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Rio de Janeiro: observações sobre a estrutura das organizações criminosas e sobre o aparato policial existente para confrontá-las

Publicado: Segunda, 11 de Junho de 2018, 08h01 | Última atualização em Quinta, 06 de Janeiro de 2022, 13h46 | Acessos: 1387

Luiz Eduardo Maciel Lopes – Maj Cav

 

1. INTRODUÇÃO

A ausência do Estado nas comunidades carentes do Rio de Janeiro está, indubitavelmente, na pauta de qualquer pessoa que se atreva a abordar o tema Segurança Pública. Levar o Estado a esses locais inclui a garantia de diversos direitos fundamentais. Porém, abarca a exigência dos deveres relativos a qualquer cidadão brasileiro. O pacto social que sobrepõe o Estado ao indivíduo, enquanto construção coletiva, é a garantia do término dos ciclos viciosos que conformam a favela como território de exclusão. Essa premissa serve tanto para a Saúde, Educação, Segurança e asfalto, quanto para a proibição dos desvios de água, luz, TV a cabo e da venda de entorpecentes, na forma das leis brasileiras.

A implementação de medidas afirmativas do Estado nesses territórios, bem como o afluxo de outros atores, que podem realmente trazer a inclusão dessas comunidades na dinâmica social da cidade, depende de um ambiente seguro. A presença de indivíduos armados com fuzis, utilizando-se das características das construções e da disposição das ruas e vielas para realizarem suas atividades ilícitas, é o principal óbice ao estabelecimento desse ambiente.

Esses indivíduos armados encontram-se reunidos em três grupos cuja atividade econômica principal é o tráfico de drogas: as facções criminosas Comando Vermelho, Terceiro Comando Puro e Amigos dos Amigos. Há, também, outros grupos, aparentemente compostos (ou coordenados) por uma minoria de agentes da lei e servidores públicos da área da Segurança, não comprometidos com as missões de suas próprias corporações. Grupos esses, denominados milícias, que não podem ser considerados um grupo unido. Tudo isso é de conhecimento público.

O problema a ser resolvido, posto nos termos: “grupos de indivíduos portando armas e praticando atividades ilícitas” permite vislumbrar os requisitos críticos ao seu funcionamento: os recursos humanos a serem recrutados e armados, o ciclo econômico que os sustenta (tráfico de drogas, exploração de serviços nas comunidades, etc), os fluxos logísticos que os mantém operantes, as cadeias de comando que os controlam, entre outros.

Esse artigo pretende, então, em um primeiro momento, esboçar algumas ideias a respeito desses requisitos. Na sequência, pretende-se discorrer sobre as capacidades, existentes no aparato de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, vocacionadas para mapear as vulnerabilidades que permitem agir sobre os requisitos críticos das facções criminosas e das milícias.

 

2. DESENVOLVIMENTO

a. Considerações sobre a Dinâmica do Crime

Observar a projeção de poder das facções nos territórios sob uma única ótica sempre será limitado. Já foi necessário o emprego das Forças Armadas para garantir o pleito eleitoral, a votação e a apuração, devido à existência de currais eleitorais. Uma infeliz coincidência a levantar é o aumento das disputas territoriais entre as facções um ano antes das eleições. Aproximar a existência dos currais eleitorais a esses confrontos implica inferir que existe a motivação política de ampliar a margem de votação de determinados candidatos, por trás dos tiros. Mas, a dinâmica do tráfico não é apenas uma continuação da política.

Nesse sentido, o caso específico do Complexo da Maré é um exemplo interessante. As três facções criminosas controlam territórios postados a curtas distâncias entre si e parece haver uma relativa estabilidade entre elas durante a maior parte dos ciclos eleitorais, como um acordo tácito. Resta a pergunta: por quê? A geografia da Maré permite algumas deduções: ela une o modal aquático, pelo acesso à Baía de Guanabara, e rodoviário, pela confluência das três principais artérias viárias da cidade, Avenida Brasil, Linha Vermelha e Linha Amarela. Um hub logístico necessário às três facções.

Em se tratando de logística, ainda há um pensamento a desenvolver que conduz a um questionamento. Todos os hospitais públicos têm um policial militar de plantão. Qualquer cidadão que precise de atendimento de emergência é conduzido, a priori, para um hospital público. Se o ferimento for causado por arma de fogo, o fato será registrado e dará origem a uma investigação. Cabe a pergunta: para onde são conduzidos os indivíduos armados do tráfico, feridos nos confrontos com a polícia? Todos são levados aos hospitais públicos? Caso contrário, quem os exfiltra das comunidades? Há hospitais particulares que recebem, sob remuneração ou ameaça, esses feridos? Há organizações que operam com ambulâncias dentro das comunidades? A questão posta nessas linhas não diz respeito ao socorro a um ferido, mas a ausência de registro do fato, o que prejudica qualquer investigação.

Não há logística sem recursos financeiros, porém, uma observação que enquadre apenas a “economia do crime” também não explica alguns aspectos. O fato de o Complexo do Alemão ser uma das prioridades de defesa do Comando Vermelho, como as permanentes escaramuças pela manutenção de sua posse tem demonstrado, não está relacionado com um comércio de drogas de menor rentabilidade, prioritariamente voltado para o mercado interno, que se pratica ali.

Pode-se, então, supor que as comunidades dominadas por cada facção criminosa possuem vocações específicas que contribuem para a dinâmica interna da organização. O mapeamento dessas relações permitiria começar a compreender como os requisitos críticos são gerados e como são distribuídos. Assim, é viável imaginar uma estrutura funcional em que, por exemplo, a Mangueira contribui com recursos humanos, o Complexo do Alemão funciona como um centro de comando e controle, as geminadas Jacarezinho e Manguinhos fornecem veículos para o Comando Vermelho. A Rocinha e o Vidigal levantariam recursos humanos e financeiros para os Amigos dos Amigos, que teria como centro de comando o Complexo da Mineira. O mapeamento da estrutura pode também ser aplicado para as comunidades do Terceiro Comando Puro, como Serrinha de Madureira e Complexo da Coreia, entre outras.

Caso exista uma separação funcional como essa, ela, obviamente, não é imutável. Os centros de comando e controle, por exemplo, dependeriam da liberdade (condicional ou por indulto sem retorno) dos membros que ocupassem as posições mais elevadas na hierarquia das organizações. Mas, haveria, sem dúvida, funções mais permanentes, que estariam atreladas à história de cada uma das facções e das soluções encontradas por elas para exercerem suas atividades ilegais.

Aliás, ao abordar a história, cabe lembrar que houve um período em que o Primeiro Comando da Capital (organização criminosa paulista) possuiu certo alinhamento com o Comando Vermelho. Mas, os sinais de ruptura dessa associação remontam, pelo menos, a 2009, quando foram encontrados no Complexo da Mangueirinha e na Serrinha de Madureira, dominadas, então, pelo TCP, fuzis roubados do centro de treinamento tático da CBC, em Ribeirão Pires/SP. Essa ruptura, provavelmente, já estava vinculada às disputas em Ponta Porã/MS, fronteira com o Paraguai, que vieram a público bem mais tarde.

O caso específico das milícias exige outras considerações. Visualizar os fluxos de obtenção de seus requisitos críticos depende, entre outras coisas, de compreender: se existe a utilização de recursos do Estado e quais as falhas de segurança orgânica que permitiram essa apropriação, se existem outros caminhos de obtenção (como tráfico de armas, por exemplo) e como se dá esse fluxo.

É comum a perda de territórios da milícia para o tráfico e sua posterior retomada. Duas questões-chave são: quem age para conquistar esses territórios e quem os mantém? A participação de alguns agentes de segurança do Estado, como aliás, vem sendo divulgado pela mídia há bastante tempo, em seus momentos de folga, parece responder à primeira questão. O recrutamento de recursos humanos nas próprias comunidades, com menor treinamento e menos acostumados com o combate em terreno urbano parece responder à segunda e explicar essa flutuação no domínio das localidades.

A dinâmica do crime, então, obriga a uma abordagem multidisciplinar por parte dos mecanismos que se pretendem a compreendê-la. Há fatores que contribuem para a disponibilização dos requisitos críticos ao funcionamento das organizações. Há, também, uma história, ainda não completamente escrita, de soluções encontradas para a manutenção de suas sobrevivências. Há, ainda, motivações políticas e econômicas. Tudo isso compõe um quadro complexo, a que o Estado precisa fazer frente.

b. Observações sobre as capacidades do Estado

A primeira capacidade que o Estado utiliza para romper o vínculo: “grupos de indivíduos armados realizando atividades ilícitas” – localidades com urbanização precária, é a Unidade de Polícia Pacificadora (UPP). Ela foi organizada para representar uma abordagem direta ao problema: retirar o traficante, deixando em seu lugar, o policial treinado para fazer o policiamento comunitário.

Em que pese ter sido possível observar uma disseminação de empreendimentos imobiliários nos bairros ao redor das comunidades que receberam as UPPs, em um período de explosão dos preços nesse mercado, não é possível fazer ilações palpáveis acerca de interesses econômicos que tenham guiado o processo de instalação das mesmas. As UPPs eram, sem dúvida, uma solução possível. Mas, após a implantação das unidades, os fluxos que sustentam as organizações precisavam ser rompidos, sob pena de as facções se reorganizarem e retornarem.

As demais capacidades da Polícia Militar são os Batalhões, responsáveis por áreas de policiamento, e os Batalhões especiais, o Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE) e o Batalhão de Choque (BP Chq). Os Batalhões Especiais possuem uma maior liberdade de ação que os demais para agir em toda a cidade. Também possuem conhecimentos do terreno e da estrutura defensiva das principais comunidades do Rio. São empregados para agir de forma cirúrgica onde a situação se torne crítica.

Já os Batalhões das áreas têm um conhecimento detalhado do terreno urbano onde atuam e um profundo conhecimento da estrutura defensiva das comunidades: onde costumam se postar os olheiros, as contenções (indivíduos armados com fuzis) e a hierarquia do tráfico até o nível “gerente do morro”. Sua liberdade de ação, entretanto, está restrita à área onde atuam, o que dificulta impedir (ou mesmo perceber com antecedência) atividades executadas pelo tráfico entre comunidades de áreas diferentes.

Cada policial militar em serviço que se envolve em uma ocorrência deve preencher um termo para registrá-la. A consolidação dos dados fornecidos por esses registros auxilia na identificação de como está dispersa a mancha criminal de cada área. Um reposicionamento das equipes de policiais, seguindo os dados levantados, embora lógica e desejável, seria sempre uma atividade responsiva.

A Polícia Civil é a responsável pela investigação criminal. Suas capacidades englobam as delegacias distritais e as delegacias especializadas. As especializadas, como o próprio nome diz, trabalham especificamente em determinadas modalidades criminais, sobre as quais têm capacidade de produzir um conhecimento aprofundado. Como todo conhecimento que se estrutura em especialidades, as delegacias não praticam uma transversalidade entre si.

Já as distritais operam em áreas de responsabilidade, onde registram as ocorrências e conduzem investigações criminais. Tanto as especializadas quanto as distritais têm liberdade para agir, conforme o rumo das investigações que conduzem. Porém, o foco da polícia civil está nos indivíduos que praticam os atos ilícitos, não se prestando a mapear a dinâmica do crime no terreno urbano. Suas ações até podem adiantar-se à execução de crimes, desde que surjam indicações para tal, nos inquéritos. Isso por si só, também é uma limitação, porque nem todo o risco potencial pode ser previsto pela investigação de fatos que já ocorreram.

As corregedorias das polícias, por sua vez, são estruturas bastante restritas. Produzir e sistematizar conhecimentos sobre as falhas de segurança orgânica que permitiram determinados desvios está além da apuração das denúncias que as corregedorias recebem e, por isso mesmo, demandaria um efetivo maior do que o disponível. A atuação das milícias exige, ainda, a prospecção de conhecimentos com o máximo de segurança, porque voltados para apuração de desvios do público interno. Além disso, é obviamente necessário o suporte de outros órgãos para garantir a segurança dos denunciantes, em um programa de proteção à testemunha.

As capacidades apresentadas pelas polícias cariocas têm restrições estruturais. Sua utilização de forma estanque, como vinha ocorrendo, vai fomentar quase sempre uma resposta tardia para o enfrentamento de um crime cada vez mais dinâmico e fluido. Porém, abrir mão de uma delas, mais especificamente a PM, como tem sido propagado como solução por alguns, vai deixar o Estado ainda mais refém da situação vigente. Desfazer-se da PM é deixar de lado o instrumento estruturalmente capaz de dar o primeiro alerta e de agir contra a facção criminosa no terreno urbano. Utilizar, de forma dinâmica e sinérgica, essas capacidades parece ser uma opção mais contundente.

 

3. CONCLUSÃO

A dinâmica do tráfico, organizada em duas vertentes: a fluidez transversal que liga as comunidades e a defesa territorial das mesmas, pode e deve ser confrontada pelo aparato estatal. Ao mesmo tempo, a disseminação das milícias na Zona Oeste, para ser contraposta, depende de uma atuação proativa das corregedorias e de uma revisão das ações de segurança orgânica nas unidades da PM e nas delegacias.

A capacidade da Polícia Civil de investigação e de mapeamento das relações entre indivíduos é essencial para identificar os fluxos que sustentam o tráfico, mas falta-lhe a observação dessas relações no espaço geográfico da cidade. Esse mapeamento, talvez, permitisse compreender a dinâmica organizacional do crime, facilitando ações sobre a estrutura das facções.

Por outro lado, a capacidade de agir com táticas, técnicas e procedimentos característicos de uma estrutura militar, contra indivíduos que utilizam armamento de guerra, aproveitando-se de vantagens oferecidas pelo terreno urbano, também é essencial diante da forma como o tráfico oferece combate, atualmente. Para isso, em vez de desmilitarizar a PM, dever-se-ia pensar em militarizá-la ainda mais - desenvolver nela um grau de disciplina que pode ser classificado como consciente, isto é, todos estão cientes do que precisa ser feito e trabalham de forma sinérgica para fazê-lo. Somente uma organização com esse tipo de coesão sólida, e com um treinamento profissional de alto nível, vai conseguir enfrentar as facções criminosas em seus redutos, com o máximo de precisão e um baixíssimo nível de letalidade, atingindo, enfim, o que a sociedade aspira.

Porém, mesmo uma Polícia Militar composta por profissionais militares de alto nível e uma Polícia Civil com grande capacidade investigativa não dariam conta de mapear, sozinhas, todas as atividades do tráfico e das milícias. É necessária uma estrutura capaz de integrar a informação constatada geograficamente pela PM com a investigação personalizada da Polícia Civil. Um Sistema de Informações Geográficas, atualizado constantemente com as informações de ambas é um exemplo de ferramenta útil para a consecução desse objetivo. Ainda assim, seria só um primeiro passo. Existe a necessidade de pessoal especializado, capaz de analisar tanto os informes sumários produzidos nas distritais e nos Batalhões, quanto observar a dinâmica das organizações nos dados georreferenciados. É necessário, inclusive, treinar e estimular pessoal nas distritais e batalhões para a produção desses informes.

Por fim, ainda há, nas Polícias, uma forte dose de um componente da cultura brasileira descrito por Sérgio Buarque de Hollanda, no Raízes do Brasil, chamada de espírito de facção segundo o qual se formam grupos como um todo indivisível, cujos membros se acham associados, uns aos outros, por sentimentos e deveres pessoais, nunca por ideias (HOLANDA, 1995, p. 79). Transversalizar a informação para melhor enfrentar um óbice comum exige a geração planejada de capacidades, mas é também, uma luta para conquistar corações e mentes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26 Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

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