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Missões de Paz: Uma concepção de manutenção da paz como política do Estado Brasileiro

Publicado: Segunda, 19 de Dezembro de 2022, 01h01 | Última atualização em Segunda, 19 de Dezembro de 2022, 14h32 | Acessos: 10177

 

Janilson Pessoa Cabral
Advogado e aluno especial do Programa de
Pós Graduação em Ciências Aeroespaciais

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1. Introdução

Desde a primeira missão de paz da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1947 (comitê Especial das Nações Unidas para os BALCÃS - UNSCOB), o Brasil tem se prontificado a participar, por intermédio de militares, policiais e civis, nas missões de paz onusianas (ANDRADE; HAMANN; SOARES, 2019). Como fenômeno da política internacional, as operações de paz da ONU evoluíram de uma perspectiva mais tradicional, marcada por acordos de paz e estratégias de cessar-fogo entre as partes envolvidas, para uma perspectiva complexa e multidimensional, caracterizadas por questões políticas, sociais, econômicas, culturais, judiciais e de sociedade civil, além de muitas vezes, incluir o uso da força para além da autodefesa das tropas.

Portanto, o início do século XXI vem presenciando um engajamento mais incisivo do Estado brasileiro nas operações de paz (MINUSTAH e na UNIFIL). As tropas enviadas, a quantidade de missões de paz, a participação de force commanders brasileiros, são apenas alguns, dos inúmeros exemplos do desempenho proativo da diplomacia brasileira em missões de paz (ANDRADE; HAMANN; SOARES, 2019). Tomando como base estas considerações, surge a seguinte indagação: Como o direito internacional humanitário manejado nas relações internacionais pode servir como  instrumento de política de Estado?

Assim, este artigo apresenta a seguinte estrutura: preliminarmente realiza-se uma breve introdução, seguida de uma indagação que norteia a temática. Em continuidade fala-se sobre a política de Estado instrumentalizada pelo Direito Humanitário e em seguida faz-se uma alusão teórica. Na parte final, são realizadas algumas considerações sobre o papel do Direito internacional humanitário como poder estratégico.

2. Da Política de Estado instrumentalizada pelo Direito Humanitário

O Direito Internacional Humanitário não deve ser confundido com o Direito Internacional dos Direitos Humanos, porque este se aplica a todos os indivíduos em qualquer tempo, seja em momentos de guerra, seja em momentos de paz. Enquanto o outro se aplica especificamente na existência de conflito armado. Assim, são dois conjuntos normativos, que se complementam, já que os dois têm como escopo resguardar o indivíduo, sendo regidos pelos princípios da proporcionalidade, da proibição de empregar armas, projéteis, material e métodos de guerra que causem males supérfluos ou sofrimentos desnecessários, a proibição de ataques diretos a civis, a proibição dos ataques indiscriminados e a obrigação de tomar medidas de precaução a fim de minimizar o número de mortos e feridos entre os civis, assim como os danos causados aos seus bens (BASTOS, 1995).

Portanto, o Direito Internacional Humanitário impede o uso de armas que causem sofrimento maior que o requerido para deixar um combatente fora da batalha; logo, está proibido o emprego de armas que causem danos muito extensos, igual ao que ocorreu na Guerra do Vietnã, quando eram usadas bombas com fósforo branco (incendiária), ou mesmo em guerras mais antigas onde foram utilizados gases venenosos etc (SCAHILL, 2014):

“Ademais, a política internacional sempre foi reconhecida pelo que realmente é - uma política de poder - exceto em nossa época, por alguns juristas embriagados com ideias e certos idealistas que confundem os sonhos com a realidade. Os juristas deploram a necessidade de ignorar ou legalizar a guerra; os moralistas impressionam-se com o fato de uma conduta que, mesmo em tempos de paz, toma como referência a eventualidade da guerra, isto é, a coação e a violência. (...) A inteligência estratégica e o esforço de persuasão só são reduzidos à impotência nos momentos extremos do combate. Normalmente, na paz ou na guerra, quer se pratique a estratégia ou a diplomacia, intervém a inteligência: cada estrategista que toma uma decisão espera uma réplica do adversário, e essa espera comanda sua decisão. A questão é saber em que sentido a teoria matemática dos jogos permite esclarecer as decisões que os estadistas e os chefes militares tomam tradicionalmente por intuição, avaliando de modo grosseiro os riscos e as possibilidades de êxito” (ARON, 2002, p. 478-848).                        

E com base nos preceitos do artigo 4º da Constituição Federal da República Federativa Brasileira, a participação brasileira em missões de paz só ocorre após o atendimento de algumas imposições, cuja principal é a aceitação, por parte dos países ou das facções envolvidas no conflito, da presença de observadores ou tropas estrangeiras em seu território. Essa conduta da  política externa brasileira vem sendo adotada há longo tempo.

Desse modo, a primeira participação do Exército Brasileiro ocorrida em 1947 quando observadores militares foram enviados para os Bálcãs. Durante as décadas de 1950 e 1960, o Brasil viria a participar em missões de paz com efetivos maiores, integrando forças internacionais de paz, sob a égide dos  norte-americanos no Caribe. A mais longa missão de paz ocorreu no Oriente Médio (UNEF) e durou de 1957 a 1967, com a participação de 600 homens, em média, que se revezou em 20 contingentes. Cabendo  ainda destacar que:

“A incerteza dos cenários e o aumento da importância do papel da ONU na busca da preservação da paz e da segurança internacionais, aliados a uma maior inserção do Brasil como protagonista na promoção da paz e da fraternidade entre os povos fazem sugerir a necessidade de se aprofundarem os estudos concernentes às Op. Paz. Neste mister, o OMPV busca fornecer subsídios ao futuro envolvimento de novos contingentes de tropa e militares empregados em missões individuais, bem como análises endereçadas aos apreciadores das temáticas das Ciências Militares e dos Estudos de Defesa e Segurança” (OMPV, 2022, p. 1). 

Ademais, o emprego de forças militares em operações de paz continuará a ser uma constante nos próximos anos, sendo o Brasil convocado a dar sua parcela de contribuição. Em palestra proferida no dia 30 de julho de 2020 para os alunos do III Ciclo de Estudos Estratégicos de Defesa da Escola Superior de Guerra, o Secretário de Produtos de Defesa do Ministério da Defesa, Marcos Degaut, destacou que é fundamental fortalecer o debate sobre Defesa, Segurança e Base Industrial de Defesa, como elementos que considera essenciais para a elaboração de uma grande estratégia nacional e fatores indissociáveis para a confecção de uma política externa em qualquer país que almeje ser global player (PROENÇA; DUARTE, 2007).

É nesse contexto que entra a relevância do tema ofertado, haja vista sua capacidade em promover o debate sobre o Direito Humanitário Internacional e também estreitar os laços da sociedade brasileira com os integrantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. Além disso, é importante destacar o estilo brasileiro de peacekeeping, que já se consolidou como uma marca positiva da contribuição do Brasil para as operações de paz, como sendo um país que promove a manutenção da paz da ONU e utiliza produtos de defesa nacional em suas Forças Armadas.

3. Uma alusão teórica

O pai do jus naturalismo contemporâneo John Loccke (1632 - 1704), em pleno século XVII, asseverava que o homem enquanto ser, era detentor de direitos. Que por sua natureza, ninguém lhe podia subtrair, nem mesmo o Estado, mas que deveriam ser por ele respeitados. No decorrer do  século XVIII, o pensamento de Locke serviu de fundamento para a revolução norte-americana (1776) e a revolução francesa (1789), encorajando o ideal de liberdade, igualdade, fraternidade e o direito natural junto às camadas menos privilegiadas daquela sociedade

Segundo Norberto Bobbio, as revoluções tiveram como legado a declaração de direitos, pois partiram de um ponto comum, ou seja, o homem tem direitos naturais, enquanto naturais, são anteriores á instituição do poder civil, portanto, tais direitos devem ser reconhecidos, respeitados e protegidos por este poder (SARFATI, 2005).

Não pelo acaso, em 1945 o mundo foi brindado com a edição da carta das Nações Unidas, que versou  sobre a segurança internacional, tendo como escopo a família para a sua proteção e a proteção  dos direitos humanos. Assim, quando foi aprovada a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948 pela Assembleia Geral das Nações Unidas, os direitos humanos se tornaram em símbolo norteador da ONU, passando a ser reconhecido também como fundamento da paz.

Nesse sentido, propõe-se um plano de ação, com vistas a tornar o Brasil um importante ator nos assuntos de segurança internacional, pela reverberação positiva do ponto de vista doméstico, da expertise alcançada no que diz respeito à aquiescência dos padrões internacionais de manutenção da paz e da segurança nacional. Ancorados na divulgação de nossa indústria de defesa, lastreada pela tecnologia e inovação.

4. Considerações Finais

Num mundo globalizado, a constituição brasileira de 1988 trouxe inovações no tocante à visão do Direito Humanitário como ferramenta de amplitude do poder  de Estado, perante os demais países existentes além-mar. Essas normas estão de acordo com os seus princípios inovadores para a condução da sociedade brasileira em relação às demais nações do mundo. Assim, importa destacar o art. 1º da constituição federal de 1988:

“A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamento; a soberania, a cidadania a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; (vide Lei nº 13.874, de 2019) e  o pluralismo político” (BRASIL, 1988, p. 11).                                                                                                                                                      

E o art. 4º da constituição federal de 1988

“A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: independência nacional; prevalência dos direitos humanos; autodeterminação dos povos; não-intervenção; igualdade entre os Estados; defesa da paz; solução pacífica dos conflitos; repúdio ao terrorismo e ao racismo; cooperação entre os povos para o progresso da humanidade e concessão de asilo político” (BRASIL, 1988, p. 11).

 Como visto, o Brasil está ancorado em princípios que preservam a sua soberania e cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, propiciando a utilização do Direito Internacional Humanitário como ferramenta  geopolítica no âmbito de suas relações internacionais, além de servir como marketing para a sua industria de defesa.

Sob a concepção democrática do Estado de Direito, lastreado no princípio da dignidade da pessoa humana, as operações de paz abrilhantam ainda mais a imagem do Brasil no cenário mundial, como potência emergente capaz de empregar as suas Forças Armadas em ações humanitárias, em face de desenvoltura de sua capacidade. Em vista disso, deve-se estar atento para pensar as missões de paz como política de Estado, haja vista que ela também pode ser indutora da industria nacional de defesa, refletindo-se em desenvolvimento econômico nacional (ALMEIDA, 2010).

Finalmente, este artigo propõe que devem ser levantadas as tendências futuras das operações de paz e as propostas oportunas dessas missões, para que a sociedade brasileira possa desenvolver uma mentalidade participativa mais adequada às necessidades geoestratégicas do Brasil, a partir dos ensinamentos do Direito Internacional Humanitário acoplados ao desenvolvimento de sua industria de defesa, visando a manutenção da paz mundial, por meio do Brazilian Way of Peacekeeping.

  

 

 Referências Bibliográficas: 

  1. ALMEIDA, Carlos W. L. Política de Defesa no Brasil: considerações do ponto de vista das políticas públicas. Opinião Pública, Vol. 16, nº 1, p. 220-250, 2010.

  2. ANDRADE; Israel de Oliveira; HAMANN, Eduarda Passarelli; SOARES, Matheus Augusto. A participação do Brasil nas operações de paz das nações unidas: evolução, desafios e oportunidades. Texto para discussão 2442. Brasília: IPEA, 2019.

  3. ARON, Raymond. Paz e Guerra entre as Nações. Brasília: UNB, 2002.

  4. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva; 1995.

  5. BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 05 de outubro de 1988. Brasília: Congresso Nacional, 1988.

  6. OBSERVATÓRIO MILITAR DA PRAIA VERMELHA. Missão de Paz. OMPV, 2022. Disponível em: http://ompv.eceme.eb.mil.br/missao-de-paz?id=363. Acesso em: 9 de dezembro de 2022.

  7. PROENÇA, Domício, DUARTE, Érico Esteves. Os Estudos Estratégicos como base reflexiva da defesa nacional. Revista Brasileira de Política, Vol. 50, nº 1, p. 29-46, 2007.

  8. SCAHILL, Jeremy. Guerras Sujas. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.

  9. SARFATI, Gilberto. Teoria das Relações Internacionais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.

 

Rio de Janeiro - RJ, 19 de dezembro de 2022.


Como citar este documento:
Cabral, Janilson Pessoa. Missões de Paz: Uma concepção de manutenção da paz como política do Estado Brasileiro. Observatório Militar da Praia Vermelha. ECEME: Rio de Janeiro. 2022.  

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