Ir direto para menu de acessibilidade.
Portal do Governo Brasileiro
Início do conteúdo da página

Enfrentamento a Emergência QBRN e os desafios impostos pela ausência de legislação

Publicado: Segunda, 17 de Fevereiro de 2020, 01h00 | Última atualização em Segunda, 28 de Fevereiro de 2022, 12h12 | Acessos: 285

Danielle Morais Bourguignon Sparta

Pós-Graduada em Curso de Especialização em Direito Público e Privado pela Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro

O surgimento da Covid-19, nome dado à doença provocada pelo vírus SARS-Cov-2, deu causa ao reconhecimento de uma pandemia, pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 11 de março do corrente ano. Essa situação tem levado os Estados ao fechamento de suas fronteiras e, ainda, à adoção de isolamento social, como forma de conter a disseminação do vírus. Em âmbito nacional, o estado de calamidade pública foi reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 61, de 20/3/2020.

A situação ora apresentada configura uma emergência em saúde pública causada por agente biológico, podendo ser enquadrada como parte de um debate mais amplo sobre a centralidade da agenda QBRN no Brasil e no mundo. Os impactos da situação atual vão além das questões de segurança e de preservação da integridade física da população, já que os efeitos dessa ameaça incluem o desenvolvimento de um medo latente, que altera o comportamento da sociedade, criando um ar de nervosismo coletivo, insegurança e, por vezes, descrédito nas lideranças políticas (FORTES, 2012).

Nesse cenário, outros impactos à saúde, ao ambiente e a serviços, decorrentes de eventos relacionados a agentes QBRN podem se apresentar, tal como o aumento súbito do número de óbitos e de transtornos psicológicos na população; desagregação de comunidades e famílias em decorrência da necessidade de quarentena; migração populacional (deslocamento) pela fuga à ameaça QBRN e desabastecimento pelo isolamento de comunidades, entre outros (BRASIL, 2014).

O primeiro caso da doença COVID-19 foi registrado no Brasil, em 26/2/2020, no Estado de São Paulo. Tratava-se de um homem que voltou de viagem à Itália, país que à época era o epicentro da doença na Europa (BRASIL, 2020a).

Até às 20 horas de 20 de abril de 2020, o Brasil tinha 38.654 casos confirmados da COVID-19 e 2.462 óbitos, o que representa uma taxa de letalidade de 6,4%. Desses casos, a maior parte está localizada no Estado de São Paulo, seguido pelos Estados do Rio de Janeiro e do Ceará. Em todos os Estados do país há, ao menos, um óbito pela doença. Além disso, os dados indicam que as pessoas com mais de 60 anos e, com pelo menos, uma comorbidade, representam 70% dos óbitos (BRASIL, 2020a).

A presença da COVID-19 no Brasil é uma realidade que impõe o seu enfrentamento. Cada um dos Prefeitos Municipais, dos Governadores de Estado e o Presidente da República identificaram diferentes formas de evitar a propagação do vírus e de suportar a demanda pelos serviços médico-hospitalares.

A discussão sobre a legalidade de adoção de diferentes medidas chegou ao Poder Judiciário. Em julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6.341, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, reconheceu a competência concorrente de Estados, DF, Municípios e União no combate à Covid-19 (STF, 2020). No julgado, o STF definiu que as medidas adotadas pelo Governo Federal, na Medida Provisória (MP) nº 926/20202, não afastam a competência concorrente, nem a tomada de providências normativas e administrativas pelos Estados, pelo Distrito Federal e pelos Municípios. Em síntese, a União pode legislar sobre o tema, mas deve ser resguardada a autonomia dos Estados, Distrito Federal e Município.

O entendimento do STF está em linha com as diretrizes dispostas no Plano de Contingência para Emergência em Saúde Pública por Agentes QBRN do Ministério da Saúde, que destaca que a resposta sempre começará na localidade do evento e que se deve assegurar a capacidade de resposta inicial a esse nível. Assim, a capacidade da esfera local deve ser aumentada com planos claros de como os recursos estaduais e federais serão mobilizados para fornecer apoio (FORTES, 2012).

A necessidade de cooperação também é a tônica das diretrizes traçadas pela OMS. Em 31 de março de 2020, em entrevista coletiva, o Diretor-Presidente da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, declarou entender que muitos países implementaram medidas de isolamento, mas que é necessário respeitar a dignidade e o bem- estar de todos, além de manter a população informada e dar assistência aos grupos vulneráveis. Aduziu que “os países devem trabalhar de mãos dadas com as comunidades para construir confiança e apoiar a resistência e a saúde mental”. Destacou, ainda, que os países são diferentes entre si e que cada Nação deve buscar a melhor forma de solucionar a questão (CASTRO, 2020).

Nesse cenário, houve uma polarização de diretrizes quanto à necessidade, ou não, de adoção irrestrita de quarentena, assim definida como o “isolamento de indivíduos ou animais sadios pelo período máximo de incubação de doença, contado a partir da data do último contato com um caso clínico ou portador, ou a partir da data em que esse comunicante sadio abandonou o local em que se encontrava a fonte de infecção” (BRASIL, 2020b). Isso porque, em linhas gerais, a paralisação das atividades econômicas, apresenta-se como condição subjacente ao isolamento, notadamente porque a economia do país é fortemente movimentada pelo comércio e prestação de serviços, seja na informalidade ou com contato direto.

Em análise de dados fornecidos pelo IBGE3, é possível concluir que o setor terciário é responsável por mais da metade do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro e pela geração de 75% do total de empregos. Além disso, a quarentena implica a suspensão das atividades escolares presenciais. O censo escolar mais recente, cujo relatório foi publicado em 31/1/20204 e atualizado em 19/3/20205, pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira (INEP), revela que o Brasil tem 47,9 milhões de alunos estudantes da educação básica, dos quais 80% estão matriculados na rede pública de educação; no ensino médio, esse percentual corresponde a 83,9% das matrículas. Possibilitar o ensino à distância é mais um desafio que deve ser enfrentado pelos governos locais e estaduais. A economia e a educação, por refletirem direitos sociais ao trabalho e ao ensino, foram os exemplos eleitos para ilustrar as questões que envolvem a adoção, ou não, do isolamento social como medida de enfrentamento à COVID-19.

Em âmbito nacional, diversos são os projetos de lei para o combate à Covid-19. Por ora, merecem destaque três diplomas, já em vigor, sobre o tema: as Leis nº 13.9796, de 6/2/2020 e nº 13.9827, de 2/4/2020, bem como a Medida Provisória nº 9368, de 1/4/2020. Ambos normativos visam, em linhas gerais, à proteção da coletividade durante a pandemia.

Em simetria ao que aconteceu em âmbito federal, os Estados e os Municípios adotaram providências. No Rio de Janeiro, foi aprovada ampla legislação sobre vários temas relacionados à pandemia, dentre eles a proibição do aumento abusivo de preços e do corte de serviços essenciais; a proibição de cobrança de taxas na remarcação e cancelamento de passagens, pacotes turísticos e reservas de casas de festas (RIO DE JANEIRO, 2020a). Em âmbito municipal, A Prefeitura do Rio de Janeiro publicou, em edição extraordinária datada de 18/4/2020, o decreto nº 47.375, que torna obrigatório o uso de máscaras, sob pena de multa.

A velocidade e quantidade de publicação de normas em regime de urgência evidenciam a ausência de uma política pública para o enfrentamento de emergências sanitárias, sejam elas causadas por uma ameaça biológica, como é o caso do novo coronavírus, ou por agentes químico, radiológico e nuclear. Com exceção de ameaças nucleares, o Brasil não dispõe de protocolos predefinidos para atuação nesses casos.

Visando a volta à normalidade e a minorar os impactos sociais, há ainda a adoção de medidas para a descontaminação, que é o processo de tornar inofensiva, para o pessoal desprotegido, uma determinada área ou material, pela remoção, absorção ou destruição do agente QBRN, ou mesmo tornando-o inoperante. O processo deve ser conduzido por pessoal capacitado a trabalhar em um Posto de Descontaminação, para a realização dos procedimentos pertinentes, sendo montado e operado nos moldes realizados por equipes capacitadas em Defesa QBRN do Exército nos diversos Comandos Conjuntos ativados9 (BRASIL, 2014). Nesse particular, é essencial a atuação do 1º Batalhão de Defesa Química, Biológica, Radiológica e Nuclear, no Rio de Janeiro, e da e a Companhia de Defesa Química, Biológica, Radiológica e Nuclear (Cia DQBRN), do Comando de Operações Especiais, em Goiânia, como estruturas capazes de promover a necessária elasticidade na capacitação dos recursos humanos em DQBRN.

Além da atuação in loco para a descontaminação de ambientes públicos, a exemplo do que aconteceu na rodoviária Novo Rio e em aeroportos, outro exemplo é parceria firmada entre a Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro e o Exército Brasileiro (RIO DE JANEIRO, 2020b), para treinamento de garis da Comlurb na atividade de descontaminação de ambientes, por meio de curso ministrado por militares da Seção de Defesa QBRN da Escola de Instrução Especializada (EsIE) do Exército Brasileiro, no Rio de Janeiro. Contudo, trata-se de providências adotadas posteriormente à chegada da ameaça, quando ela já é uma realidade: a parceria acima descrita teve início em 15/4/2020, cerca de dois meses após a confirmação do primeiro caso da COVID-19 m território nacional.

A regulação das atividades em defesa QBRN é casuística, apesar de o país ter sediado grandes eventos, entre os anos de 2007 e 2016, a saber: a visita do Papa Bento XVI, a Conferência da ONU Rio+20, as Copas de Futebol das Confederações e da Fifa, a Jornada Mundial da Juventude, os Jogos Olímpicos, Paralímpicos, Jogos Pan-americanos e Mundiais Militares. A cada novo evento, as autoridades reúnem-se para decidir as diretrizes e atribuições de cada personagem.

As informações até aqui trazidas permitem concluir que são muitos os desafios a serem enfrentados, tanto pela população, quanto pelos gestores públicos, para o combate à pandemia causada pelo novo coronavírus, o que é agravado pela ausência de legislação clara orientando a atuação das autoridades em emergências sanitárias. A imposição de quarentena é uma medida que tem sido largamente adotada, com foco em evitar a disseminação do vírus e preservar a saúde das pessoas, mas traz consequências como a estagnação econômica e a dificuldade de acesso ao ensino. O Brasil é uma federação de três níveis de governo e todos os entes têm legitimidade para a implementação de medidas que melhor atendam aos interesses da população, cada qual dentro da sua esfera de atuação, devendo atuar em regime de cooperação. Além disso, o país não possui um mecanismo predefinido ou plano de descontaminação e, desde o reconhecimento da pandemia pela OMS, busca formas de lidar com a doença. Contudo, não é possível falar em padronização irrestrita das medidas de combate à COVID-19, doença contra a qual ainda não há vacina e nem protocolo de tratamento com eficácia comprovada.

 

1Reconhece, para os fins do art. 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020.

2Que dispõe sobre procedimentos para aquisição de bens, serviços e insumos destinados ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus.

3Maiores informações em: https://www.ibge.gov.br/explica/pib.php

4Maiores informações em: http://inep.gov.br/web/guest/sinopses-estatisticas-da-educacao-basica

5Maiores informações em: http://portal.inep.gov.br/web/guest/microdados

6“Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019”.

7“Dispõe sobre parâmetros adicionais de caracterização da situação de vulnerabilidade social para fins de elegibilidade ao benefício de prestação continuada (BPC), e estabelece medidas excepcionais de proteção social a serem adotadas durante o período de enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (Covid-19) responsável pelo surto de 2019, a que se refere a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020”.

8“Institui o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda e dispõe sobre medidas trabalhistas complementares para enfrentamento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (covid-19), de que trata a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, e dá outras providências”.

9Disponível em: https://www.gov.br/pt-br/noticias/saude-e-vigilancia-sanitaria/2020/03/ministerio-da-defesa-ativa-centro-de-operacoes-conjuntas-para-acoes-de-combate-ao-coronavirus Acesso em: 18 jun. 2020.

 

 Rio de Janeiro - RJ, 17 de fevereiro de 2020.


Como citar este documento:
SPARTA, Danielle Morais Bourguignon. Observatório Militar da Praia Vermelha. Rio de Janeiro: ECEME, 2020. Observatório Militar da Praia Vermelha. ECEME: Rio de Janeiro. 2020.

 

Referência:

  1. BRASIL. Ministério da Saúde. Brasil registra 38.654 casos confirmados de coronavírus e 2.462 mortes. 20 abr. 2020a. Disponível em: https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/46753-brasil-registra-38-654-casos-confirmados-de-coronavirus-e-2-462-mortes. Acesso em: 20 abr. 2020.
  2. BRASIL. Ministério da Saúde. Terminologia da saúde. 2020b. Disponível em: http://bvsms2.saude.gov.br/cgi-bin/multites/mtwdk.exe?k=default&l=60&w=2718&n= 1&s=5&t=2. Acesso em: 20 abr. 2020.
  3. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância em Saúde Ambiental e Saúde do Trabalhador. Plano de Contingência para Emergência em Saúde Pública por Agentes Químico, Biológico, Radiológico e Nuclear. Brasília: Ministério da Saúde, 2014.
  4. CASTRO, Grasielle. Leia aqui a fala do diretor-geral da OMS na íntegra, sem edição. Huffpost. [S. l.], 31 mar. 20. Disponível em: https://www.huffpostbrasil.com/entry/fala-diretor-oms-sem-edicao_br_5e83ca64c5b6a1bb764f5253?guccounter=1. Acesso em: 20 abr. 2020.
  5. FORTES, Marcelo de Azambuja. A política pública para resposta às ameaças químicas, biológicas, radiológicas, nucleares e explosivas. 2012. 198 f. Dissertação (Mestrado) – Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas, Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2012.
  6. RIO DE JANEIRO (Estado). Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Acesse a legislação estadual relacionada à pandemia do coronavírus. 6 abr. 2020a. Disponível em: http://conhecimento.tjrj.jus.br/noticias/noticia/-/visualizar-conteudo/5736540/7127545. Acesso em: 20 abr. 2020.
  7. RIO DE JANEIRO (Município). Coronavírus: parceria da Prefeitura e Exército garante capacitação de garis para descontaminação de ambientes. 13 abr. 2020b. Disponível em: http://prefeitura.rio/comlurb/coronavirus-parceria-da-prefeitura-e-exercito-garante-capacitacao-de-garis-para-descontaminacao-de-ambientes/
  8. STF. STF reconhece competência concorrente de estados, DF, municípios e União no combate à Covid-19. 15 abr. 2020. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=441447. Acesso em: 20 abr. 2020. ME. 2020.

 

64498.016655/2021-71

Fim do conteúdo da página