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Direito Internacional dos Conflitos Armados: a (in)aplicabilidade nas Operações de Garantia da Lei e da Ordem

Publicado: Quinta, 01 de Dezembro de 2022, 01h01 | Última atualização em Quinta, 01 de Dezembro de 2022, 11h35 | Acessos: 9696

 

Leandro Tafúri Mattoso
Major do Exército Brasileiro e aluno do CAEM na ECEME

Leandro Leite de Almeida
Major do Exército Brasileiro e aluno do CAEM na ECEME

Moabe da Costa Luna
Major do Exército Brasileiro e aluno do CAEM na ECEME

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1. Introdução

O mundo contemporâneo, além de complexo, é monitorado por diversas organizações supranacionais. A Organização das Nações Unidas (ONU) é uma dessas organizações que buscam estabelecer normas internacionais a serem seguidas pelos Estados. Não pelo acaso, a ONU se tornou a principal instituição supranacional no globo e que produz documentos voltados para regular a guerra entre Estados, particularmente no que se refere ao direto de guerra Jus Ad Bellum, que configura as condicionantes para que um Estado declare guerra de modo justo a outro Estado. Quando o conflito é deflagrado, é aplicado o Jus in Bello, que nada mais é uma forma de limitar os danos materiais e humanos existentes em uma guerra. Este conjunto de normas que regem um conflito armado é chamado de Direito Internacional dos Conflitos Armados, ou simplesmente DICA.

Tendo em vista que o ambiente urbano e a não-linearidade são características da guerra contemporânea, a identificação do inimigo e de um objetivo militar se torna uma atividade cada vez mais complexa. Em vista dessa realidade, o DICA tem assumido um papel cada vez mais importante nos conflitos modernos, haja vista que a principal razão de ser do DICA é  evitar os efeitos colaterais advindos de uma guerra.

Trazendo essa realidade para o Brasil, nota-se que as últimas operações de Garantia da Lei e da Ordem (Op GLO) realizadas pelo Exército Brasileiro (EB) ocorreram em áreas densamente urbanizadas. As operações Arcanjo, São Francisco e Furacão, são exemplos dessa realidade, uma vez que as três operações foram realizadas em áreas de grande adensamento populacional na cidade do Rio de Janeiro, locais onde há a presença de agentes de perturbação da ordem pública (APOP) equipados com armamentos pesados e que utilizam técnicas e táticas típicas de combates em ambiente urbano. Ou seja, as Op GLO se assimilam ao combate moderno.

No transcurso dessas operações, foram observadas inúmeras restrições de esfera jurídica às tropas em Op GLO que dificultaram e algumas vezes até mesmo inviabilizaram a atuação das tropas. Em decorrência disso, a violência urbana e o emprego militar das Forças Armadas no Rio de Janeiro frequentemente tem suscitado o debate quanto à admissibilidade de tratarem-se, ainda que pontualmente, de conflito armado não-internacional (CANI) e a consequente aplicabilidade do DICA, com implicações para a soberania nacional.

Diante dessas considerações, o presente trabalho intenciona investigar a admissibilidade e aplicabilidade do DICA na atuação das Forças Armadas Brasileiras em território nacional, particularmente na cidade do Rio de Janeiro, jogando luz sobre as consequências à soberania nacional. 

 

2. Direito Internacional dos Conflitos Armados

Os séculos de conflitos armados em muito superam os séculos de paz, o que configura o fenômeno da guerra como realidade permanente na história das civilizações (PALMA, 2012). Segundo a concepção clausewitziana, a guerra nada mais é de que um ato de força a partir do choque de vontades entre forças vivas, levando os contendores a extremos recíprocos (CLAUSEWITZ, 2010). Repete-se, pois, a definição apresentada por Clausewitz:

a guerra é um ato de violência e não há nenhum limite para a manifestação dessa violência. Cada um dos adversários executa a lei do outro, de onde resulta uma ação recíproca, que, enquanto conceito, deve ir aos extremos” (CLAUSEWITZ, 2010, p.10, grifo nosso).

Na busca de humanizar os efeitos devastadores dos conflitos armados, limitar os meios e os métodos empregados e proteger combatentes e não combatentes, surgiram iniciativas para disciplinar juridicamente o fenômeno da guerra. Dessa iniciativa, derivou a concepção do “Jus in bello”, ou Direito da Guerra. Cabe destacar que o termo não se confunde com o “Jus ad bellum”, ou seja, “direito de ir à guerra” ou “de fazer guerra” (PALMA, 2012). O recurso da guerra, em teoria, foi abandonado pelos países, intenção consubstanciada na Carta das Nações Unidas. A prática, no entanto, não acompanhou essa visão idealista, haja vista os inúmeros conflitos desencadeados até os dias de hoje em diversas partes do globo.

Portanto, da necessidade ainda atual e premente de disciplinar a guerra, surgiu o “Direito da Guerra, ou Leis da Guerra”, também chamado de “Direito Internacional dos Conflitos Armados” (DICA) ou “Direito Internacional Humanitário” (DIH), que constitui em ramo do Direito Internacional dos Direitos Humanos, dentro do Direito Internacional Público. Desde a obra de Henry Dunant, “Recuerdo de Solferino” (1862), uma das gêneses do DICA na Idade Contemporânea, uma miríade de tratados e diplomas legais internacionais compuseram o bojo do DICA, cujo coração normativo contemporâneo está constituído pelas quatro Convenções de Genebra de 1949 e seus Protocolos Adicionais de 1977 (PALMA, 2019).

O DICA, desenhado para os conflitos armados, está composto de duas vertentes: uma disciplina a condução das hostilidades, sendo especialmente endereçada aos combatentes; a outra regulamenta o tratamento das pessoas em poder do inimigo, podendo alcançar tanto militares, quanto civis (PALMA, 2019). Os princípios fundamentais que regem o DICA são: distinção, limitação, proporcionalidade, necessidade militar e humanidade (BRASIL, 2011).

Conforme as normas internacionais inseridas no DICA, os conflitos armados podem ser classificados em: conflitos armados internacionais (CAI), caracterizado pelo enfrentamento armado entre dois ou mais Estados-Nação, abarcando inclusive aqueles de libertação nacional; e os conflitos armados não-internacionais (CANI), ocorridos dentro do território de um país. Enquanto os CAI possuem definição e normas bem definidas e amplamente aceitas, os CANI não gozam da mesma receptividade e clareza (PALMA, 2019).

Quanto aos CANI, o DICA consagra o art. 3º, comum às quatro Convenções de Genebra e o Protocolo Adicional II de 1977. Entende-se, também, como princípio basilar, a reciprocidade para a admissão do CANI. Nesse sentido, é imprescindível que os grupos armados (agentes não estatais) tenham a capacidade de respeitar o DIH, pois esse é o critério fundamental que, sob o prisma da reciprocidade na proteção normativa, justifica os outros elementos da definição (PALMA, 2019).

Segundo Palma (2019), nota-se uma resistência dos Estados nacionais em recepcionar o DICA no que concerne aos CANI, bem como uma dificuldade em reconhecer a ocorrência desse tipo de conflito em seus respectivos territórios. Isso decorre do receio de flexibilização da soberania decorrente da potencial intervenção estrangeira sob o manto humanitário, além da possibilidade em legitimar a parte adversa. Além dos citados aspectos referentes à segurança e soberania nacionais, uma das principais consequências de uma eventual aplicação desse arcabouço privativo de conflitos armados é que se estaria falando de imunidade à persecução penal nos casos de morte de indivíduos legalmente engajados nas hostilidades (CINELLI, 2017). Ou seja, poderia criar-se precedente para não imputar crime comum àqueles que perpetrassem violência dentro do território nacional contra agentes estatais, em particular pertencentes aos órgãos de segurança pública ou às Forças Armadas.

 

3. Operações de Garantia da Lei e da Ordem

O alicerce jurídico para o emprego das Forças Armadas Brasileiras em ações de Garantia da Lei e da Ordem estão reguladas pela Constituição Federal em seu artigo 142.

“Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem” (BRASIL, 1988, grifo nosso).

As operações de Garantia da Lei e da Ordem funcionam como um dispositivo do Estado para manutenção da ordem institucional nos casos em que haja o esgotamento das forças tradicionais de segurança pública ou em graves situações de perturbação da ordem. O artigo 144 da Constituição Federal define as responsabilidades de segurança pública da seguinte forma:

“Art. 144 A segurança pública dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

I - polícia federal;

II - polícia rodoviária federal;

III - polícia ferroviária federal;

IV - polícias civis;

V - polícias militares e corpos de bombeiros militares” (BRASIL, 1988).

Conforme apresentado, a decretação da GLO compete ao presidente da república. Pode haver ou não, a solicitação dos governadores para a sua implementação, ou ainda, pode ser implementado pela iniciativa dos demais poderes constitucionais (Legislativo e Judiciário). Ao estabelecer GLO, cabe ao presidente tratar o caso como uma situação de não normalidade, delimitando o local e tempo de duração das ações, sendo assim uma atividade episódica.

A Lei Complementar nº 97, de 1999 e o Decreto 3897, de 2001 estabelecem as condições de emprego e concedem provisoriamente aos militares o amparo de atuação com poder de polícia até o restabelecimento da normalidade nas operações de GLO. Conforme o Ministério da Defesa, para que seja caracterizado a adoção das Op GLO, é necessário que o enquadramento esteja tipificado e definido conforme o quadro abaixo:

Figura 1 - Finalidade das Op GLO

2.1 Operações GLO

Tipo

Definições

Violência Urbana

De acordo com o Art. 15, da Lei Complementar nº 97/99

Greve da Polícia militar

Outras*

Segurança de Eventos

De acordo com o Art. 5º do Decreto nº 3.897/2001

Garantia da Votação e apuração

De acordo com o Código Eleitoral Brasileiro

* Outras: Op referentes a questões indígenas, segurança de instalações de interesse nacional e etc.

Fonte: Ministério da Defesa, 2021.

Ao consultar os arquivos existentes no Ministério da Defesa, verifica-se que o Exército Brasileiro atuou em 107 (cento e sete) Op GLO entre o ano de 1992 e o ano de 2022.

Figura 2 - Total de Operações de GLO (1992 - 2021)

 

 

 

GLO

Tipo/Lista

MD

MB

EB

Violência Urbana

24

5

21

Greve da PM

18

4

23

Eventos

32

11

27

GVA

19

7

12

Outros

3

0

24

Total

96

27

107

Fonte: Ministério da Defesa, 2021.

Embora o emprego das Forças Armadas em GLO no Brasil seja constitucional e recorrente, trata-se de atividade secundária, haja vista que a missão precípua das referidas instituições militares é a defesa da soberania brasileira.

 

4. Relação entre as Op de Garantia da Lei e da Ordem e o Conflito Armado Urbano

A queda do muro de Berlim fragmentou os países do Pacto de Varsóvia e fortaleceu a hegemonia da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Desde então, a ocorrência de guerra entre Estados tem diminuído, enquanto a deflagração de conflitos internos têm aumentado (BRASIL, 2019). Decorrente dessa realidade, o Brasil tem registrado um aumento da participação de suas Forças Armadas em Op GLO para conter o recrudescimento da violência do crime organizado em centros urbanos e em áreas de fronteira. A participação das Forças Armadas Brasileiras em território nacional se deve ao fato de que as organizações criminosas terem passado a atuar com armamentos, táticas e técnicas típico de uma guerra.

As operações Arcanjo, São Francisco e Furacão ocorridas entre 2010 e 2018, no município e Estado do Rio de Janeiro, foram exemplos de emprego das Forças Armadas Brasileiras contra grupos armados e organizados com táticas de guerrilhas. Para combater estes grupos, as Forças Armadas Brasileiras necessitaram empregar blindados, helicópteros, armamentos e meios utilizados em guerra. Segundo Cavalcanti (2019), o emprego de militares nas operações supracitadas é similar ao de conflitos armados urbanos. A diferença, no entanto, reside nos aspectos legais, visto que nas Op GLO o uso da força militar é limitado e, por sua vez, favorece as organizações criminosas (SOUSA, 2021).

 

5. Considerações Finais

A contemporaneidade é marcada por extensa gama de conflitos armados, internacionais e não internacionais, que desafiam e ameaçam os Estados nacionais. O DICA, no intuito de “humanizar” e disciplinar tais conflitos, traz implicações à soberania das nações, em particular no que tange aos CANI e aos decorrentes riscos de ingerência estrangeira. Nesse contexto, o Brasil não está imune às consequências dessa conjuntura.

O Brasil, maior nação sul-americana em território e população, enfrenta desafios na segurança pública, cuja dimensão podem se equiparar aos conflitos armados. Nas palavras de PALMA (2019, p. 154): “O número de vítimas fatais da criminalidade no Rio de Janeiro é alarmante e pode até superar o número de vítimas em regiões de guerra.”

Não obstante, sem desmerecer sua gravidade, a situação da criminalidade nacional e seu enfrentamento por tropas estatais, incluindo as Forças Armadas Brasileiras, não impõe reconhecimento de CANI ou aplicação do DICA domesticamente. No que tange aos aspectos técnicos, a intensidade dos conflitos e emprego de armamentos de uso restrito não são suficientes o bastante para serem classificadas como CANI. Ademais, as organizações criminosas (ORCRIM) que atuam em território nacional não constituem uma estrutura monolítica. Pelo contrário, são fragmentadas em diversas facções e, ainda no seio de cada uma delas, a estrutura por vezes é celular e randômica.

A multiplicidade de atores e ausência de comando reconhecido e unificado por parte das ORCRIM impossibilita adequá-las como contendores num conflito armado abrigado pelo DICA. Segundo PALMA (2019), haja vista a impossibilidade fática de se colocar o Estado Brasileiro de um lado e a “criminalidade” de outro, dada a fragmentação e a frágil hierarquização das ORCRIM, a situação da segurança pública nacional, ainda que crítica e violenta, não configura CANI. Não obstante, diante do imperativo da reciprocidade, o DICA também não encontraria guarida no cenário em tela, haja vista que as ORCRIM, reconhecidamente, não seguem os ditames legais humanitários.

Por fim, ainda que o DICA possa servir de referencial filosófico e de fonte de princípios às ações militares, particularmente para as Forças Armadas Brasileiras, incluindo seu emprego doméstico em GLO, admitir ocorrência de CANI no Brasil enseja riscos à soberania nacional, além de não contribuir para reverter o grave cenário da segurança pública nacional

 

  

 

 Referências Bibliográficas: 

  1. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Congresso Nacional, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituicao.htm. Acesso em: 15 de janeiro de 2022.

  2. BRASIL. Ministério da Defesa. MD34-M-03. Manual de Emprego do Direito Internacional dos Conflitos Armados (DICA) nas Forças Armadas. Brasília: Ministério da Defesa, 2011.

  3. CINELLI, Carlos Frederico. Que guerra é essa? Ou melhor... Que civil é esse? EBLog - Blog do Exército Brasileiro, 2017. Disponível em: blog.eb.mil.br/index.php/menu-easyblog/q ue-guerra-e-essa-ou-melhor-que-civil-eesse.html. Acesso em: 15 de janeiro de 2022.

  4. CLAUSEWITZ, Carl von. Da Guerra. Tradução: Maria Teresa Ramos. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.

  5. DUNANT, Henry. Recuerdo de Soferino. Genebra: CICV, 1867.

  6. MINISTÉRIO DA DEFESA. Histórico das Operações de GLO 1992-2021. Brasília: Ministério da Defesa, 2021. Disponível em : https://www.defesa.gov.br/exercícios-e-operaçõe s/garanta-dalei-e-da-ordem. Acesso em: 17 de janeiro de 2022.

  7. PALMA, Najla Nassif. Curso de Direito Militar: Direito Internacional Humanitário e Direito Penal Internacional. Rio de Janeiro: Universidade Católica de Petrópolis, 2012.

  8. PALMA, Najla Nassif. Rio de Janeiro: violência urbana exacerbada, não uma guerra. Revista do Ministério Público Militar, Ano XLIV, nº 31, p. 137-162, 2019. Disponível em: htt ps://revista.mpm.mp.br/artigos/?idedicao=31. Acesso em: 17 de janeiro de 2022.

  9. SOUSA, Flávia Ximenes Aguiar de. O Emprego das Forças Armadas em Situações de Conflitos Internos Graves: Uma Análise das Regras de Engajamento e a Compatibilidade com os Direitos Fundamentais. Dissertação de Mestrado na Escola de Direito e Administração Pública, 2021. 

 

Rio de Janeiro - RJ, 01 de dezembro de 2022.


Como citar este documento:
MATTOSO; ALMEIDA; LUNA. Direito Internacional dos Conflitos Armados: a (in)aplicabilidade nas Operações de Garantia da Lei e da Ordem. Observatório Militar da Praia Vermelha. ECEME: Rio de Janeiro. 2022.  

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