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O papel do Saara Ocidental no tabuleiro geopolítico de Marrocos

Publicado: Quarta, 28 de Fevereiro de 2024, 01h01 | Última atualização em Segunda, 26 de Fevereiro de 2024, 15h54 | Acessos: 334

 

Roberto Douglas da Silva Souza
Major do Exército Brasileiro.
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1. Introdução

O Saara Ocidental é uma região que tem sido contestada por Marrocos e pela República Saarauí, desempenhando um papel relevante no controle de imigrantes que partem da África com destino à Europa (AGUIAR, 2023). Localizada na porção oeste do continente africano, essa região possui cerca de 266.000 km² e faz fronteira com a Mauritânia (ao sul), com a Argélia (a leste), com Marrocos (ao norte) e pelo oceano Atlântico (a oeste).

Historicamente, o Saara Ocidental já foi palco de disputas entre a França e a Alemanha, mas acabou passando um longo período sob o domínio francês, assim como o próprio Marrocos. Pouco antes da morte do General espanhol Franco Bahamonde, o  Saara Ocidental deu início ao processo de negociação para a sua independência, episódio que suscitou disputas entre Marrocos, Mauritânia e os habitantes locais, conhecidos como saarauís (ONU, 2008). A partir daquele momento, os saarauís passaram a ser representados pela Frente Popular pela Liberação da Seguia El-Hamra e do Rio do Ouro (Frente Polisário).

Assim, em 1975, teve início uma guerra entre os atores acima mencionados, terminando com um armistício mediado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1991, resultando na anexação da maior parte do território do Saara Ocidental por Marrocos (ONU, 2008). A missão de paz da ONU estabelecida no local, a MINURSO[1], ainda está presente na região e visa elaborar um referendo para que seja decidido se o Saara Ocidental seja emancipado ou permaneça sob o comando marroquino (ONU, 2008).

Concomitante com isso, constata-se que nos últimos anos Marrocos tem explorado as riquezas naturais do local, fato que tem gerado diversas reclamações no âmbito internacional e protestos locais por parte dos saarauís, os quais reivindicam o seu direito exploratório (OCP, 2022). Uma das riquezas mais lucrativas da região é a extração de fosfato, visto que o Saara Ocidental possui a segunda maior mina de fosfato do mundo (OCP, 2022). O fosfato possui diversas aplicações, que abarcam desde a fabricação de fertilizantes, ração animal, até a pólvora.

Devido a sua proximidade com a Europa, aproximadamente 15 Km via estreito de Gibraltar, o Saara Ocidental tornou uma rota atrativa para o fluxo imigratório ilegal em direção ao continente europeu (BUENO, 2023). Em decorrência disso, Marrocos também tem exercido o controle do fluxo imigratório africano para a Europa. Diante dessa realidade, este artigo busca analisar o papel exercido pelo Saara Ocidental no tabuleiro geopolítico de Marrocos.

 

2. Marrocos e o Saara Ocidental

Após o tratado firmado entre franceses e ingleses em 1904, conhecido como Entente Cordiale, Marrocos passou a ser dominado pela França (NOGUEIRA, 2019). Contudo, após a 2ª Guerra Mundial, fruto dos desgastes deste conflito, a França começou a demonstrar sinais de fraqueza, enfrentando movimentos de independência na Indochina e insurreição em países como a Argélia, fatos que inviabilizaram a manutenção do domínio francês sobre Marrocos (AGUIAR, 2023).

Assim, após diversas negociações, a independência do Marrocos finalmente foi selada em 1956, tendo como primeiro rei Maomé V (AGUIAR, 2023). Aparentemente, a expansão territorial sempre foi uma meta perseguida pelos reis marroquinos, os quais alegavam direitos históricos sobre o território a sul e a leste do seu país. Não pelo acaso, tal retórica foi posta em prática a partir de 1975, por ocasião da saída da Espanha do Saara “Espanhol”.

Figura 1 - A expansão do Marrocos sobre o Saara Ocidental (1982 a 1987)

o papel do saara ocidental no tabuleiro geopolitico de marrocos fig1

Fonte: WIKIPEDIA, 2023.

Atualmente, Marrocos considera a área conquistada até abril de 1987 como parte do seu território, tendo como capital da sua região sul a cidade de Laayoune. Apesar da pressão internacional para a realização do referendo visando decidir sobre a situação do Saara Ocidental, Marrocos tem rejeitado todos os pleitos e resoluções que colocam em risco os territórios que já foram conquistados até 1987, tornando a MINURSO numa missão extremamente difícil e sensível.

 

3. O controle imigratório

Por ser um continente que possui muitos países com índice de desenvolvimento humano (IDH) considerado baixo, o continente africano é um dos locais mais pobres do mundo (FRANCISCO, 2020a). A Europa, por sua vez, por ser uma região que possui muitos países com elevados níveis de IDH e de desenvolvimento econômico, detém elevada qualidade de vida, o que torna o continente europeu bastante atrativo para as pessoas que buscam melhorar seus padrões de vida (FRANCISCO, 2020b).

No que concerne à realidade africana, não se pode esquecer da conferência de Berlim (1885-1886), que literalmente dividiu o território africano em zonas de influência dos países europeus. Como consequência, houve uma assimilação cultural por parte das antigas colônias africanas, quebrando barreiras linguísticas quanto ao acesso dos africanos à Europa (SILVA, 2010).

Há que se destacar também o crescimento vegetativo europeu, que é praticamente negativo, visto que o Velho Continente perdeu mais de 500.000 pessoas nos últimos três anos (CORREIA, 2023). Na contramão, constata-se que atualmente a África experimenta uma explosão demográfica, tendo como exemplo o Níger, onde a taxa de fecundidade em 2019 foi de 4,7 crianças por mulher (SCHWKOWSKI, 2019). Ou seja, se na Europa há um declínio de pessoas, na África há um crescimento exponencial de pessoas. Adiciona-se a isso o fato de que a Europa necessita constante reposição dos postos de trabalho, demanda que é geralmente satisfeita com imigrantes asiáticos, latinos e africanos. Tal realidade gera impactos sociais, como desemprego e péssimas condições de vida. Com dois continentes possuidores de caracteres tão díspares e tão próximos entre si, é natural que ocorra um fluxo imigratório intenso em direção à Europa.

Em vista disso, nota-se que nos últimos anos o Saara Ocidental tem sido utilizado como barreira ao fluxo imigratório África - Europa, particularmente no território controlado por Marrocos. Não pelo acaso, percebe-se que ao longo das estradas que cortam o Saara Ocidental, existem diversos postos de fiscalização mobiliados pelas forças de defesa e segurança marroquina, conforme apresentado a seguir:

Figura 2 - Posto de fiscalização em Boujdour

o papel do saara ocidental no tabuleiro geopolitico de marrocos fig2

Fonte: O AUTOR, 2024.

Ciente dessa realidade, o governo marroquino utiliza esse fator como moeda de troca geopolítica. Todas as vezes em que a narrativa sobre a autodeterminação do povo saarauí sobre o Saara Ocidental ganhou força, Marrocos pressionou diretamente a Europa, flexibilizando o controle e permitindo que imigrantes ilegais cruzassem seu território e chegassem na costa espanhola.

Em virtude disso, no ano de 2020, o então presidente norte-americano Donald Trump reconheceu a autoridade do Marrocos sobre a região do Saara Ocidental. Ou seja, se de um lado, essa postura suscitou protestos por parte da República árabe Saarauí Democrática. Por outro lado, esse comportamento diminuiu consideravelmente a imigração ilegal africana via estreito de Gibraltar (MONGE; PEREEGIL, 2020). Estima-se que, caso Marrocos não exercesse tal controle, aproximadamente 8 mil pessoas iriam adentrar semanalmente na Europa (BRITO, 2021), o que poderia gerar problemas de toda ordem no Velho Continente.

A título de comparação, cerca de 28 mil imigrantes ilegais cruzaram mais de 300 Km no mar Mediterrâneo, vindo a adentrar ilegalmente na costa italiana em 2023 (NADEAU; STAMBAUGH, 2023). Contudo, tal distância é muito superior aos 15 km do estreito de Gibraltar. Cabe destacar que, uma vez no território europeu, os imigrantes poderiam alegar a situação de “refugiados”, fato que tornaria dificultoso o seu repatriamento. Tal premissa se deve ao princípio do non-refoulement (SIMÕES; NETO, 2022), o qual proíbe os Estados a devolverem um refugiado para os territórios em que sua vida ou liberdade esteja sob a ameaça.

A MINURSO, apesar de não estar voltada diretamente no controle do fluxo imigratório, também contribui para isso, na medida em que monitora as atitudes e o comportamento do Exército Marroquino e da Força Polisário (forças militares de Marrocos e da República árabe Saarauí Democrática, respectivamente), procedimento que impede ambos os lados a entrarem em conflito (ONU, 2008). Dessa forma, as Nações Unidas possibilitam que Marrocos concentre suas forças em outras finalidades, tal como a imigração ilegal.

 

4. Considerações Finais

Em que pese haja o reconhecimento de boa parte do sistema internacional sobre a legitimidade das intenções e dos anseios do povo saarauí sobre o Saara Ocidental, não restam dúvidas de que Marrocos detém maior poder de influência junto ao sistema internacional sobre a região, na medida em que utiliza, de forma hábil e inteligente, o controle do fluxo imigratório como importante ferramenta geopolítica. Com essa postura, Marrocos consegue arrefecer qualquer tentativa de apoio externo, principalmente dos europeus, com a causa do povo saarauí.

Não pelo acaso, nas ocasiões em que Marrocos encontrou-se pressionado sobre a questão do Saara Ocidental, o país adotou um comportamento pautado por ações que flexibilizaram o controle do fluxo imigratório ilegal, facilitando dessa forma, o escoamento de imigrantes ilegais para o continente europeu, notadamente a Espanha, distante cerca de 15 km de Marrocos, via estreito de Gibraltar. Com essas ações, a Europa se sentiu pressionada e até acuada em adotar uma postura mais assertiva e contundente em relação a questão que envolve o Saara Ocidental, mantendo a ONU, representada pela MINURSO, de mãos atadas.

Dessa forma, além de questões históricas e sociais de relevância para os marroquinos, nota-se que o Saara Ocidental ocupa uma posição relevante no tabuleiro geopolítico de Marrocos, na medida em que tem sido utilizado como ferramenta geopolítica para que Marrocos conquiste seus objetivos políticos e estratégicos.

 

[1] Missão das Nações Unidas para o referendo do Saara Ocidental.

 

 

 Referências Bibliográficas: 

  1. AGUIAR, Lilian. Crise no Marrocos. UOL, 2023. Disponível em: https://brasilescola.uol.co m.br/historiag/crise-no-marrocos.htm. Acesso em: 29 de novembro de 2023.

  2. BUENO, S. Entenda mais sobre o Estreito de Gibraltar. Fazcomex, 2023. Disponível em: https://www.fazcomex.com.br/comex/estreito-de-gibraltar/. Acesso em: 29 de novembro de 2023.

  3. BRITO, A. Entenda por que as pessoas estão nadando do Marrocos para entrar na Espanha. UOL, 2021. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ internacional/ultimas-notici as/2021/05/21/entenda-pessoas-nadando-marrocos-espanha.htm. Acesso em: 29 de novembro de 2023.

  4. CORREIA, F. População da Europa está caindo. Olhar Digital, 2023. Disponível em: http s://olhardigital.com.br/2023/05/15/ciencia-e-espaco/populacao-da-europa-esta-em-declinio/. Acesso em: 29 de novembro de 2023.

  5. FRANCISCO, W. de C. Países com IDH muito baixo. Mundo Educação, 2020a. Disponível em: https://mundoeducacao.uol.com.br/geografia/ paises-com-idh-muito-baixo.htm. Acesso em: 29 de novembro de 2023.

  6. FRANCISCO, W. de C. O IDH dos países europeus. Brasil Escola, 2020b. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/geografia/o-idh-dos-paises-europeus.htm. Acesso em 29 de novembro de 2023.

  7. MONGE, Y; PEREGIL, F. EUA reconhecem soberania de Marrocos sobre o Saara Ocidental em troca do início de relações com Israel. El País, 2020. Disponível em: https://b rasil.elpais.com/internacional/2020-12-10/eua-reconhecem-soberania-de-marrocos-sobre-o-as ara-ocidental-em-troca-do-inicio-de-relacoes-com-israel.html. Acesso em: 29 de novembro de 2023.

  8. NADEAU, B. L; STAMBAUGH, A. Guarda Costeira italiana escolta 1.200 imigrantes em barcos no Mar Mediterrâneo. CNN, 2023. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/int ernacional/guarda-costeira-italiana-escolta-1-200-imigrantes-em-barcos-no-mar-mediterraneo /. Acesso em: Acesso em: 29 de novembro de 2023.

  9. NOGUEIRA, A. 115 anos da entente cordiale: entenda o acordo entre dois impérios coloniais que será a base para a tríplice entente na 1ª guerra. Aventuras da História, 2019. Disponível em: https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/historia-hoje/115-anos-da-ente nte-cordiale-entenda-o-acordo-entre-dois-imperios-coloniais-que-serao-base-para-triplice-ente nte-na-1-guerra.phtml. Acesso em: 29 de novembro de 2023.

  10. OCP, G. Grupo OCP - por um futuro com recursos de fosfato. Euronews, 2022. Disponível em: https://pt.euronews.com/green/2022/11/21/grupo-ocp-por-um-futuro-com-rec ursos-de-fosfato. Acesso em: 29 de novembro de 2023.

  11. ONU. Les Nations Unies aujourd’hui. Brussels: European Union, 2008.

  12. SILVA, D. N. Conferência de Berlim. Brasil Escola, 2010. Disponível em: https://brasilesc ola.uol.com.br/historiag/conferencia-berlim.htm. Acesso em 29 de novembro de 2023.

  13. SIMÕES, G. F; MÁXIMO N, P. C. Muros territoriais e controles migratórios na Itália e na Grécia durante a crise humanitária da Síria (2015-2018). Coleção Meira Mattos, Vol. 16, nº 57, p. 549-570, 2022.

  14. SCHWIKOWSKI, M. África enfrenta dilema demográfico com crescimento acelerado da população, mas sem desenvolvimento econômico. G1, 2019. Disponível em: https://g1.glob o.com/mundo/noticia/2019/07/14/africa-enfrenta-dilema-demografico-com-crescimento-acele rado-da-populacao-mas-sem-desenvolvimento-economico.ghtml. Acesso em: Acesso em 29 de novembro de 2023.

  15. WIKIPEDIA. Saara Ocidental. Wikipedia, 2023. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/w iki/Saara_Ocidental. Acesso em: 15 de outubro de 2023 .

 

Rio de Janeiro - RJ, 28 de fevereiro 2024.


Como citar este documento:
Souza, Roberto Douglas da Silva. O papel do Saara Ocidental no tabuleiro geopolítico de Marrocos. Observatório Militar da Praia Vermelha. ECEME: Rio de Janeiro. 2024.  

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