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A Europa e os desafios decorrentes da mobilidade humana forçada no século XXI

Publicado: Quarta, 08 de Fevereiro de 2023, 01h01 | Última atualização em Quarta, 08 de Fevereiro de 2023, 10h03 | Acessos: 8530

 

João Carlos de Almeida Lima
Major do Exército Brasileiro e atualmente
está realizando o CAEM na ECEME

Felipe Vieira Monroe
Major do Exército Brasileiro e atualmente
está realizando o CAEM na ECEME

Christian Alberto Becker Scarduelli
Major do Exército Brasileiro e atualmente
está realizando o CAEM na ECEME

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1. Introdução

A União Europeia se constitui, atualmente, no modelo mais avançado de integração existente atualmente no globo terrestre. Seu processo de ampliação tem sido progressivo e em finais do século XX, ganhou uma velocidade maior em direção ao leste europeu. Todavia, o continente não está livre de problemas e a mobilidade humana forçada apresenta-se como um grande desafio a ser superado pelos europeus atualmente.

Para Júnior (2005), mobilidade humana forçada é o movimento de entrada (imigração) ou saída (emigração) de um indivíduo ou grupo de indivíduos, a qual é provocada geralmente pela busca de melhores condições de vida. No tocante aos deslocados, Júnior (2205) descreve que esse grupo se refere às pessoas que foram forçadas a fugir ou sair de suas casas, em decorrência de conflitos armados, violência generalizada, violação de direitos humanos, desastres naturais ou humanos e que não tenham atravessado a fronteira de um Estado reconhecido no sistema internacional.

No século XXI, a mobilidade humana forçada ganhou nova impulsão na Europa, particularmente na segunda década do século XXI (2010-2020), provocada, notadamente, por conflitos decorrentes da Primavera Árabe. Em decorrência dessa realidade, nota-se que muitas pessoas oriundas do norte da África têm buscado a União Europeia como destino. A propagação de tais conflitos para o Oriente Médio, em particular para a Síria, ocasionou um novo boom nos movimentos populacionais em direção ao continente europeu, sobretudo entre os anos de 2015 e 2016. Diante dessa realidade e considerando a importância do tema em questão, esse artigo procura jogar luz sobre as consequências desse fenômeno junto ao continente europeu.

2. Impactos dos fluxos migratórios no campo econômico

O cenário econômico europeu no século XXI é marcado pela eclosão de diversas crises econômicas, sendo a mais impactante ocorrida em 2008. Sob o acrônimo dos PIIGS, Portugal, Itália, Irlanda, Espanha e Grécia foram seriamente afetados pela crise do sistema financeiro de 2008, necessitando de ajuda financeira externa para se restabelecerem como Estados. A associação de um cenário econômico débil, com o aumento da mobilidade humana forçada, intensificou a crise econômica experimentada por esses países

O cidadão comum, por sua vez, não conseguiu distinguir o que era reflexo da crise financeira, daquilo que era decorrente do fluxo migratório. Para Da Costa e Vieira (2020), o aumento dos deslocamentos de pessoas aconteceu no mesmo período da crise financeira europeia, acentuando o sentimento xenófobo e o euroceticismo. Adiciona-se a isso, o fato de o cidadão europeu passar a conviver com ameaças e ataques terroristas no continente, realidade que impactou diretamente na qualidade de vida da população europeia. Para os PIIGS, um dos maiores problemas foi gerir as dívidas com a União Europeia e com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Isso exigiu dos governos desses países o compromisso e a adoção de uma política de austeridade. Tal política, por sua vez, recrudesceu o euroceticismo em parcela significativa da população dos PIIGS.

Todavia, alguns autores destacam que há impactos positivos nos grandes volumes de migrantes. Para Matias e Guimarães (2022), as ondas de imigração contribuem para elevar a produtividade em economias desenvolvidas no curto e no médio prazo, apresentando ganhos para esses países, o que não se repete de forma rápida ao analisar os fluxos migratórios nas economias em desenvolvimento. Outro aspecto positivo é que o migrante costuma concorrer por posições de trabalho de pouco interesse dos nacionais do país anfitrião. Isso porque os imigrantes aceitam receber baixas remunerações, postura que permite a inovação e o empreendedorismo, o que assegura aos nativos ascender a empregos de maior prestígio, aumentando suas rendas médias per capita, ao passo que os migrantes complementam a força de trabalho com outras habilidades (MATIAS; GUIMARÃES, 2022).

Segundo Matias e Guimarães (2022), os fluxos migratórios impactam o PIB dos países europeus, mas o efeito imediato sobre esse indicador não pode ser percebido a curto prazo, pois são de difícil mensuração, na medida em que parte dos refugiados permanece de forma definitiva, mas outra parte sofre a repatriação voluntária, ocasionada pelo estímulo ao reassentamento em outras nações anfitriãs.

Diante do exposto, percebe-se que os fluxos migratórios geram impactos no campo econômico da União Europeia. Saber como atuar diante deste grande desafio permitirá aos europeus colher bons resultados. Nesse caso, singular destaque deve ser dado para um elemento central que precisa ser superado: xenofobia. A não superação desse desafio pode resultar numa perda de oportunidade da utilização de mão-de-obra estrangeira a um custo mais barato.

3. Impactos dos fluxos migratórios no campo político

Nos últimos anos, a Europa foi o continente que recebeu o maior número de refugiados em todo o mundo. Para fazer frente a esse desafio, foram adotadas as mais diversas medidas. De acordo com Wiebusch (2018), essas medidas só foram possíveis em razão da reforma do sistema de asilo e da promoção da integração dos refugiados no continente europeu.

Esse fenômeno gradativamente se agravou durante a década de 2010, por conta de desdobramentos da Primavera Árabe (MARY, 2016). Não pelo acaso, em 2014 registra-se um recorde de ingressos irregulares de pessoas no continente e infindáveis números de mortes decorrentes da tentativa de adentrar na Europa de forma clandestina (MAGALHÃES, 2016). Fruto da pressão migratória ocorrida a partir de 2015, a Comissão Europeia apresentou um conjunto de propostas para reformar o Sistema Europeu Comum de Asilo (SECA).

Os países da União Europeia acreditavam que as mudanças no SECA poderiam garantir maior harmonização no tratamento dos requerentes de asilo, prevendo uma partilha equitativa da responsabilidade. Para tanto, foi implementada a agenda europeia de migração, a qual buscou reduzir a quantidade de imigrações ilegais, da mesma maneira que procurou exercer maior controle sobre as fronteiras. Com relação ao controle de fronteiras na Europa, Mary (2016) aponta que em junho de 2016, o Parlamento Europeu, o Conselho Europeu e a Comissão Europeia se juntaram e criaram duas instituições voltadas especificamente para o controle das fronteiras e para a guarda da costa marítima europeia: Guarda Costeira e Guardas de Fronteiras Europeia. Contudo, os esforços das autoridades europeias na recolocação das pessoas entre seus membros se mostrou ineficiente (LOPES, 2018).

Outro marco político importante foi a declaração firmada entre a União Europeia e a Turquia em março de 2016. Esse acordo estipulou que todos os refugiados que adentrassem à Grécia de maneira irregular deveriam ser devolvidos à Turquia e, em contrapartida, a União Europeia deveria receber refugiados indicados pelo governo turco para ingressarem de forma legal no continente.

Ou seja, fica claro que a União Europeia estruturou propostas para remodelar a estrutura que era voltada para o controle do fluxo migratório até então. Diante dos desafios impostos à União Europeia pela crise dos refugiados, os países membros passaram a preocupar-se com a política migratória do bloco como um todo, visto que os reflexos desse fenômeno, incidiram não somente em um único país, mas em vários países europeus. Dessa forma, o que tem se notado é que o grande fluxo de pessoas buscando acesso ao continente tem demandado das autoridades competentes uma articulação interna do bloco, a qual visa atingir uma política de comum acordo e de equidade entre todos.

4. Impactos dos fluxos migratórios no campo da segurança de fronteiras

As turbulências ocorridas no norte da África, advindas da eclosão da Primavera Árabe a partir de dezembro de 2010, tiveram como uma de suas consequências, o aumento dos fluxos migratórios oriundos do continente africano e do Oriente Médio, tendo como destino o continente europeu (WICHERS, 2019).

Diante dessa realidade, cumpre destacar o papel desempenhado pela Frontex no controle das fronteiras europeias. A Frontex, agência da União Europeia responsável pela gestão de fronteiras do bloco europeu, realiza o monitoramento diuturno da mobilidade humana forçada ocorrida na Europa. A agência tem como atribuições o compartilhamento de informações com os Estados-Membros, inclusive as obtidas por meio de interrogatórios, a realização de triagens, a obtenção de impressões digitais e a identificação dos migrantes, ações que elevam a capacidade de controle migratório europeu.

A Frontex também possui autorização para realizar retornos forçados de migrantes em situação de permanência ilegal na União Europeia, podendo até implementar operações em território de países externos ao bloco, caso haja grande pressão migratória oriunda desse Estado (FRONTEX, 2022). Como exemplo de operações desencadeadas pela Frontex para aumentar o controle das fronteiras europeias, tem o caso da operação Aeneas, desencadeada em 2011 no mar Adriático e no mar Iônico nas costas da Itália, Grécia e Albânia; da operação Hermes, desencadeada também em 2011, numa região que abrange a parte norte da África e o sul da Itália, com grande atenção para a poção do mar localizada entre a Tunísia e Lampedusa; da operação Triton, desencadeada em 2014, a qual teve como objetivo exercer a vigilância marítima, a realização de resgates em situações de extrema necessidade; e da operação Sophia, deflagrada em 2015, a qual também teve como objetivo exercer a vigilância marítima (MORONI, 2021).

Além dessas iniciativas, cumpre mencionar que os europeus também passaram a fornecer recursos e forças militares para os países africanos e para os países oriundos do Oriente Médio. Tal iniciativa visava realizar a contenção dos movimentos populacionais ainda nos territórios dos países de origem. A exemplo disso, em fevereiro de 2017 foi firmado um memorando de entendimento entre os italianos e líbios. Apesar das críticas de órgãos não governamentais como a Anistia Internacional, esse memorando previa o apoio para a implementação de centros de detenção administrados pelo Departamento de Combate à Migração Ilegal do Ministério do Interior na Líbia, e que seriam financiados por fundos italianos e por fundos da União Europeia (MORONI, 2021; RODRIGUES, 2018). Ademais disso, a União Europeia também firmou acordos similares com a Tunísia e a Turquia, postura que tem demonstrado o caráter de securitização nas ações tomadas pelos países europeus diante de tal desafio (SILVA, 2021; WICHERS, 2019).

5. Conclusão

Diante do que foi apresentado, chega-se a conclusão de que a mobilidade humana forçada provoca impactos positivos e negativos na economia da União Europeia. Para o grupo dos PIIGS, países endividados em razão dos acordos de austeridade para sair da crise financeira de 2008, os fluxos migratórios acentuaram os problemas sociais existentes e pioraram ainda mais o cenário interno. Nesse grupo (PIIGS), apenas Portugal e Irlanda não são portas de chegada para os migrantes. Todavia, os demais países (Itália, Espanha e Grécia) receberam grandes fluxos populacionais enquanto estavam reorganizando suas economias para atender aos compromissos assumidos com o FMI e a União Europeia. Entretanto, os aspectos positivos poderiam ser mais bem aproveitados pela União Europeia. Estudos apontam que a imigração pode elevar a produtividade em economias desenvolvidas, que é a situação de boa parte dos países da Europa.

Neste momento, o continente parece não saber como aproveitar a imigração porque os cidadãos desenvolveram certo preconceito em relação aos imigrantes. Além disso, é latente que os Estados europeus não estão conseguindo separar a migração regular, da migração irregular, dada a complexidade com que elas ocorrem.

Quanto ao campo político, as discordâncias existente em alguns países sobre determinados pontos, em particular, quanto à presença de estrangeiros circulando dentro do espaço Schengen, tem dificultado a adoção de uma política comum. Todavia, tem-se notado que nos últimos anos a União Europeia tem trabalhado no sentido de adequar sua legislação de forma mais cooperativa, o que nos últimos anos vem caminhando para um resultado mais positivo. Ou seja, a crise dos refugiados não foi e continua não sendo uma situação que possa ser evitada pelos países europeus. A circunstância de ajuda humanitária a ser proporcionada, justamente por esses países que já viveram os dois maiores conflitos mundiais, é quase que uma obrigação do “Velho Continente”.

Com relação à segurança das fronteiras, a União Europeia tem como foco repelir os movimentos migratórios de pessoas em busca de asilo. O bloco europeu, por sua vez, tem fortalecido a Frontex, agência responsável pelo controle das fronteiras e da costa dos países europeus. Não pelo acaso, a Frontex vem realizando operações com intuito de barrar esses deslocamentos. Ademais, nota-se que a União Europeia também tem buscado realizar acordos com os países tidos como pontos de partida, tendo como foco principal dificultar a chegada dos migrantes à Europa. Para tanto, os europeus tem apoiado governos estrangeiros com vultosos recursos destinados para o desenvolvimento de barreiras para a saída e de aumento da sua capacidade e propensão para a reabsorção dos migrantes “devolvidos”.

 

 Referências Bibliográficas: 

  1. DA COSTA, Vitória Volcato; VIEIRA, Luciane Klein. Nacionalismo, xenofobia e União Europeia: barreiras à livre circulação de pessoas e ameaças ao futuro do bloco europeu. Revista da Faculdade de Direito UFPR, Vol. 64, nº 3, p. 133-160, 2020.

  2. FRONTEX. Agência Europeia de Fronteira e Guarda Costeira. Frontex, 2022. Disponível em: https://frontex.europa.eu/. Acesso em: 04 de julho de 2022.

  3. JÚNIOR, Alberto do Amaral. Direito Internacional e Desenvolvimento. Barueri: Editora Manole, 2005.

  4. LOPES, Rita. Crise dos Refugiados: O Acolhimento de Refugiados na União Europeia - Uma Análise Crítica (2011-2016). Dissertação de Mestrado na Universidade Católica Portuguesa, 2018. Lisboa: UCP, 2018.

  5. MAGALHÃES, Patrícia Santos. A União Europeia e a Segurança Humana - O Caso dos Refugiados Sírios. Dissertação de Mestrado na Universidade de Minho, 2016. Braga: Universidade do Minho, 2016.

  6. MARY, Lucy. A Situação dos Refugiados Sírios: Uma Análise das Políticas Migratórias da União Europeia e do Brasil. Trabalho de Conclusão de Curso no Centro Universitário de Brasília, 2016. Brasília: CEUB, 2016.

  7. MATIAS, João Luís Nogueira; GUIMARÃES, Gabriel Braga. Os impactos econômicos positivos da migração na Europa: a oportunidade que não pode ser perdida. Revista de Direito Internacional, Vol. 19, nº 1, 2022.

  8. MORONI, Lisa. Migração e sustentabilidade: o caso do Mediterrâneo. Dissertação de Mestrado no Instituto Universitário de Lisboa, 2021. Lisboa: ISCTE, 2021.

  9. RODRIGUES, Laura Beatriz Oliveira. Migrações e pressões sobre as políticas de imigração na Europa. Trabalho de Conclusão de Curso na Universidade Federal Fluminense, 2018. Niterói: UFF, 2018.

  10. SILVA, Isabela Montilha da et al. Deslocamentos contemporâneos e a utilização do fetichismo categórico migrante-refugiado na externalização da política migratória europeia: uma análise do fluxo migratório Tunísia-UE. ÎANDÉ: Ciências e Humanidades, Vol. 5, nº 2, p. 04-23, 2021.

  11. WICHERS, Jamille Adriene Pereira. O processo de externalização de fronteiras europeias e o acordo de devolução com a Turquia. Trabalho de Conclusão de Curso na Universidade Federal da Paraíba, 2019. João Pessoa: UFPB, 2019.

  12. WIEBUSCH, Larissa Alana. Conflitos Regionais e Migrações: Consequências da Guerra da Síria para a imigração na Europa. Trabalho de Conclusão de Curso na Universidade do Vale do Taquari, 2018. Lajeado: UNIVATES, 2018.

 

Rio de Janeiro - RJ, 08 de fevereiro de 2023.


Como citar este documento:
LIMA; MONROE; SCARDUELLI. A Europa e os desafios decorrentes da mobilidade humana forçada no século XXI. Observatório Militar da Praia Vermelha. ECEME: Rio de Janeiro. 2022.  

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