para novos modelos de inteligência humana nas OMPM, sob a ótica de que a relevância da qualidade e da oportunidade do dado, relaciona-se, diretamente, com vidas salvas ou perdidas no contexto da PoC.

 O desafio consiste, então, em explorar a inteligência humana, garantindo celeridade na validação das informações e proporcionando dados concisos para o processo de tomada de decisão nas operações militares, com meios orgânicos ou não, sem ferir a dignidade humana ou explorar vulnerabilidades humanitárias da população do país anfitrião.

 

 

Rio de Janeiro - RJ, 09 de abril de 2021.


1 O “Relatório Brahimi” relatou a necessidade de uma estrutura multidimensional como solução para os mais recentes modelos de operações de paz (CONING et al, 2008, p.1).

2 Doutrina apresentada pelo Norwegian Institute of International Affairs que introduziu o conceito de operação de manutenção de paz robusta, reconhecendo o uso da força no nível tático para alcançar o mandato da missão.

3 O High-Level Independent Panel on Peace Operations (HIPPO), gerou o Relatório HIPPO, no qual ressaltou a importância da prevalência da Proteção de Civis (PoC) nas operações.

4 Conceito apresentado pelo relatório da International Commission on Intervention and State Sovereignty (ICISS), escalonando os deveres do Estado e da Comunidade Internacional na proteção de civis.

5 Relatório do General brasileiro, Santos Cruz, Force Commander no Haiti e no Congo, sobre medidas ativas e passivas para a proteção dos Peacekeepers.

6 Ciclo da inteligência: orientação, obtenção, produção e difusão (BRASIL, 2015, p.4-1).

7 Modo clássico da literatura de Operações de Paz para caracterizar os UNMOs (nota do autor).

8 Setor do componente civil de OMPM que se relaciona com lideranças locais (nota do autor).

 

Como citar este documento:
Shoji, Alexandre. Um pensamento da Arte da Guerra e reflexões sobre o futuro das Operações de Paz multidimensionais. Observatório Militar da Praia Vermelha. ECEME: Rio de Janeiro. 2021.


Referência:

  1. BRASIL. EB20-MC-10.207. Inteligência Militar. Estado-Maior do Exército, 1ªed, Brasília, 2015.
  2. SUN TZU. A Arte da Guerra: Por uma Estratégia Perfeita/Sun Tzu; tradução Heloísa Sarzana Pugliesi, Márcio Pugliesi. — São Paulo: Madras, 2005
  3. SUN TZU. A Arte da Guerra. Traduzido do chinês para francês por Padre Amiot, 1772. Traduzido do francês por Sueli Barros Cassal. Porto Alegre: L&PM, 2006.
  4. SUN TZU. L’art de la guerre (1972). Traduit de l’Anglais par Francis Wang. Oxford University Press, 1963 - Paris: Flammarion Éditeur, 1972.
  5. CONING, Cedric de; DETZEL Julian; HOJEM Petter. UN Peacekeeping Operations - Capstone Doctrine. Report of the TfP Oslo Doctrine Seminar, Oslo, Norway. 14-15 Mai 2008.
  6. ICISS. Responsibility to Protect. Report of the International Commission on Intervention and State Sovereignty, International Development Research Centre, Ottawa 2001.
  7. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Comprehensive Protection of Civilians Training Materials for United Nations Peacekeeping Operations, Military Version. Department of Peacekeeping Operations and Department of Field Support, New York, 2017.
  8. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Comprehensive review of the whole question of peacekeeping operations in all their aspects (Brahimi Report). New York, 2000.
  9. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Improving Security of United Nations Peacekeepers: We need to change the way we are doing business, (Cruz Report) DPKO, New York, 2017b.
  10. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Report of the Secretary-General to the Security Council on the Protection of Civilians in Armed Conflict. Security Council, New York, 1999.
  11. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Report of the High-Level Independent Panel on Peace Operations. Security Council, New York, 2015.
  12. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. The Protection of Civilians in United Nations Peacekeeping. Department of Peace Operations, New York, 2019.
  13. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. United Nations Peacekeeping: Our History. Department of Peace Operations. Disponível em <https://peacekeeping.un.org/en/our-history> Acessado em 17 Jun 2020.

 

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